por Bruno Leonel
O ano era 2004, mês de novembro. Sem grandes pretensões, uma dupla canadense lançava seu celebrado álbum de estreia. Baixo, bateria, alguns sintetizadores e vocais: foi tudo o que eles utilizaram para gravar “You’re a Woman i’m a Machine”. Registrado entre fevereiro e abril daquele ano no The Chemical Sound em Toronto, o disco trazia uma mistura inusitada de punk rock, noise, riffs de metal e até dance music (?!?!).
Pesado, despretensioso e estranho na mesma medida, o disco motrava uma sonoridade sofisticada e, ao mesmo tempo, curiosamente familiar. O trabalho chamou a atenção de ouvintes de várias ‘categorias’ e idades, desde o público de bandas como Libertines e Killers, passando por fãs de hardcore e chegando até aos mais xintoístas ouvintes de metal. Se não chegou a ser bem uma unanimidade, a estreia da dupla ao menos conseguiu ser dos discos daquele ano que mais rachou barreiras e agregou público de territórios distintos.
Muito diferente do que outras “duplas de rock” da época faziam – mais obscuro e robótico do que o Black Keys e muitíssimo mais esparso e caótico do que o White Stripes – a estreia do DFA 79 cravou seu reconhecimento como uma obra original, sem comparações com várias outras bandas do período. O caos, de fato, sempre foi parte do trabalho da dupla. Cada elemento dele esbanja criatividade e também excentricidade. Uma banda sem guitarras, cuja logo colocava “trombas” nos integrantes, e com referências que vão desde Sonic Youth a Gary Numan, cujo disco tira seu nome de um diálogo da serie ‘Battlestar Gallatica” e que trás faixas com nomes como “Sexy Results” e “Romantic Rights” – pelo menos em 2004, incitou muita curiosidade.
Os shows enérgicos e agitados da turnê só aumentaram o burburinho em torno da dupla. Junto com o tal revival do rock de garagem, o tal do dance-rock – pelo menos como apareceu no começo dos idos de 2000 – era a bola da vez, e para muitos ficou sendo o grande som que marcou 2004. Metric e Rapture ainda eram novidades e para o DFA79, que estava apenas colocando seu time em campo, o jogo parecia ganho desde o começo. O tempo, pelo menos para a dupla canadense, não parecia ser problema.
Eis que em 2006 a banda encerrou as atividades, os dois integrantes se aventuraram em outros projetos (Como o MSTRKRFT e até mesmo em trilhas sonora de video-games) e a distância dos palcos acabou por transformar o DFA 79 em um nome “cult”. Em 2011 a banda anunciou um comemorado retorno. A volta contou com um “show tumulto” no festival South by Southwest daquele ano, e outro show elogiadíssimo no Coachella. De lá pra cá vários shows seguiram. Até no Brasil os “elefantes” fizeram uma apresentação em 2011 com direito a participação do baterista Iggor Cavalera.
O passo seguinte foi um novo disco, o que apenas ocorreu em 2014. Em música há certa mística sobre a maldição do segundo disco, quando se tem uma estreia celebrada, a responsa sobre o próximo passo fica maior, o que aumenta os riscos também. Em setembro saiu “The Physical World”, exatamente 10 anos após o primeiro trabalho. O novo disco foi produzido por Dave Sardy (LCD Soundsystem e Nine Inch Nails) em um período total de cerca de quatro meses, diluidos em cerca de dois anos. A gravação parou várias e várias vezes devido a outros projetos dos envolvidos. Se na celebrada estreia, os vocais urgentes e o baixo distorcido vinham carregados de uma urgência digna de alguém que tocava como se não houvesse amanhã, em “The Physical World”, cercado de expectativas, o tempo passou, e eis que o amanhã chegou. Ainda que de fato, a própria banda haja como se não tivesse chegado.
“It’s the same old song, just a different tune” canta Sebastien Grainger na letra de “Right on Frankenstein!”, a frase resume bem o clima do trabalho. A levada, um punk rock dos bons, lembra uma das melhores faixas que o Ramones nunca compôs. O disco abre com a boa “Cheap Talk” com os característicos riffs distorcidos (cortesia do inconfundível Jesse Keeler, talvez o grande cérebro da sonoridade da banda) casados com a bateria cadenciada. Certamente não é uma abertura tão boa quanto “Turn It Out” do primeiro disco, mas não faz feio como cartão de visitas. Uma tentativa de blues aparece em “Virgins” com vocal mais lento do que o habitual, “O amor é cego, e eu não me importo, yeah!” canta o eu lírico na faixa (as visões de mundo das letras, pelo jeito, continuam a mesma coisa).
A coisa começa a esquentar na quarta faixa, a ótima “Always On”, riff truncado e bateria frenética dão um tom carregado na faixa. As tradicionais dinâmicas e quebradas de rítmo aparecem perto do refrão (precisava ser diferente?). Curiosamente a letra revela (ainda mais) preocupações com o tempo e com a época em que vivemos “Se trouxessemos Kurt de volta a vida, não haveria como ele sobreviver, nem um dia…“. O verso, apesar de insólito revela também uma postura da banda em relaçâo à música de hoje.
Na época do lançamento o próprio vocalista afirmou que não era muito fã em geral da “nova música” que vinha sendo feita em 2014 e que havia preocupação se de fato haveria espaço hoje para um novo trabalho da dupla – tem sim, ainda bem! De forma sutil, a questão parece permear boa parte das músicas do novo trabalho. A robótica “Crystal Ball”, outra grande faixa, trás uma levada que lembra vagamente “Romantic Rights”, talvez maior clássico da banda, gravado no primeiro disco. Destaque para o contagiante refrão, e sintetizadores sutis que aparecem fazendo um competente papel coadjuvante. “Se eu ver o fim, não posso ver o começo, não há bola de cristal para ver o final feliz” fala a letra na qual a passagem do tempo aparece novamente. Tempo não era problema para eles em 2004, e, definitivamente, parece não continuar sendo em 2014 – A banda já acabou uma vez, já chegaram a um segundo disco, o que parecia improvável na metade deste trajeto todo, logo, o que pode ser ruim nisso??
O peso do disco encontra uma pausa na estrutura para/anda de “Trainwreck 1979”, ótima faixa e primeira música revelada do novo trabalho. A música começa como um rock básico e ganha ares de “new wave” com teclados e backing vocals no refrão – ecletismo sempre foi um ponto a favor da dupla. A faixa quase serve como quebra para o rítmo frenético que o disco vinha seguindo, quase, pois logo na sequência a austera “Nothing Left” coloca as coisas de volta ao lugar. A música lembra um pouco “Little Girl” do disco de 2004, e esse clima de uma faixa remeter a outra antiga da banda ocorre em várias canções, mas nada que chegue a soar datado ou repetitivo, pelo contrário, apenas situa o ouvinte e o lembra de que ele está ouvindo novas canções de uma banda que ele aprendeu há gostar dez anos antes.
Chegando a nona faixa, a porrada esmagadora “Government Trash” consegue ‘achatar’ (sic) qualquer possível dúvida sobre a qualidade do novo trabalho. Certa vez em um show, Sebastien apresentou a música como “Uma canção sobre a conta bancária de Billy Corgan” (?!?!). Com levada quase metal e riff monstro (facilmente um dos melhores do ano, até agora) a faixa talvez seja o grande momento da banda em 2014. Destaque para o turbilhão que a canção vira perto do fim – 4 segundos da faixa eram tocadas em loop no site oficial da banda até algumas semanas antes do lançamento. Talvez já tivessem conhecimento do poder da canção, cuja letra clama: “Ninguém sabe nada aos 21 e aos 22”, (que idade eles tinham quando a banda começou mesmo??). Revisitar a própria inocência pode ser algo arriscado, mas não para o Death From Above, que parece fazer sarcasmo de tudo. Auto ironia é só mais um (dos vários) recurso na mão dos canadenses.
Por fim, a dissonante “Gemini” fala sobre uma garota que “chora no aniversário” e que mancha as paredes de sangue quando corta os pulsos (?!?!) (eis o DFA 79 e suas atormentadas personagens femininas). O riff geométrico e com competentes viradas compõem a típica música que só a banda seria capaz de fazer. De fato, poucos instrumentos, mas com uma química que preenche de forma competente e não deixa espaço para eventuais “lacunas”.
Uma piração tecnocibernética abre a faixa título, que encerra o disco: a canção sóm toma corpo lá pelos 0:30, um diálogo entre baixo e synths começa a criar tensão na faixa, que cresce até os 2min, para em seguida mandar tudo ladeira a baixo. Uma cavalgada quase heavy metal aliada a um vocal meio robótico dá o tom da música mais longa do disco. Perto do fim há ainda um solo, algo pelo qual a banda nunca foi muito conhecida, e um “outro” preenchido por um belíssimo piano que emula a melodia do solo (a combinação de elementos remete a “Do it”, faixa do primeiro EP do duo, de 2002). Destaque para o verso “I get the feelin’ this is never gonna end”. Ok, recado dado. Resta saber apenas se ele fala do suposto caos citado na faixa, ou se fala da própria banda.
Se de fato em “The Physical World” o amanhã chegou, a postura urgente da banda, quase de “não há futuro” permanece a mesma. Parece até que o tempo não passou para eles. E de forma alguma isso é negativo. Em termos de sonoridade e produção, a banda parece em sua melhor fase, mas a verdadeira essência, aqueles detalhes todos pelo qual uma banda se torna querida, permaneceram intactos. Se a banda voltou é porque o passado ainda tinha alguma importância, mas quando se propõem a fazer um novo disco, correm riscos, e arriscam porque querem que a volta seja mais do que apenas uma retomada saudosista. Querem ir além de apenas continuar tocando o único disco e enfrentar novos desafios, o que, em qualquer contexto, é respeitável.
É como se o disco tivesse sido feito lá atrás, em 2004, e ficasse guardado por 10 anos, só vendo a luz do dia agora. Um disco de 2004 lançado em 2014, e que faz pensar sobre como muita coisa muda em 10 anos. Faz lembrar-se de como era o mundo em 2004, bem menos ligado em redes digitais, bem menos ligado em compartilhamento de informações e onde se demorava mais para conhecer coisas (muita gente ouviu o próprio disco da anos depois do lançamento). Um mundo no qual o U2 não fazia “Spam” do novo disco em telefones celulares, um mundo onde celulares nem tinham tanta utilidade assim e fotos de nudez vazadas do iCloud eram apenas ficções no mundo das ideias. Relembrar o mundo como era há 10 anos talvez nos ajude a entender o quanto mudou (ou piorou?) na época em que vivemos. O mundo físico do Death From Above 1979, um dos grandes discos do ano, um álbum totalmente conectado à época em que foi concebido, que é 2004, logicamente.
– Bruno Leonel é jornalista e já entrevistou Márcia Castro e Siba para o Scream & Yell
Leia também:
– Death From Above 1979 fez um estardalhaço no palco principal do Coachella 2011 (aqui)
Definitivamente um dos discos do ano, junto com Ty Segall, Pixies, Parquet Courts, Ryan Adams, Real State, e mais algumas bandas que com certeza esqueci de mencionar, acho que esse ano foi um ano com lançamentos bacana, Leonard Cohen ficou fera também
Gostei muito também Fred! Este, o do Real Estate, do Phantogram e do Warpaint são alguns do meu “top 10” até agora.