por Izabela Costa
O calendário marcava dia 2 de fevereiro. O ano? 1997. O músico, cantor, compositor e agitador cultural pernambucano Francisco de Assis França, mais conhecido como Chico Science, morria aos 30 anos de idade. Vítima de um acidente de carro, no qual o cinto de segurança ativado não funcionou, Science saiu de cena de maneira trágica e abrupta, deixando companheiros de banda e fãs desnorteados. “Durante três anos ensaiamos todos os dias, a gente recriou a banda e simulou um novo som, uma nova forma de ver”, conta Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi, banda criada por Chico Science que, ao lado da Mundo Livre S/A, lançou as principais bases do movimento multicultural manguebeat na década de 90, em Recife.
Exatamente duas décadas após o lançamento do primeiro álbum, o clássico “Da Lama Ao Caos”, a Nação Zumbi gera agora um novo foco de atenções. O disco homônimo inédito, disponibilizado para download no começo do mês – e que também já se encontra em lojas físicas – saiu sete anos após o último álbum, o vibrante “Fome De Tudo”. Nesse meio tempo, a banda se dividiu em diversos projetos paralelos, o que possibilitou um ritmo de trabalho mais tranqüilo para o novo álbum. “A gente vinha numa pegada muito burocrática, tocando porque precisava de grana, não em função da arte”, relembra o guitarrista. “Principalmente o período que fomos parando, estávamos muito obrigados no palco. Era uma coisa que se sentia dentro da banda mesmo. Todo mundo sabia que precisávamos dar um tempo”.
Por telefone, Lúcio Maia bateu um papo com o Scream & Yell e comentou sobre o novo trabalho, as saudades de Chico e o aniversário de “Da Lama Ao Caos”, entre outros assuntos. Filosófico, o guitarrista também apontou a razão pela qual, vinte e três anos depois da criação da banda, ele, Jorge Du Peixe (vocal), Pupillo (bateria), Dengue (baixo), Toca Ogan (percussão) e Gilmar Bola 8 (tambor) continuam a criar: “As pessoas ainda estão interessadas em nos ouvir e ver como nos expressamos ao vivo, que é o mais importante para mim. Tô feliz de estar aqui”.
Como que está sendo o lançamento do novo disco (“Nação Zumbi”)? Muitas resenhas pontuam uma maturidade, mas a Nação por si só já é bastante madura. Queria entender como que vocês estão vendo esse novo trabalho sair aí, para o mundo.
A gente tinha muita certeza de que o disco estava bom, (então), de certa forma, já esperávamos críticas boas. Fizemos esse disco com calma quebrando um ciclo que vinhamos fazendo há 20 anos: fecha contrato com gravadora, marca data de gravação do disco, lança o disco e cai na estrada. Era assim, de dois em dois anos, e esse novo álbum quebrou essa rotina. Nos envolvemos em outras coisas depois do “Fome de Tudo” (2007). Lançamos o CD e DVD “Ao Vivo no Recife” (2012), fizemos o disco com o Mundo Livre (“Mundo Livre S/A Vs Nação Zumbi”, de 2013), que saiu pela Deck, e lançamos o Los Sebosos Postizos (“Interpretam Jorge Ben Jor”, em 2012), que também era um disco que já estava engatilhado… Eu, Pupilo e Dengue participamos da turnê da Marisa Monte, que durou quase dois anos também. A gente vinha numa pegada muito burocrática, tocando porque precisava de grana, não estava mais em função da arte. Principalmente o período que fomos parando (a banda), estávamos muito obrigados no palco. Apesar de que as pessoas não precebiam isso porque a Nação Zumbi sempre foi uma banda muito profissional, em relação ao show e ao comportamento. Era uma coisa que se sentia dentro da banda mesmo, não no palco. As relações internas… todo mundo sabia que precisava dar um tempo. Esse break foi um tempo legal para que a gente atingisse esse resultado, um disco de canções bonitas e relevantes.
E durante esses dois anos de produção do novo álbum, como rolou o processo de criação?
A Nação sempre teve uma diretriz de que a parte criativa sempre fosse coletiva. E sempre vai ser. Esses dois anos, lógico, foi uma coisa benéfica, deu para fazer o disco com calma, até porque existe uma visão depois de um tempo. Eu gravei, um ano depois escutei novamente e não gostei, não achei que estava legal, aí gravei de novo. O Jorge [Du Peixe] tem muito disso também. Acho que a gente pôde completar o disco de uma forma tranquila. Eu não sei te explicar o porquê dele ser mais enriquecido melodicamente, vai ver é o nosso momento, aquela circunstância que todos passamos ali. Principalmente Jorge e eu, nós vivemos problemas pessoais semelhantes que talvez tenham levado esse disco a ser mais introspecto, sabe? Um aspecto mais envolvente da abertura da alma, do modo de falar. A maneira como estamos abordando as coisas mais bonitas da vida, que é o amor. Eu acredito que tudo isso influenciou.
Em que sentido os demais trabalhos dos integrantes da banda influenciaram nesse disco novo?
Olha, não sei mensurar, mas houve influência sim, sem dúvida. Não sei em que quantidade, onde entrou, mas rolou. Com certeza, tudo que fazemos influencia na hora. A vida influencia mais do que qualquer coisa que esteja ligada ao trabalho. Todo mundo que trabalha com arte, com criatividade, sabe que a maior inspiração é a observação da vida.
Como que aconteceu a participação da cantora Lula Lira [filha de Chico Science, ela faz parte da banda Afrobombas] nos coros femininos desse álbum?
A gente convidou a Lula porque ela faz parte da nossa família, do nosso convívio. E ela sempre cantou muito bem. Pensamos em fazer nesse disco algumas canções com backing vocals femininos. Ela estava muito perto e foi imediato pensar nela. É algo que a Nação sempre traz, essa presença de mulheres em nossos álbuns. Cantoras como Céu e Lia de Itamaracá já participaram. Neste último, além de Lula, temos a Laya Lopes (O Jardim das Horas).
Outro ponto bastante tratado nas resenhas é a lembrança de Chico Science na canção “Cicatriz”. Além das saudades, o que ficou dele em vocês e que continua até hoje? Na hora que vocês se sentam para criar, ele aparece de que forma?
Não sei mensurar, mas ele está lá sim. Chico foi um cara que mexeu em tudo. O grande entusiasta da história inteira. Foi ele que montou a banda, foi ele que deu muita diretriz, foi ele que veio com essa ideia do mangue. Ela era um letrista, era o frontman que dava o incentivo para a gente se desenvolver no palco. Muita coisa que fazemos até hoje, muitos discos que lançamos, todo show, qualquer entrevista que a gente dá, já é em tom de homenagem, sempre tentando levantar essa importância dele. Passamos uma lição de vida que pouquíssimas pessoas passariam à diante depois de viver o que vivemos. Após a morte de Chico, tudo estava contra a gente voltar. Nessa época eu escutei um monte de comentário dizendo: “Ah, eu acho que a banda tem que acabar”. E foi uma coisa muito pessoal, sabíamos que seria a pior coisa do mundo terminar. Assim como foi o fim da vida dele, tão trágico, tão repentinamente parar aquilo ali, não queríamos que isso acontecesse com a música. Ficamos durante três anos ensaiando todos os dias! A gente recriou a banda e simulou um novo som, uma nova forma de ver. Muitos comparam: “Ah, prefiro mais antigamente, prefiro assim, assado” e eu entendo. Porque realmente é outra banda, não é mais aquela. E a gente não tem intenção nenhuma de ser aquilo que foi. Acho que hoje, depois de 17 anos da morte dele, estamos completando 23 anos de banda, vejo que a Nação Zumbi conseguiu se manter mesmo não tocando em rádio, não aparecendo na televisão. As pessoas ainda estão interessadas em nos ouvir e ver como nos expressamos ao vivo, que é o mais importante para mim. E é isso, estou feliz de estar aqui.
Nesse break vocês não ficaram parados, estavam no palco de qualquer forma. Mas como é reencontrar os fãs de Nação Zumbi, de fato? E a receptividade das novas músicas, como tem sido?
É uma sensação indescritível. Uma coisa assim muito inspiradora. Acho que todo mundo que trabalha com o público procura por esse tipo de sensação. Esse contato com o resultado final é o que alimenta a criatividade, alimenta a sua necessidade de se expressar politicamente. Você leva tanto tempo, desde quando você cria a música, cria o riff, até aquilo ali ser ensaiado, depois todo o processo gráfico até chegar nas mãos do fã e o fã dizer: “Caralho, gostei!”. Leva muito tempo, são muitas energias gastas até chegar aquele momento. Aí, quando você dá sua cara a tapa e as pessoas olham e dizem, “caralho, bixo! Ficou muito bom, valeu, muito obrigada!”, você sabe que valeu a pena. Com as novas músicas tem sido assim.
Esses dias li um depoimento do Liminha a respeito da produção de “Da Lama Ao Caos” (1994), que esse ano completa duas décadas de existência. Ele diz que durante a gravação, algumas coisas foram complicadas de se fazer. A partir daí, eu te pergunto: o “Da Lama Ao Caos” como a gente conhece poderia ter saído diferente? Existiu algo que vocês pensaram em colocar ali e não puderam?
Não, não… Ele é o que é porque foi assim. O disco só alcançou esse legado todo, só se tornou um clássico, porque ele soou desse jeito. Ficou tudo esquisito ali mesmo e de certa forma ficou como tinha de ficar, eu não vejo o disco diferente em absolutamente nada. Escutando-o hoje, sei que ele é um grande registro. Naquela época a gente não sabia nada direito, não tinhamos equipamento, nem experiência de gravação. Não tocavamos porra nenhuma direito, mas pra gente era muito fresco, muita energia da juventude. Chegamos no estúdio com o Liminha, um dos maiores produtores do Brasil, todo aquele legado dos anos 80 nas costas dele. Ele tinha sido d’Os Mutantes e era dono do Nas Nuvens [estúdio carioca onde o disco foi gravado], que era um estúdio absurdamente grande e moderno. Provávelmente o álbum ficou assim justamente por tudo isso acontecer.
E você consegue identificar atualmente bandas ou sonoridades que tenham nascido do Da Lama… ou acha que esse contato de gerações ainda não aconteceu?
Não e nem fico procurando essas coisas. Não saberia te dizer que tipo de influências outras bandas receberam, porque influência é uma coisa tão difícil de explicar. Você pode sofrer influência de um negócio e criar sua própria identidade, fazer diferente. Influência não é uma boa palavra para a gente dizer até onde essas bandas foram influenciadas. Pode ter sido muito, ou pode ter sido nada, não sei dizer. Mas sobre as bandas que agregaram tambores e outras percussões, eu acho ótimo. É ma-ra-vi-lho-so! Porque o Brasil tem uma tendência muito forte de virar as costas para sua própria identidade. Aqui no Sul existe um caguete horrível, que diz que tudo da Bahia para cima é “regional”. Pra mim, isso é um tema pejorativo. É de uma cultura que é própria de todo mundo que é daqui do Brasil. Quem tem a carteira de identidade e olhar lá em cima, vai ver assim: “Válida no território nacional”. Isso significa que essa cultura que a gente tem é de todo mundo, não é só minha não. Eu não toco maracatu porque eu sou pernambucano. Eu toco maracatu porque eu gosto da cultura brasileira. Do mesmo jeito que eu toco samba, do mesmo jeito que eu faço rock e gosto das outras coisas do resto do mundo. Eu acho que é meio chato esse tipo de relação (de chamar de “regional”). O que acredito que ficou de bom nisso tudo é que muita gente se inspirou. A Nação Zumbi teve a coragem de pegar e começar a usar coisas que a gente tinha aqui dentro. Em vez de ficar aquela repetição didática, transformamos em algo interessante. É maravilhosa toda a cultura do frevo, só que ela parou no tempo. A gente pegou o frevo e fez um negócio diferente, o negócio tomou outra dimensão. Todo mundo começou a enxergar o frevo de outro jeito. “Ah, mas isso aí não é frevo”. Lógico, não é mais. Eu acho que muita banda resolveu fazer isso, perdeu o medo.
E nessa linha de novidades, de gente fazendo diferente, como você me explica que mesmo já tendo mais de 20 anos de carreira, vocês continuam dentro daquele hall de grandes bandas de rock convidadas a tocar em grades festivais. A Nação Zumbi e os Raimundos foram os maiores nomes nacionais do Lollapalooza Brasil desse ano. Por que não tem gente mais nova nesse mesmo patamar?
Não faço ideia porque ainda não apareceu. Ás vezes já apareceu alguma coisa nova, pode ser que apareça amanhã, pode até mesmo ser que já esteja rolando alguma coisa e a gente não saiba. Quando a gente começou toda aquela movimentação no início dos anos 90, até ali a única coisa que tinha rolado no estado de Pernambuco tinha sido vinte anos antes, com Alceu Valença, Ave Sangria e toda aquela movimentação da década de 70. Ali eles já misturavam caboclinho com rock e não sei o que. E quando a gente começou em 90, encontramos tudo parado, nada acontecia. O boom dos anos 80 foi aquela onda das bandas brasileiras imitando as inglesas, aquilo ali não tinha nada a ver com a fomentação cultural brasileira. Uma coisa comercial e sem diretriz. Eu acho que foi legal, eu curti muito, mas foi isso. São coisas que acontecem de tempos em tempos. Não sei te dizer porque não tá rolando nada.
O que você tem escutado de novo, Lúcio?
Cara, eu entrei em contato com algumas coisas no Lollapalooza. Jake Bugg, aquelas meninas do Savages… O Bugg com elementos de country, achei bem legal. Aqui no Brasil gosto de pouca coisa, não tem nada excêntrico o bastante que me atraia (risos) e não sou muito a favor das coisas voltadas para o comercialzão.
No livro “Mondo Massari” (2013, Ideal), o Reverendo selecionou uma entrevista contigo no lançamento de “Homem Binário”, do Maquinado, em 2007. No papo, você diz que se organiza de um modo bastante simples: cada trabalho, uma pasta na área de ícones do seu computador. Se eu ligar seu computador hoje, quais pastas vou encontrar lá?
Um monte de ideias e coisas que eu ainda quero fazer. Minha relação é com música, eu gosto de me diversificar. Nunca fui um cara quieto. Pra mim é muito importante viver me expressando, sabe? Não sou o tipo de pessoa que se realiza com pouca coisa, e pensar em carreira é o mais importante, mais do que fazer discos. Eu sou músico, meu negócio é trabalhar com música, então é isso que eu faço. Se eu fosse advogado, teria quatro escritórios (risos).
– Izabela Costa (@izarcosta) é jornalista e editora do programa Perdidos no Ar
Me lembro bem o limbo que a Nação entrou com a morte de Chico Science
A volta por cima que eles deram é impressionante e inspiradora.
Eu mesmo não acreditava.
Três ou quatro discos excelentes sem Mr.Science, além dos ótimos projetos paralelos.
Quanto ao disco novo, tem belíssimas músicas aqui e ali, mas para o meu gosto o som da banda foi diluído.
É o Memórias Crônicas e Declarações de Amor deles. rsrrsrrss
A parada da banda é nunca se repetir, dou valor a isso.
Sendo assim, para mim erraram, mas tá valendo.
O show com certeza continua tinindo e trincando.
Dia 7 próximo estarei no Baile Perfumado – casa de show de Recife.
PS: Lúcio é foda e os dois discos do Maquinado são bala.
Faltou perguntar quando sai o terceiro.
E por que quando uma banda dilui seu som sempre se chama isso de amadurecimento?
Pô, desse jeito, assim como as goiabas, eu prefiro os artistas verdes.
Boa entrevista. Achei que poderia ter mencionado a participação da Marisa Monte no disco. A ciranda que ela participa considero um dos pontos altos.