por Bruno Lisboa
Com carreira iniciada na publicidade (anos 80) e nos videoclipes (anos 90), David Fincher sempre se notabilizou por ter um caráter inovador. Não à toa, chamou a atenção da indústria em 1984 com uma propaganda em que um feto fumava um cigarro (para a American Cancer Society) e depois se destacou com clipes para Madonna (“Express Yourself”, 1989) e George Michael (“Freedom 90”, 1990), representações fílmicas com largo apelo visual.
A experiência com propaganda e música carimbou seu passaporte para Hollywood, que viu em Fincher, então com 30 anos, os predicados necessários para assumir o projeto do terceiro filme da franquia “Alien” (1992). O filme foi indicado ao Oscar na categoria Efeitos Especiais, mas frustrou crítica, público e o próprio diretor, que acusou a 20th Century Fox de prejudica-lo em questões como roteiro e orçamento. Como se quisesse provar pra si mesmo que tinha talento, Fincher voltou para a música, e ganhou um Grammy em 1994 pelo clipe de “Love is Strong”, dos Rolling Stones.
Porém, a carreira cinematográfica de David Fincher só iria deslanchar em 1995, com “Seven”, um autêntico clássico dos anos 90 que, por fim, exibe boa parte das características que o diretor iria imprimir em filmes futuros: roteiros intricados e hermeticamente bem construídos, o caráter metódico de filmagem, atuações acima da média e trilha condizente. Tudo isso pode ser visto em “Clube da Luta” (1999), “O Quarto do Pânico” (2002), “Zodíaco” (2007), “A Rede Social” (2010), “Os Homens Que Não Amavam as Mulheres” (2011) e, agora, em “Garota Exemplar” (2014).
Com roteiro escrito pela escritora Gillian Flynn, que segue à risca seu próprio livro (lançado no Brasil pela editora Intrínseca), “Garota Exemplar” (“Gone Girl”, 2014) promove uma verdadeira elegia a dualidade humana. No campo central da história surge o casal Dunne Nick (Ben Affleck) e Amy (Rosamund Pike). Ele é um autêntico norte-americano machista inveterado. Ela é a adorável garotinha mimada pelo papai. Juntos, Dunne e Amy enfrentam a crise de um casamento que se esfacelou no decorrer dos anos e vivem de aparências que mascaram a infelicidade da relação.
A malfadada rotina é drasticamente alterada a partir do desaparecimento de Amy, justamente no dia do aniversário de casamento, e a medida em que os dias passam, a investigação policial segue inúmeras evidências que apontam Nick como possível assassino. Deste momento em diante, o tempo se torna inimigo do marido, que busca, desenfreadamente, provas de que ele não matou a esposa, tentando mostrar à todos que o insensível monstro que a imprensa local construiu não existe.
Como todo bom thriller (e Fincher, além e ser muito bom nisso, cerca-se das pessoas certas), “Garota Exemplar” estabelece uma linha de tensão aparentemente interminável ao longo de seus 149 minutos. Novos fatos se sobrepõem a todo o momento fazendo com que a narrativa flua freneticamente, o que deixa o espectador em estado de transe, imerso na trama até o final surpreendente. A trilha sonora, de Trent Reznor e Atticus Ross (repetindo a parceria iniciada em “A Rede Social” e “Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”), cria a ambientação correta e surge em momentos cruciais da história.
Outro trunfo do filme é a atuação magnífica da dupla Ben Affleck e Rosamund Pike. O calculismo impresso em suas interpretações alcança a frieza necessária para a construção de personagens cuja vivência é dúbia e misteriosa, e se baseia em possíveis verdades que são colocadas em xeque o tempo todo. Angustiante do início ao fim, “Garota Exemplar” é um bem acabado retrato da sociedade atual, embalada por um sensacionalismo midiático que se alimenta (financeiramente) da necessidade que parte da humanidade tem de consumir lixo.
– Bruno Lisboa (@brunorplisboa) é redator e colunista do pignes.com
Leia também:
– Livro: “Garota Exemplar’ é uma boa e surpreendente exceção no ramo dos best-sellers (aqui)
Um dos melhores filmes doa ano. Apesar do Ben Affleck.