por Marcelo Costa
De responsabilidade da Brouwerij Bosteels, uma cervejaria belga localizada em Buggenhout, cidade de menos de 15 mil habitantes a pouco mais de meia hora de Bruxelas, a DeuS Brut des Flandres foi, durante muito tempo, a cerveja mais cara encontrada nas prateleiras do Brasil. Enquanto em sua terra natal o preço não ultrapassa 20 euros (na conversão de hoje, quase R$ 70), no Brasil, a DeuS Brut des Flandres passou anos sendo vendida entre R$ 200 e R$ 250. Ainda hoje há lugares que mantém esse preço (absurdo), mas já é possível encontra-la entre R$ 120 e R$ 150. Essa garrafa, por exemplo, foi comprada no Pão de Açúcar em dezembro de 2012, quando o supermercado fez uma promoção colocando-a ao preço de R$ 89,90. Decidi garantir uma garrafa, pois julguei que valia pagar R$ 20 a mais em relação a gringa do que arriscar trazer uma da Bélgica e ela quebrar na mala.
Mas por que a DeuS é tão cara, se na Bélgica uma cerveja excelente vai custar entre 5 e 6 euros, não mais que isso (garrafas de 330 ml; as de 750 ml ficam entre 10 e 12 euros, mas a DeuS custa 18)? Bem, a DeuS é uma cerveja… “especial”, integra o estilo Bière Brut e tem um modo de produção peculiar: com produção limitada a 15 mil garrafas por ano, a DeuS Brut des Flandres atravessa um longo processo de fermentação. Na primeira fase, ainda em Buggenhout, na Bélgica, a DeuS passa pela produção tradicional com malte de cevada, lúpulo, levedura e água. Na segunda fase, a cerveja é enviada para Reims, na região de Champagne, na França, onde passa pelo processo champenoise, repousa em caves, e, após uma segunda fermentação, matura durante um ano. Após o processo de remuage (retirada dos sedimentos alocados no gargalo da garrafa), ela segue para a Bélgica e dali pra você.
Alocada em uma bela garrafa de champagne com direito a rolha de cortiça (igual a vinhos), assim que aberta e despejada na taça (de preferência no modelo flauta semelhante ao de champagne), a DeuS apresenta uma bela coloração dourada com creme branco de média formação e permanência. No nariz, acidez típica de champagne embebida em doçura maltada caramelada (com leve toque de baunilha) mais herbal condimentado (feno, hortelã e capim-limão), frutado (uva verde) e sugestão de gengibre. É possível perceber os 11.5% de álcool, que não assustam, mas avisam que estão ali. Na boca, a alta carbonatação explode de forma melódica com doçura maltada (mais mel que caramelo), amargor de álcool com toque cítrico (maracujá), acético e herbal. Há pouco azedume (essa garrafa é da safra 2011), mas é possível percebe-lo. O final é picante, caramelado, frutado e sutilmente acético. No retrogosto, mel, álcool suave, frutado (um pouco de laranja e maracujá embebidos em álcool) e felicidade. Uau.
A história da Lucifer começa nos anos 50, quando ela começou a ser produzida pela Brouwerij Vondel. De lá pra cá, o nome Lucifer (sem receita definida) passou pelas Brouwerij Artois, Rodenbach e Riva, que foi quem apostou numa receita de Belgian Strong Ale (inspirada no sucesso da Duvel). Após a Riva abrir falência em 2002, ser vendida, renomeada como Liefmans Breweries, e falir de novo em 2007, a cervejaria foi adquirida pela Moortgat, casa da… Duvel, que focou na linha Liefmans e fez um acordo com a Het Anker (casa da Gouden Carolus), que assumiu em 2009 a responsabilidade de recolocar a Lucifer no mercado. O resultado é uma cerveja de coloração dourada com creme branco de ótima formação e média alta permanência. No nariz, doçura caramelada e frutado em primeiro plano (pêssego, banana e frutas cristalizadas) mais cítrico (maçã verde e uva) e leve acético. Na boca, doçura frutada (calda de pêssego com um tiquinho dos 8% de álcool) no primeiro toque, leve picancia na sequencia e uma ótima e variada paleta frutada (maçã verde, limão, pêssego). No final, caldo de pêssego com cachaça e frutas cristalizadas. No retrogosto, frutado, acético e picante. Boa.
Também da Bélgica, mas muito mais antiga, a Brouwerij De Block foi fundada em 1887 no local em que outra cervejaria atuava desde o século XIV, na pequena vila de Peizegem, anexa a cidade de Merchtem (pouco mais de 15 mil habitantes e a cerca de meia hora de Bruxelas). Com menos de 10 receitas no cardápio, a grande estrela da casa é a Satan, produzida em duas versões: Gold e Red (Ambar). De coloração dourada com creme branco de boa formação e média permanência, a Satan Gold apresenta um aroma maltado, com doçura de caramelo (com um toque de álcool sugestionando licor), frutas secas e leve cítrico (maçã e uva com leve remissão a vinho branco). Na boca, textura sedosa (quase licorosa) e doçura caramelada no primeiro toque acompanhada de álcool, que se apresenta sem nenhuma timidez, aquecendo o percurso. Há frutado pelo caminho (maçã, uva e pera) e leve cítrico numa cerveja que finaliza inicialmente doce para fechar suavemente amarga e picante. No retrogosto, leve acidez, mel, malte e álcool. Boa.
De Ronchin, uma vila francesa de pouco mais de 3 mil habitantes próxima de Lille, a Brasserie Grain d’Orge surge com a afamada linha Belzebuth (produzida na Holanda), que consiste de uma Golden Strong Lager de 8.4%, uma Imperial Pils de 11,8% e, mama mia, uma cacetada de 13% de álcool. Das três, a Belzebuth Extra Strong Ale 11,8 foi a escolhida para representar a turma. Sua receita une água, malte de cevada, arroz, dextrose (um derivado da conversão enzimática do amido de milho), caramelo aromático e lúpulo. De coloração âmbar caramelada e creme alaranjado de média formação e permanência, a Belzebuth Extra Strong Ale 11,8 apresenta bastante doçura no aroma (mel, caramelo, açúcar) e leve toque de cereais. O álcool, ainda que não descarado, pode ser percebido em notas que remetem a licor. Na boca, textura sedosa, quase licorosa, aquecendo a língua fervorosamente tal qual tequila, ainda que traga junto bastante doçura de mel e caramelo. O conjunto, de forma impressionante, não é agressivo, mas o álcool é percebido em todo gole. O final, longo, é caramelado e alcoólico com leve toque cítrico enquanto o retrogosto traz aquecimento e doçura. Interessante (mas ordinária).
Balanço
Começando essa sequencia de Deus e Diabo (que também poderia incluir a Duvel – demônio na língua flamenga) com a DeuS Brut des Flandres e ficando absolutamente maravilhado. Ela é… foda (desculpe alguém ai cima). Não vale o preço de mercado no Brasil (R$ 150 em média), mas uns R$ 60, R$ 70 no máximo na gringa são um bom investimento. Não é uma cerveja para qualquer momento, ainda que possa combinar com diversas situações. E, envelhecida, ela perde um pouco o caráter radical que a versão mais nova propõe (e assusta incautos)… e melhora. Mas saiba: é uma grande cerveja… para momentos especiais. A primeira da linha de cervejas demoníacas é a Lucifer Het Anker, uma tentativa de Duvel mais melada e frutada (com leve lembrança de Tripel Karmliet). Não brilha com as duas cervejas que copia, mas é saborosa. A Satan Gold parece ter mais personalidade, ainda que, desde o primeiro momento, deixa o álcool perceptível num conjunto que parece separar bem doçura, frutas e álcool. Fechando o quarteto, a Belzebuth Extra Strong Ale 11,8 me surpreendeu, já que eu esperava algo muito pior. A receita se baseia no equilíbrio entre o exagero de álcool (11,8%) e a doçura do malte, e aquece que é uma beleza sem soar tão agressiva. A rigor, é uma Malt Liquor que visa embebedar rapidamente oferecendo pouco desafio ao paladar, e se seu intuito é esse beba moderadamente. Esse demônio vai querer sua ressaca depois. Vá devagar.
DeuS Brut des Flandres
– Produto: Bière Brut
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 11,5%
– Nota: 4,90/5
– Preço pago em São Paulo: R$ 90 – 750 ml
Lucifer Het Anker
– Produto: Belgian Golden Strong Ale
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 8%
– Nota: 3,20/5
– Preço pago em São Paulo: R$ 19 – 330 ml
Satan Gold
– Produto: Belgian Golden Strong Ale
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 8%
– Nota: 3,21/5
– Preço pago em São Paulo: R$ 19 – 330 ml
Belzebuth Extra Strong Ale 11,8
– Produto: Malt Liquor
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 11,8%
– Nota: 2,84/5
– Preço pago em São Paulo: R$ 10 – 500 ml
Leia também
– Top 1001 Cervejas, por Marcelo Costa (aqui)
– Leia sobre outras cervejas (aqui)