por Pedro Camargo
A metamorfose se completa quando há coragem o suficiente para abandonar aquilo que te prende dentro do casulo. Pouco a pouco, as camadas da pupa vão se fragilizando porque a força da liberdade empurra, força e fere até o momento que a vitória se configura, as paredes se rompem e o voo torna-se uma condição inevitável.
“Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (2013), longa-metragem do cineasta e roteirista estreante Daniel Ribeiro, trata especificamente desse assunto em toda sua sutileza. Como se o tema da puberdade não fosse, por si só, dotado de uma complexidade acentuada – pontuado por dramas, descobertas pessoais, afloramento da sexualidade – o protagonista do filme, Leonardo (Ghilherme Lobo) é, ainda, um garoto cego. O enredo pode parecer melodramático, mas a solução cinematográfica trata de evitar a pieguice.
Há três anos no Youtube, o curta-metragem “Eu Não Quero Voltar Sozinho” angariou – até o momento – mais de três milhões de visualizações. Dezessete minutos da vida de Leonardo, sua amiga Giovanna (Tess Amorim) e de Gabriel (Fabio Audi) conquistaram um público surpreendente, levando em consideração o contexto brasileiro no qual não se tem culturalmente o hábito de contemplar o cinema independente, ainda menos, com temática homossexual – como é o caso.
Desde o início, o intuito era de que “Eu Não Quero Voltar Sozinho” se tornasse um longa, que chegou aos cinemas apenas em abril de 2014 explorando, através de um elaborado exercício cinematográfico, sensações alheias às da visão. A mixagem de som e a fotografia cumprem um papel primordial, que é o de passar para o espectador um pouco do despertar da sexualidade de Leonardo e do seu desejo por liberdade através da percepção do próprio personagem que não enxerga. A direção nos aproxima dele de modo que suas problemáticas – que, a priori, não são grandiloquentes – se tornam nossas, tornando impossível não torcer por ele.
O roteiro é uma versão evoluída e com diálogos muito mais possíveis e naturalizados daquele que foi usado no curta. Algumas falas e situações até foram mantidas – para a alegria dos fãs. Inspirado na delicada letra de “Janta” – do disco “Sou”, de Marcelo Camelo, um dueto com Mallu Magalhães –, o roteiro transita entre o humor e a tensão para explicitar o que uma das estrofes diz: “Cause I can forget about myself trying to be everybody else/ I fell alright that we can go away/ And please my day/ I’ll let you stay with me if you surrender” (Porque eu posso esquecer de mim mesmo tentando ser como todos os outros/ Eu concordo que podemos ir embora/ E fazer meu dia agradável/ Eu te permitirei ficar comigo se você se render).
Ao mesmo tempo em que Leonardo anseia por liberdade – se desfazer dos olhares preocupados de seus pais – ele acrescenta a esse desejo a possibilidade de fazer isso através do relacionamento com outra pessoa, no caso, Gabriel.
O reconhecimento em festivais como a Berlinale (Festival de Cinema de Berlim) – no qual o filme saiu com dois prêmios (Melhor Filme da mostra “Panorama” e Teddy Award) – vem não só pelo exímio trabalho técnico para naturalização da narrativa, mas também por trazer uma nova abordagem à questão LGBT no cinema. Por muito tempo, os filmes com essa temática se limitavam a retratos da dor e do sofrimento pessoal e social pelos quais os homossexuais passam por serem reprimidos.
Filmes como “Garotos de Programa” (1991), de Gus Van Sant, “Má Educação” (2003), de Pedro Almodóvar e o blockbuster “Brokeback Mountain” (2005), de Ang Lee, apesar de serem obras notáveis que deram grandes passos na questão da representatividade LGBT no cinema, abordam com mais entusiasmo pontos ligados aos percursos negativos pelos quais os gays trafegam em suas vidas. Recentemente, a visceralidade de “Azul É A Cor Mais Quente” (2013) também quebrou com essa lógica, mas, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” traz como inovação para o “cinema gay” o frescor de um romance positivo, quase clichê, por mais paradoxal que isso possa parecer.
– Pedro Camargo (@pseudrojoao) trabalha na Revista Cásper e assina o blog Royal Drama
Leia também:
– Duas visões sobre “Azul é a Cor Mais Quente”, por Lucas Guarnieri e Marcelo Costa (aqui)
– “Brokeback Mountain”: a história de um amor impossível, por Marcelo Costa (aqui)
– “Má Educação” padece de falta de acabamento (às vezes, excesso), por Marcelo Costa (aqui)