por Leonardo Vinhas
No anoitecer de uma terça-feira gelada do fim de maio, a garoa não dava trégua. São Paulo se preocupava mais com o frio e o trânsito lento do que com protestos e manifestações populares. Com o feriado de Corpus Christi chegando na quinta-feira e com aquele clima, só estava na rua quem não tinha outra opção – leia-se trabalhadores e estudantes. Mesmo assim, uma rua Augusta pouco movimentada tinha encantos suficientes para impressionar dois integrantes da banda chilena Los Tres, que faria uma apresentação inesquecível no Centro Cultural Rio Verde no dia seguinte.
Ángel Parra (guitarra, charango e banjo) havia encarado a chuva forte de poucas horas atrás para conhecer os arredores. Álvaro Henriquez (guitarra e vocal) ficou zanzando em busca da Avenida Paulista em companhia de Claudia Schlegl, assistente da banda. Surpreendemente, não a haviam encontrado. Ainda assim, ambos comentavam o clima boêmio dos arredores, e o quanto o lugar era “rocanrol” (o equivalente castelhano do nosso “roque”, só que a sério).
E o rock, na percepção muito particular dos músicos, foi o tema principal da conversa que se seguiu no saguão de um hotel simples no Baixo Augusta, próximo à Praça Roosevelt. Ali, dois dos músicos mais populares e ricos do Chile, estrelas também no México e respeitados em outros países da América do Sul, mostravam uma simplicidade atípica em rock stars com mais de 20 anos de carreira. Mais raro ainda, conservavam intactos o amor e o respeito pela música e pela ideia de ter uma banda. Não lhes incomodava em nada estar trocando plateias de sete, oito, dez mil pessoas por públicos muito menores (o show em São Paulo não teve nem cinquenta pagantes).
A trajetória da banda começa em 1991, na simplicidade do rockabilly e do blues, mas passa também por uma formação musical complexa. Ángel faz parte de uma família com incomensurável tradição artística no Chile: sua avó, Violeta Parra, é um dos nomes mais importantes da Nova Canção Chilena, movimento artístico da década de 1960 que é considerado o ápice de qualidade da música popular do país – do qual também participaram, com igual importância, seus tios Roberto, Eduardo e Nicanor. Seu pai, homônimo a ele, treinou-o tanto no folclore como no jazz. O baixista Roberto “Titae” Lindt (“não temos notícias dele há dois dias, encontrou com um amigo e pelo visto está se divertindo”, me disse tranquilamente o produtor da banda – mas reapareceu para o show, lépido e faceiro) também teve formação jazzística. Como Álvaro, estudou em conservatório.
As credenciais poderiam apontar para um virtuosismo estéril ou para floreios nos quais a técnica supera a execução. Mas nunca foi o caso. Mesmo em discos com um trabalho harmônio mais rico, como o clássico “Fome” (1997), sobressai a paixão pela música e o tesão por tocar com o que eles definem como “atitude roqueira”. Uma atitude que dá bem para entender no papo que se segue.
Qual é a motivação de uma banda que tem grandes públicos em sua terra natal e outros lugares para vir a um país tocar para pouca gente, que ainda por cima não os conhece?
Álvaro: Tem a ver com uma coisa que sempre nos interessou, e provavelmente sempre interessará, que é aprender. Quando vamos ao Brasil ou México – ainda que no México seja diferente, temos verdadeiros fanáticos por nós lá – que são países com uma tradição musical tão incrivelmente extensa, não há nada a fazer que não seja vir e aprender com os músicos desses lugares. É uma grande oportunidade.
O legal é que vocês vieram para a Virada Cultural Paulista (tocaram na cidade de Assis). É um evento de rua, que acontece no litoral, no interior, nas capitais. Acham que a natureza desse evento cria um clima diferente para o público se interessar pela música de vocês?
Ángel: Bom, as pessoas se cansam um pouco, como em toda parte do mundo. Mas é incrível que haja gente o tempo todo na rua [na Virada]. E é incrível que se realize esse tipo de evento em um país tão grande, em tantas cidades diferentes. Para nós, que somos tão pequenos em todos os sentidos no Chile, é algo que nos motiva e nos dá muito prazer. E funciona como motor para uma banda que tem mais de 20 anos, motiva ir a lugar onde as pessoas não te conhecem.
Álvaro: A coisa toda se parece com o começo da nossa carreira. É um excelente momento para se colocar à prova como músico e, sobretudo, como membro de uma banda. Volta o conceito de que somos uma gangue, um grupo de grandes amigos que sai para as ruas para fazer zona. E é muito divertido para nós, que estamos acostumados a tocar em lugares grandes onde todo mundo conhece nossas canções e as canta. Aqui, por exemplo, tocamos “Tirate” do começo ao fim, uma coisa que não acontecia há anos, porque o público sempre canta com tanta força que deixamos para eles cantarem. E aqui não. E até por isso nos divertimos muito, te juro. Eu terminava uma canção deixando um acorde soar, esperando ouvir aquela gritaria que sempre acontece, e… aplausos tímidos (risos). E por causa disso, nos jogamos pra valer. Depois de vinte e tantos anos de trajetória é muito bom tocar em um lugar onde literalmente ninguém te conhece.
E isso mostra também o poder que a música tem, a força que ela exerce mesmo em quem a desconhece.
Ángel: Totalmente.
Álvaro: O pique [do público brasileiro] é muito bom. E isso impacta na execução, muda muito como tocamos. E foi como se estivéssemos tocando para 50 mil. Nos sentimos assim.
O pessoal do Attaque 77 fez um show aqui em São Paulo esse ano e falou a mesma coisa, que fazia anos que eles não cantavam seus hits, como “Hacelo por Mi”, inteiros.
Ángel: E olha que esse é um grupo que não canta nada (risos), estão sempre… (faz o gesto de abrir o microfone para o público).
Álvaro: Creio que isso faz o cara se lembrar de coisas muito bonitas, de muito tempo atrás, das melhores coisas de quando estávamos recém-começando, como experimentar canções novas, ver como o público reage, se aplaude ou não… E a reação sempre varia (risos).
É raro ver essa valorização da música, essa relação próxima com ela, principalmente em muitas bandas veteranas, que parecem cinco ou seis profissionais que estão batendo ponto no cenário. Claro que estar no palco é um trabalho, mas se supõe que quem está ali está aproveitando mais do momento, que aquilo oferece mais que um simples emprego…
Álvaro: Sim, muito mais! Comprei uma camiseta que diz “A Música Ultrapassa a Morte”, e acredito que é assim, sem tirar nem por. Chegamos do Chile em São Paulo e já seguimos para Assis. É uma viagem muita longa e cansativa. Mas como te disse, proporciona essa sensação de voltar a ser aquela mesma gangue, os mesmos bandidinhos (risos).
Conhecem Rita Lee?
Ángel: Como não?!
Álvaro: Claro. D’Os Mutantes! Não é?
Isso. Ela diz em uma canção que roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido.
Ángel: Ah, é? Que massa!
Álvaro: Tem que ter. Para tocar ‘rocanrol’, tem que ser bandido.
Não pode ser como essas bandas emos, nas quais os moleques parecem boy bands (risos), parecem bons meninos.
Ángel: Não! Não pode ser assim, não se toca rock desse jeito. É duvidoso.
Álvaro: São como os punks de fim de semana, que se comportam muito bem durante a semana, e, no fim de semana, dão tchau pra mamãe e papai e vão ser punk porque é divertido (risos).
A base da sonoridade de Los Tres está no rock’n’roll mais básico, mais antigo. Assim, essa herança marginal é importante como opção artística, ou tem a ver também com não se interessar pela estética e pela sonoridade de coisas mais modernas?
Álvaro: Começamos como qualquer roqueiro verdadeiro, carregando a herança mais antiga de todas, que é tocar pelas ruas. Tocávamos em uma esquina se fosse preciso. Saíamos pela rua pregando os cartazes dos shows em postes e paredes, levávamos nossos instrumentos e equipamentos de metrô ou de ônibus, Muitas vezes tocamos do lado de fora dos lugares, na rua mesmo [Nota do repórter: como faziam os Violent Femmes no começo da carreira, tocando na fila de shows de bandas mais conhecidas]. Viajávamos em uma caminhonete muito pequena, sabemos bem o que é passar frio na caçamba ou na cabine, viajar com mais um monte de gente, precariamente. Isso te dá estrada, e estrada dá crédito. E isso é muito importante, sem essa estrada talvez não estivéssemos juntos. Se não fosse assim, pensaríamos, “ah, Brasil: ninguém nos conhece, não vamos”. Temos a cota necessária de estrada para ser essa banda ‘callejera’ [de rua, andarilha].
Não se faz rock sem rua e sem estrada?
Ángel: O que se aprende na rua está relacionado com a música que tocamos: rockabilly, blues, que são músicas de gente que sai tocando com o que tiver à mão, uma escova, um balde o que for. E no caso do Chile, tem uma história de cantores populares, que sobem nos ônibus para cantar. Isso nos emociona desde garotos.
A arte de rua é a mais universal. E blues, rockabilly, folk, têm fãs no mundo todo por essa origem de rua.
Álvaro: A música que a gente gosta é a que vem daí, você percebe na hora se esse ingrediente ‘callejero’ está presente. Por exemplo: Cartola. Esse cara era a rua em pessoa! Nós gostamos muito! O jazz guachaca, inventado pelo señor Roberto Parra, é um jazz a la chilena, muito impreciso, mas cheio de sabor, de elegância, de pigarria, diferente do jazz clássico, e também é algo de rua, que sempre tocamos e do qual aprendemos muito.
A música do Chile, em quase todos os gêneros, tem uma forte preocupação política. Por questões ligadas a captação de recursos e pelo próprio cenário atual, aqui no Brasil anda se discutindo bastante se o rock deve assumir uma posição política.
Álvaro: Acredito que qualquer músico – qualquer ser humano – tem que ter consciência política. A política é o que rege a sociedade e o mundo. No caso do Chile, tivemos uma história recente parecida com a de vocês e de toda a América Latina, com a ditadura militar. Por causa dela, não há um único chileno sem consciência política, e acho que é assim que deveria ser. Não é algo que ocupe 100% do nosso tempo, claro. Mas sim, são coisas que nos afetam como artistas, pois os artistas estão metidos com o que acontece com seu país. Talvez não de forma pontual mas há, sim, coisas que nos afetaram diretamente. E independentemente de pensar se o rock tem ou não que estar diretamente vinculado à política, os roqueiros são uma força para a consciência política.
Até porque o rock, a música popular, influenciam nosso dia a dia. E não estamos falando só de macropolítica. Tem a micropolítica: como você se comporta no seu dia a dia, como trata as pessoas do cotidiano, também é um conjunto de atitudes políticas.
Ángel: Totalmente! A música chilena nos anos 1960 tratou de copiar muito o que era feito nos Estados Unidos, os nomes da bandas e cantores eram em inglês… E de repente veio a nova canção chilena, que tem a ver com o que vinha acontecendo dentro do país, e era uma música de alta qualidade. Outra etapa veio com a chegada da ditadura, quando a rádio ficou sob controle do governo e veio um movimento chamado ‘canto nuevo’ e é algo do qual para mim não sobrou nada, não consigo aproveitar, não vejo aporte algum. Não havia atitude nem boa música. Até que vem a canção de protesto, que não era necessariamente tão boa, mas tinha a atitude. A nova canção era incrível, com Victor Jara e tudo, mas depois não há nada chileno que me chame a atenção…
Álvaro: Era tudo muito chato, não?
Ángel: Era, não havia nada! Era horrível.
Álvaro: Escutávamos então coisas de blues, de ‘rocanrol’, que eram incendiárias, (vibrando) “vamos queimar as ruas”! Íamos para o choque, para o confronto! (risos)
Ángel: E essa música dos anos 1970 não ia ao choque, era uma música metida, do jet set.
Aqui no Brasil, há quem diga que praticamente ninguém toma posições assumidamente, que se coloque de um lado específico…
Ángel: Não há nenhum artista que tome essa posição?
Álvaro: Nem no rap? Tinha um artista nos anos 1990 que fazia isso, era… (tentando lembrar)… Gabriel?
Gabriel, o Pensador.
Álvaro, Gabriel, o Pensador! Isso! Esse era legal.
Agora ele não anda nada combativo…
Álvaro: Ah, tá.
Mas o rap é uma coisa segmentada no Brasil, não é algo que você vá escutar na rádio, ver na TV.
Ángel: Mas é contestador? Fala da sociedade, do governo dessa merda toda?
Sim. De maneira geral, sim. Mas não tem difusão.
Ángel: (suspira) Faz sentido.
Álvaro: O Chile é um país muito pequeno, nem dá para comparar, mas falamos de maconha abertamente, desde sempre. Falamos de política, de Pinochet, criticamos a direita, e sempre tirando sarro, assumidamente. Somos conhecidos por dizer o que sentimos sem ter que dar explicações a ninguém.
E vocês acreditam que o rock ainda importa para as pessoas no Chile?
Álvaro: O rock e a música como um todo importam. Mesmo quando estamos tocando uma canção que não tem a ver com o rock enquanto estilo, ela mantém o espírito. O rock não cabe em uma etiqueta, em um visual. Você pode ser um batuqueiro e fazer rock. Não gosta do visual rocker, das guitarras, mas tem o espírito combativo.
Pois é. Inclusive a música de vocês não vai atrás dessa coisa de guitarras altas, em alguns momentos é até predominantemente acústica. Depois dos anos 1990, com toda aquela distorção, vocês mantiveram sua pegada. Mesmo em “Se Remata el Siglo” (1993), seu disco mais pesado, a linguagem é mais hard rock que qualquer outra coisa. Nunca quiseram correr atrás dessa sonoridade mais suja, mais agressiva?
Ángel: [torcendo os lábios em desprezo] Esse som meio grunge? Não, nunca…
Mas nada dos últimos anos encanta vocês? Como veem a música atual?
Álvaro: Eu gosto de bastante coisa. Talvez não tão nova, são coisas de 2000, 2005, como Jack White, Tame Impala, Black Keys, muita coisa interessante, grupos mais decididos em seu estilo, que exploram mais suas vertentes. E conheço bem as canções que esses caras gostam. Em casa tenho uma coleção muito grande de blues: Son House, Charley Ptton, Robert Johnson, Sonny Boy Williamson…
Ángel: São as mesmas influências que as nossas.
Estamos falando tanto de rock, mas o que vocês têm de referência do rock do Brasil?
Álvaro: Os clássicos.
Ángel: O que ouvíamos desde pequenos era Paralamas.
Álvaro: Sim, Paralamas! Excelente!
Ángel: Tinha outro que era bom, mas acho que acabou, o Skank. Da época mais antiga, conhecia Chico Buarque e outras coisas que meu pai ouvia. Botafogo é brasileiro?
Argentino. [Nota: Ángel se refere a Miguel Botafogo, guitarrista das bandas Pappo’s Blues, Blacanblus, Los Guarros e outras]
A conversa se estende, passando por Raul Seixas (Ángel anota o nome do DVD “O Início, o Fim e o Meio” para ir atrás mais tarde), rap brasileiro, a antológica passagem do White Stripes pelo Brasil, o preço cobrado pelos excessos roqueiros e sobre Cartola. Ángel se despede e eu, Álvaro e Claudia Schlegl saímos na chuva. Finalmente eles chegam à Paulista, com a qual se encantam. No Conjunto Nacional, Álvaro diz: “Aqui você entende o que é ter a cultura literalmente na sua esquina. Um lugar como esse…” Na Livraria Cultura, ele fica com a alegria de uma criança que visita a loja de brinquedos pela primeira vez e compra Demônios da Garoa, Bezerra da Silva, Sivuca, Dominguinhos, Chico Science & Nação Zumbi e muitas outras coisas – inclusive um songbook de Cartola (convenço-o a tocar a versão de “O Mundo É um Moinho” que ele me confessou ter feito, mas nunca executado em público). Surpreendentemente, um dos vendedores da loja reconhece Álvaro. “Soy fanático de su banda”, diz, em bom espanhol, o rapaz. Enfim, uma pequena prova de que a história que “ninguém conhece Los Tres no Brasil” não é 100% verdadeira.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. Fotos do show em São Paulo por Marcelo Costa (@screamyell)
muito legal!!!!!!!!!!!!
Confesso que não conhecia essa banda, mas devido a boa entrevista vou procurar ouvir o trabalho deles. Sugiro que vocês postem uma continuação com essa parte onde falam sobre Raul, rap brasileiro e Cartola.