por Renato Beolchi
A sinopse de “Relatos Selvagens” (“Relatos Salvajes”, 2014) diz que o filme é sobre pessoas comuns que, por circunstâncias diversas, cruzam a tênue linha que separa a civilidade da barbárie. Essa é uma forma de encarar a colagem de contos produzida pela companhia de Pedro Almodóvar. Mas há outra mais simplista (e talvez mais divertida): descobrimos nosso Tarantino sul-americano. As seis histórias escritas e dirigidas por Damián Szifron têm em comum uma mistura muito cara ao colega norte-americano, vingança e humor negro.
O músico e amante frustrado que consegue reunir de uma vez todos os seus desafetos. A garçonete que se vê frente a frente com o responsável pela ruína de sua família. Os motoristas que se desentendem na estrada. O pai e marido de classe média que resolve enfrentar o departamento de trânsito de Buenos Aires. O rico empresário que tem dinheiro até para salvar o filho das consequências de um grave acidente de trânsito. A noiva que descobre a traição em seu casamento. Conto a conto, a fita escala a pirâmide social argentina até seu topo, transformando seus protagonistas em bárbaros.
Da sequência de abertura à conclusão, “Relatos Selvagens” é um filme aonde quase todos os espectadores vão se identificar com alguma situação, personagem, e quase nunca com o desfecho de sua história. É a fantasia de Szifron para a vingança pessoal em situações cotidianas. A discussão mental que travamos com adversários, sozinhos, debaixo do chuveiro. E em que, invariavelmente, saímos vencedores.
E foi exatamente assim que o diretor concebeu as histórias: uma válvula de escape para suas próprias frustrações. Em São Paulo, convidado para participar da abertura da 38a. Mostra Internacional de Cinema, Szifron e a atriz Erica Rivas receberam a imprensa para conversar sobre o sucesso de “Relatos Selvagens” na Argentina, a concepção do filme que irá representar o país no Oscar 2015 e o que há de real em cada história contada. E mais.
“Escrevi a maioria destas histórias com os olhos fechados, quase sem olhar para a tela do computador”, explica Szifron sobre a concepção de cada conto que se deu já com um olhar de diretor. “Fecho os olhos e imagino cenários, personagens, situações, conflitos. É um processo criativo semelhante a um sonho”. Argentino de Ramos Mejía, distrito comercial de La Matanza, da Grande Buenos Aires, Szifron começou a escrever as histórias como distração. “Enquanto eu trabalhava no desenvolvimento de outros projetos, muitas vezes desanimado pela impossibilidade de realização, comecei a escrever contos para dar vazão às minhas frustrações”.
Nem todos os contos escritos por ele foram parar na tela, por isso o diretor não descarta uma sequencia. “Iria se chamara ‘Mais Relatos Mais Selvagens’”, brinca. Além disso, ele ainda mira um épico de quatro filmes de ficção científica chamado “The Foreingner”, um romance chamado “The Perfect Couple” e um faroeste batizado de “Little Bee”.
Szifron assume que há uma semelhança de “Relatos Selvagens” com Tarantino, mas não se vê como uma espécie de primo sul-americano do diretor norte-americano. Para ele, a similaridade é mais uma questão de geração. “Nós dois crescemos amando filmes e diretores considerados de segunda classe. Já a questão da vingança é um tema universal, antigo. Está no Velho Testamento.”
A falta de moralismo ou julgamento das consequências dos atos de seus protagonistas não é acidental, segundo o diretor. “Como cineasta acho que não me cabe julgar meus personagens. Para mim, o processo de escrita deve ser selvagem, irresponsável. É importante que se mantenha um elemento lúdico no processo criativo. E o moralismo nunca esteve presente. Eu concebi a histórias quase sempre sem um desfecho”.
E é aí que Szifron divide os louros do sucesso de “Relatos Selvagens” com seu elenco. Atribui aos atores grande parte do êxito de crítica e público. E começa pelo quase onipresente ator do cinema argentino Ricardo Darín, que vive um engenheiro de classe média, pai de família cujos problemas para estacionar o carro tornam-se tão desesperadores quanto seu iminente divórcio. “Darín foi o primeiro ator para o qual eu entreguei o roteiro e ele imediatamente aceitou participar. E uma vez que ele disse sim, eu precisei ir atrás de outros atores conhecidos para dar um equilíbrio às histórias.”
Isso pode ajudar numa eventual disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro? Szifron não parece estar muito preocupado. “A resposta madura – não sei se é a honesta – é que as premiações são importantes para o ego e para a comunidade do Cinema e geral. Com relação ao público, posso te dizer que me importam os filmes que eu gostei e não os que ganharam o Oscar”.
O sucesso com público, principalmente o argentino, é o combustível atual do diretor. E para ele, o sucesso do filme em seu país não se dá apenas pelo elenco estrelado. “Há certa violência no filme que está muito presente no noticiário argentino. Há uma sensação de festa coletiva quando o filme é exibido em alguma sala argentina”.
A despreocupação com o Oscar é partilhada por Erica Rivas, atriz que vive Romina, uma noiva que descobre a infidelidade de seu marido durante a festa nababesca de seu casamento. “Para ser sincera, não me importa. Nunca sonhei com o Oscar, não me interesso muito pelo cinema norte-americano. Eu me interesso pelas premiações, evidentemente, mas o que aconteceu com o filme até este momento já é imenso”. Erica, que estreou no cinema em 1995 com o curta-metragem “Clorofila Negra”, de Lucrecia Piatelli, traz no currículo trabalhos com Francis Ford Coppola (“Tetro”, de 2009) e Anahí Berneri (“Por tu Culpa”, de 2010), sendo que o último lhe rendeu o reconhecimento de Melhor Atriz no Premios Sur.
O tema de vingança e o humor são outras características que para ela ajudam a explicar a bilheteria de “Relatos Selvagens” na Argentina. Excluindo-se o conto do qual participa, Rivas demora a se decidir, mas consegue escolher uma história favorita. Exatamente a protagonizada por Ricardo Darín. O motivo é tão inusitado quanto misterioso: “Minha mãe já teve um problema semelhante com o Departamento de Trânsito em Buenos Aires. Felizmente o desfechou dela foi bem diferente”.
Rivas também se surpreende com sucesso doméstico do filme, um público que, segundo ela, costuma dar pouco suporte ao cinema nacional. Mas atribui ao diretor e à linguagem adotada grande parte do êxito. “Damián é um diretor que arbitrariamente decide como contar a história de uma maneira rápida. A cada episódio ele orientava a equipe: ‘Aqui é uma história da Disney; já aqui temos um conto de terror’. Ele sabe exatamente como quer contar essa história ao público”.
Mas isso vai de encontro de outra característica do filme, e que Rivas destaca: a de que, ainda durante as filmagens, “Relatos Selvagens” era uma obra em mutação. E o próprio conto protagonizado por Rivas é prova disso. A história de Romina, que na escalada social é o topo da pirâmide, estava inserida no meio da fita. “E tinha outro final”, diz ela. “Durante as filmagens, Damián quis mudar. Dizia que não tinha um fim para o casamento. Eu sugeri alguns desfechos, ele também rascunhou outros. Mas todos eles terminavam com esse sentimento de vingança e injustiça e o casamento terminava mal. E de repente surgiu essa conclusão, que dá um passo além”.
Damián completa: “O filme são ‘Relatos Selvagens’. Concluímos que o fim precisava ser animalesco”. Selvagem como seu título.
– Renato Beolchi (@renato_moikano) é jornalista e guitarrista na banda Heleninha Roitman. Reportagem produzida em parceria com o site Aires Buenos.
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