por Marcelo Costa
Aurore é uma jovem pianista famosa, que ainda não atingiu o auge de sua carreira, mas já lota teatros e é bastante conhecida pelo público de música clássica. Como de praxe, dedicou anos a estudar e praticar no piano, o que fez com que sua vida amorosa fosse meio vazia, e esse sentimento se amplifica com a morte do pai. Desconsolada, Aurore parte para a casa da família, em Côte d’Azur, e começa a revirar o passado através de velhas fotografias e cartas, como se buscasse algo que perdeu, mesmo sem saber o que.
Jean é eletricista. Na juventude tentou se dedicar à música, mas as obrigações falaram mais alto e ele largou os sonhos optando por dedicar-se profissionalmente a instalação de alarmes de segurança em casas. Certo dia está trabalhando na casa da família de Aurore, conhece a pianista e começa uma amizade com a moça, que se inicia num almoço fortuito (a necessidade de companhia de Aurore é evidente) e parte para um relacionamento amoroso complicado por um fato: Jean é casado com Dolores, e ela não está muito a fim de perder o marido.
Por estes dois parágrafos, “Um Novo Dueto”, título tolo e reducionista para o original francês “Une Autre Vie” (“Uma Outra Vida”, 2013), soa um drama romântico óbvio – uma mulher desencantada se apaixona por um homem casado e precisará brigar por ele –, mas o diretor Emmanuel Mouret, responsável também pelo delicado roteiro, conduz o espectador com destreza por um território aparentemente conhecido, abastecendo-o de informações para que ele, precipitadamente, tire suas próprias conclusões (talvez óbvias e/ou erradas).
Essa interessante condução (há pouco texto no roteiro, e quase nenhum exagero. Mouret mantém um ritmo calmo liberando informações decisivas da história só quando desejar abrir uma nova porta para a trama) valoriza o jogo de espelhos que o primeiro título do filme explicitava: Mouret queria chamar seu sétimo filme de “Les Faux Coupables” (“Os Falsos Culpados”), porque gostaria de deixar em aberto a questão sobre a verdadeira vítima do adultério na história, mas acabou optando por “Uma Outra Vida”, que também abre um leque interessante de análise.
Uma outra vida para Aurore (Jasmine Trinca, ótima), a pianista (mimada) que se apaixona e, por esse amor, volta a se inspirar para seus concertos de sucesso enquanto encontra o amante às escondidas? Uma outra vida para Jean (Joey Starr, também ótimo), um eletricista que se apaixona por uma garota rica e vê nela a chance de deixar um relacionamento hipoteticamente sem amor? Ou uma outra vida para Dolores (Virginie Ledoyen, personagem menos crível), que pode testar o seu amor, o do marido e o do casal, e a partir disso decidir o que deseja?
Pouco presente em cena, Dolores é o grande personagem da história guardando para si as chaves para abrir a trama para o próximo fotograma, o que faz sua falta de verossimilhança incomodar ao acender das luzes devido a sua excessiva segurança e sabedoria romântica, atributos que pouco se relacionam com uma esposa traída, ainda mais para uma mulher que, o espectador ficará sabendo, namorou um único homem em toda a sua vida: Jean. Há muita frieza em Dolores, e a falta de rachaduras no gelo incomoda (mas não põe o filme a perder).
Ao final, “Um Novo Dueto” soa como uma análise sóbria, delicada e convincente da natureza complicada de um triângulo amoroso. Há sabedoria no uso metódico do clichê (o abandonado não mostra paixão ao querer abandonar, mas se coloca em dúvidas quando é abandonado) e profundidade na atenção minuciosa das relações humanas (desde a questão de classes até o sentimento de responsabilidade), soluções que valorizam um ótimo filme que é muito mais profundo do que se apresenta ao espectador.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne