A volta olímpica dos Mockumentários
por Mateus Ribeirete
Daqui a algumas horas, “The Office” acaba. Ou melhor, até a publicação deste texto, até mesmo o antepenúltimo parágrafo, ele já vai ter acabado. O seriado norte-americano, adaptação do trabalho de Ricky Gervais e Stephen Merchant para a BBC, chegou à nona temporada em baixa, se comparado a seu período mais sublime. Ainda assim, manteve índice respeitável de audiência, e, segundo os produtores, não recebeu pressão da emissora NBC para ser encerrado; duas evidências do sucesso acumulado pela comédia de mocumentário (do inglês mockumentary, falso documentário) ao longo de sua trajetória.
O afastamento à série britânica engrandeceu a adaptação: se o “Office” original é soturno e pessimista, brilhante à sua maneira, a grande jogada de Greg Daniels e Michael Schur, produtores (que também vieram a criar “Parks and Recreation”), concentrou-se na criatividade com que os personagens levavam a vida mundana justamente para escapar dela. O apego dos fãs à empresa Dunder Mifflin logo surgiu, e de repente milhões de pessoas chegavam em casa do ofício para, quem diria, acompanhar um escritório.
Com o tempo, principalmente após a saída de Steve Carell (Michael, chefe comicamente lamentável), o desenvolvimento dos personagens não vingou, ou se tornou entediante. A trama romântica principal (Jim e Pam) foi resolvida e os roteiristas pareceram preocupados em apenas renovar histórias antigas. Do mauricinho Andy fizeram um novo e piorado Michael; o romance secretária-vendedor também voltou, desta vez com Erin; tal qual a infinita transição da companhia. Personagens acabaram desgastados, sem muita razão de ser, ou sem boas ideias para lidar com a falta de razão de ser.
A solução da temporada atual foi romper de vez com a quarta parede, dando voz a operadores de filmagem e som que nunca haviam aparecido. Tal revelação resultou, olha só, num documentário estilo reality show – e assim os episódios finais contêm, sob nossa visão enquanto audiência, cenas de personagens fictícios em um documentário assistindo a eles mesmos enquanto personagens reais dentro de um documentário da vida real, num contexto fictício –, e viva o metaentusiasmo.
Se Jim, Dwight, Pam e afins estão dando adeus, há uma família tão prestigiada quanto excêntrica fazendo o caminho de retorno. Depois de sete anos fora do ar, os Bluth, protagonistas da aclamada série “Arrested Development”, voltam a dar as caras, agora produzidos pela Netflix. Todos os quinze episódios da quarta temporada vão ao ar no dia 26 de maio, após amontoar especulação e ansiedade dos fãs por bastante tempo. Estamos falando, pois, de um seriado que nunca passou por má fase: seu regresso inspira otimismo no fã mais árduo ao mais cético quanto a qualquer tipo de retorno. O trailer abaixo já foi visto mais de um milhão de vezes.
Criação de Mitchell Hurwitz, “Arrested Development” não é bem um mocumentário. Embora as câmeras simulem efeito de documentário ou reality show, as linhas entre realidade e ficção são borradas e duvidosas; há momentos incertos quanto à sensação de quebrar a quarta parede e não existem depoimentos em talking head. Fosse um, portanto, seu objetivo não estaria totalmente claro. Os episódios são narrados pelo produtor executivo Ron Howard, com direito a spoilers, falsos spoilers e cortes repentinos, além de autorreferências, piadas escondidas e todos esses elementos que a crítica adora e que tornam os fãs obcecados.
Apesar das peculiaridades, a concepção da série pega muito do Office britânico, que pode não ter criado o falso documentário, mas certamente o estabeleceu na cultura popular. Num primeiro contato, espectadores podem achar o gênero meio monótono, ou não entender bem a proposta, mais ou menos como o filme “This Is Spinal Tap”, mocumentário de 1984, não foi admirado de início até ser devidamente compreendido e degustado. A mesma sorte não tiveram “Fear Of A Black Hat”, 1993, e “Waiting For Guffman”, de 1997: muitos elogios, baixa audiência. Quantas não foram as pessoas que viram “Borat” sem entender muito bem se aquilo era ficção ou “de verdade”, porque, afinal, parecia.
Um ano após o “Office” original, encerrado em 2002, “Arrested Development” e “Reno 911!”, outros mocumentários, surgiram na TV americana; o primeiro na Fox, “Reno” no Comedy Central. Já o escritório estrelado por Steve Carell só apareceu em 2005, e graças a seu êxito a NBC também apostou em “Parks and Recreation”, comédia sensacional que após uma primeira temporada fraca caminha para seu sexto ano em nível inacreditável. Sob a mesma linha de “The Office” – a ideia original era um spin-off –, o documentário segue um departamento governamental da fictícia cidade de Pawnee, seguindo a inabalável Leslie Knope (Amy Poehler), acompanhada de personagens muito bem escritos. Aliás, pai imitando o filho: no último episódio do “Office”, a cena do “bate-papo com os autores” em muito remete aos fóruns públicos de “Parks and Rec” (como o do vídeo logo abaixo).
Nos acostumamos ao falso mocumentário de comédia, às piadas provenientes do silêncio ou do olhar desconfortável de um personagem. “Modern Family”, por exemplo, costuma ter mais de dez milhões de espectadores por episódio, número atingido por poucos. (Seria, em termos de apelo, o “Friends” atual?). A sensação de vigilância dentro de um estilo cru e direto, altamente satírico, fez muito bem à comédia. Hoje, sitcoms de várias câmeras e risadas gravadas, como as séries de Chuck Lorre (“Two and a Half Men”, “The Big Bang Theory”), parecem ultrapassadas, limitadas. Em contrapartida, seria inocente apostar que o fôlego do gênero é inesgotável.
O mocumentário em algum momento há de se desgastar, até porque ele também limita o experimentalismo, teoricamente. Ao dispor de uma visão neutra, fria, documentada, torna-se complicado distorcer a realidade, ou a noção dela. “Community” e “Louie”, dois seriados não-documentários, por exemplo, conseguem ir fundo em viagens próprias sem perder em humor ou metalinguagem.
Foi justamente a capacidade de borrar o próprio formato que elevou “Arrested Development” (e, possivelmente, lhe afastou audiência). Afinal, “existe um livro capaz de te ensinar tudo que precisa saber sobre a vida… ‘Os Irmãos Karamazov’, de Fyodor Dostoyevsky, mas ele não é mais o bastante”, a citação de “Slaughterhouse-Five”, livro de Kurt Vonnegut, simboliza a fome pelo pós-moderno, que nos confunde numa imersão divertida à dúvida de realidade. É chato terminar um argumento em “pós-moderno”, mas os artifícios de narração e desembreagem de “Arrested Development”, por exemplo, têm muito de Vonnegut, assim como um funcionário da Dunder Mifflin desligando o microfone e deixando sua televisão muda, and so it goes.
No fim das contas, o mocumentário pode e deve perder força, mas antes disso terá, no mínimo, sua volta olímpica. De mortuis nihil nisi bonum: vale lembrar os grandes momentos de “The Office” e estimar o retorno de “Arrested Development”. Se daqui pra frente tudo ruir, ao menos juntamos risadas duradouras.
– Mateus Ribeirete escreveu sobre o livro “Ascensão e Queda do Britpop” para o Scream & Yell e integra a equipe do recomendadíssimo Defenestrando -> http://www.defenestrando.com