por Marcelo Costa
Uma das fixações de Sam Calagione, o fundador da Dogfish Head, cervejaria da pequena cidade de Milton, no Estado do Delaware, é estudar a história da cerveja, recriando receitas milenares. No caso da Dogfish Head Etrusca Bronze, Sam viajou para Roma junto com um arqueólogo molecular e os mestres cervejeiros italianos Leo DeVencenzo (Birra del Borgo) e Teo Musso (Baladin) visando analisar vasos em que eram produzidas cervejas pelo povo Etrusco, cerca de 2800 anos atrás. A espinha dorsal desta receita são duas linhas de cevada maltada e uma do trigo especial italiano Cappelli Senatore. Entre os ingredientes especiais encontram-se farinha de avelã, suco de romã, uva passa, três tipos de mel, flores silvestres e um pouco de lúpulo, que não existia na antiguidade – boa parte do amargor desta receita surge da adição de raiz da erva medicinal genciana e resina de mirra etíope. A Dogfish preparou a receita em um vaso de bronze enquanto a Baladin a envelheceu em barris de madeira e a Birra del Borgo optou por terracota. De coloração âmbar e espuma de média formação e baixa permanência, a Dogfish Head Etrusca Bronze traz no aroma um intenso frutado (laranja, romã, morango) e adocicado (caramelo, melaço) com leve percepção de especiarias mais trigo e feno. É preciso aguçar o olfato pra sentir um pouco que seja dos quase imperceptíveis 8,5% de álcool. O paladar é impressionantemente equilibrado para uma cerveja com tantos ingredientes “estranhos”. Dulçor e amargor acariciam as papilas e o céu da boca deixando um rastro de melaço e de malte. Há reforço de frutas (romã, frutas vermelhas, laranja, uva passa) e algo que remete a mate. O final é intenso e persistente enquanto o retrogosto é delicadamente frutado e melado. É uma cerveja ao mesmo tempo leve e complexa. Especialíssima.
Namasté, a witbier da cervejaria de Sam Calagione, foi lançada originalmente em junho de 2009, e é uma parceria da Dogfish Head com a cervejaria italiana Birra del Borgo, produzida pela primeira vez em homenagem e auxilio à cervejaria belga 3 Fonteinen, que devido a um problema no termostato, perdeu praticamente 100 mil garrafas de gueuze e kriek em 2009. Parte do lucro conquistado com a Namasté foi para cobrir o prejuízo da mítica 3 Fonteinen, e Sam Calagione acredita que o fato de homenageá-la levará novos bebedores a descobri-la. E o cervejeiro acertou na homenagem, incluindo na receita fatias secas de laranja orgânica, coentro e capim limão. De coloração amarelo palha e leve turbidez, a Dogfish Head Namaste apresenta uma magnifica formação de creme, de longa permanência. No aroma, notas cítricas e condimentadas envolventes conquistam o olfato. Percepção de laranja, trigo, coentro, limão e um azedinho espetacular. No paladar, a textura é um rápido frisante de corpo levíssimo que distribui acidez, doçura e cítrico replicando a percepção do aroma (frutas cítricas, especiarias e trigo), com o trigo sugerindo profundidade e refrescancia. O final é deliciosamente cítrico e o retrogosto, refrescante, remete a limão siciliano. Uma baita cerveja para o verão – e para acompanhar fish & chips e saladas.
A Dogfish Head Hellhound On My Ale foi produzida por Sam Calagione em parceria com o pessoal da Sony Legacy visando homenagear os 100 anos do homem que vendeu sua alma em uma encruzilhada, Robert Johnson, que seriam completados em 2011. Sam criou uma Imperial IPA extremamente aromática com 100 IBU (usando apenas uma dose violenta de lúpulo Centennial), 10% de graduação alcoólica e de coloração de 10 SRM (âmbar), mais adição de limões (com casca e tudo). Na taça, um creme de bela formação cria rendas belgas na lateral do copo, que permanecem ali durante um longo tempo. No quesito aromas, eles saltam da garrafa assim que ela é aberta distribuindo deliciosas notas cítricas (muito limão e um pouco de acerola) sem encobrir o malte, que marca presença com sugestão de caramelo e melaço. Há, ainda, sugestão de resina, pinheiro e leve amadeirado. No paladar, a textura é quase licorosa e o corpo é alto promovendo certo aquecimento assim que a cerveja toca o céu da boca. O amargor é intenso e agradável, com notas cítricas acentuadas pelo limão envolvidas pelo melaço do malte criando um conjunto estranho e viciante. Há muita cerveja com IBU altíssimo no mercado, mas que alivia com uma dose generosa de malte e especiarias, o que não é o caso da Dogfish Head Hellhound On My Ale. Ou seja, você irá se lembrar do Centennial durante um bom tempo, pois ele risca a garganta deixando para trás uma camada de cítrico e amargo que apaixona (principalmente os amantes de amargor, afinal, de doce já basta a vida). O final é longo e, adivinha, amargo. O retrogosto traz cítrico, resina e caramelo. Excelente.
Para festejar o 40 º aniversário do lançamento original do icônico “Bitches Brew”, de Miles Davis, a Sony procurou Sam Calagione pedindo para que ele produzisse uma cerveja inspirada no álbum e em Miles Davis. Toda a história da produção da Dogfish Head Bitches Brew rendeu um excelente episódio da série Brew Masters (Mestres Cervejeiros, passou no Brasil via TLC), em que Sam e equipe explicam direitinho o que procuraram fazer. Inspirados pela capa do disco, que junta o rosto de uma mulher negra com o de uma mulher branca, Sam pensou em fazer o mesmo com a cerveja misturando 3/4 de Imperial Stout (com maltes Barley, Cristal e Amber mais açúcar escuro africano) com 1/4 de uma bebida etíope chamada Tej, um hidromel aromatizado com folhas em pó e galhos de gesho, uma planta africana: a metade negra e a metade branca de “Bitches Brew”. Na taça, uma cerveja com uma coloração preta exibe um creme âmbar de ótima formação e média permanência. A ideia de Sam Calagione é que o mel, colocado no final do processo, aparecesse no aroma, mas a força do malte torrado impera sugestionando café, chocolate amargo, açúcar mascavo, baunilha e ameixas. Após o choque inicial do malte torrado é possível perceber um dulçor melado, apaixonante. O paladar é deliciosamente complexo: o amargor (leve: IBU 38), o adocicado e o picante derivado dos 9% de álcool chegam juntos, e provocam uma deliciosa confusão de sabores, ora remetendo a frutas escuras, ora remetendo a tabaco, ora remetendo a chá, ora remetendo a caramelo, ora remetendo a café e por ai vai. O final é um rastro de malte torrado (café) envolto em mel enquanto o retrogosto traz caramelo e um levíssimo defumado. Miles Davis aprovaria. Fácil.
As quatro cervejas acima foram compradas em uma distribuidora de cervejas em Nova York custando entre US$ 9 e US$ 12 dólares (garrafas de 750 ml).
Dogfish Head Etrusca Bronze
– Produto: Traditional Ale
– Nacionalidade: EUA
– Graduação alcoólica: 8,5%
– Nota: 3,66/5
Dogfish Namasté
– Produto: Witbier
– Nacionalidade: EUA
– Graduação alcoólica: 5%
– Nota: 3,67/5
Dogfish Head Hellhound On My Ale
– Produto: Imperial Double IPA
– Nacionalidade: EUA
– Graduação alcoólica: 10%
– Nota: 3,81/5
Dogfish Head Bitches Brew
– Produto: Imperial Stout
– Nacionalidade: EUA
– Graduação alcoólica: 9%
– Nota: 4,43/5
Leia também
– Top 1001 Cervejas, por Marcelo Costa (aqui)
– Leia sobre outras cervejas (aqui)
– Sobre todas as cervejas da Dogfish Head postadas aqui (aqui)
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