Viagens do Vlad #1
O sabor do peixe
Texto e fotos por Vladimir Cunha
Se você está visitando o Marrocos pela primeira vez, um conselho: jamais aceite ajuda de ninguém. Mal você coloca os pés no país e uma enxurrada de guias, vendedores, taxistas, pedintes, crianças e toda a sorte de golpistas partem para cima. Eles oferecem de tudo: transporte, comida, água, guias turísticos, haxixe. E pedem de tudo também. Dólares, euros e até peças de roupa. Mas não desista. Visitar o Marrocos é uma daquelas experiências pelas quais vale a pena viver.
Tinha chegado ao porto de Tânger através de Tarifa, uma pequena cidade no extremo sul da Espanha, na Andaluzia, divisa entre o Mediterrâneo e o Atlântico. Trata-se de uma vila fortificada, um ponto estratégico que já pertenceu a mouros, franceses, romanos e até espanhóis. Por causa da localização, a cidade é açoitada diariamente pelo Levante, uma corrente de vento fortíssima que sopra do Mediterrâneo para o Atlântico. É o que faz de Tarifa um dos melhores lugares do mundo para a prática do kitesurf. E é o que dá a cidade um ar relaxado e uma vida noturna animada, cheia de surfistas, hippies, ciganos, gatinhas mochileiras e músicos de rua. Uma espécie de Saquarema andaluz localizada em um dos lugares mais bonitos do planeta.
Tânger fica a um pulo de Tarifa. Cerca de 30 minutos de ferryboat. No porto, o fluxo é constante. Europeus, africanos, árabes, norte-americanos de camisa florida e berberes. Japoneses, muito poucos. Francês, swahili, espanhol, italiano, inglês, português, árabe. A profusão de línguas é imensa. Todo mundo ali está indo ou vindo de algum lugar. Tânger é isso: um lugar de passagem, não exatamente marroquino, mas planetário. A porta de entrada para a África, que já viu dias melhores e hoje sobrevive de aspectos que fizeram parte do seu passado grandioso. Os palácios, os prédios coloniais, os cafés, a Medina. Está tudo lá. Sem muito brilho, mas com um charme que remete aos seus tempos de glória.
Localizado no início da Escallier Waller, uma das muitas entradas da Medina de Tânger, Saveur De Poisson (Sabor de Peixe) foi a grande surpresa do meu primeiro dia na cidade. Chegar até lá não foi fácil. O restaurante fica em uma das áreas mais movimentadas de Tânger e fazer esse percurso demanda uma boa dose de paciência. Mal ponho o pé para fora do hotel e um garoto começa a me seguir por três quarteirões pedindo dinheiro. “A Medina é um labirinto, sem mim você vai se perder lá”, insiste ele em um inglês carregado. Outro garoto chega junto e descobre, não sei como, que sou brasileiro. Começa com um papo sobre futebol (“Pelé! Kaká! Ronaldo!”) só pra depois tentar me empurrar um bonequinho feito de arame (“Artesanato local”, insiste). Um africano de terno me pára e me entrega um panfleto de supermercado. Eu pego e, muito rapidamente, ele coloca em minha mão um perfume Paco Rabane falsificado. Devolvo e ele não aceita, alegando que eu o havia comprado. Mal me livro do africano e dois rapazes colam em mim. Quando digo que não quero guia a resposta vem de imediato.
“Não, amigo, não somos guias”, responde um deles, “Somos estudantes, queremos praticar o inglês”.
“Porra, legal. Até porque tô sem grana. Mas podemos conversar, sim. Tão a fim de falar do que?”, retruco enquanto os dois se afastam desanimados.
E assim foi. Do Hotel Rembrandt, onde estava hospedado, até a entrada da Medina, fui me desviando de todo o tipo de prestador de serviço, estudante de línguas, guia turístico, artesão e comerciante de tapetes. Todo mundo no Marrocos está sempre pronto a vender qualquer coisa, mostrar a cidade, “praticar o inglês” ou, simplesmente, pedir dinheiro. Paciência e firmeza nas respostas ajudam. Uma frase em árabe, “La La, chucran” (“Não, não, obrigado”), te livra de qualquer assédio em dois palitos.
Mas o papo aqui é comida. De cara é preciso saber que Saveur De Poisson é o melhor peixe de Tânger. O lugar é minúsculo, apenas oito mesas e um garçom poliglota que é a maior figura. De acordo com a filosofia do dono de só trabalhar com ingredientes frescos e naturais, a despensa da cozinha fica na entrada do restaurante. Assim que você chega, dá de cara com uma banca onde é possível ver tudo o que Chez Popeye usa para fazer os pratos que deram fama ao lugar.
Chez Popeye é um sujeito já bem velhinho – que fica andando entre as mesas falando sozinho, repetindo “wafa, wafa” sem parar – e que tem uma fixação nos personagens criados nos anos 30 pelo cartunista Elzie Segar. Além de decorar as paredes do lugar com desenhos de Popeye e Olívia Palito, ele aborda as clientes perguntando se são casadas ou solteiras. Se forem solteiras ele sempre manda essa: “tem que casar, toda Olívia Palito precisa do seu Popeye” e depois as leva para os fundos do restaurante onde lhes presenteia com colheres e garfos de madeira e óleo de argan. E lá vai ele. Chega na mesa, faz a pergunta, dá a sua lição matrimonial de vida, leva pros fundos do restaurante e segue em frente. “Wafa, wafa”, diz o tiozinho pela milésima vez ao passar por mim.
A questão é que a comida do Saveur De Poisson é diretamente proporcional à maluquice do dono. Sem cardápio, o restaurante oferece apenas um prato composto de sopa de grão de bico, azeitonas temperadas com pimenta, amêndoas assadas, pão, casserole de camarão e lula e linguado grelhado com ervas. Para beber, suco de frutas. Álcool no Marrocos ainda é proibido. De sobremesa, frutos secos com nozes, cevada e mel. Ao contrário de outros restaurantes de Tânger, especializados em rapinar turistas desavisados, as porções aqui são muito bem servidas. A surpresa maior fica com a conta. Apenas 15 euros.
É uma comida simples, local e caseira. Não demanda um paladar sofisticado e nem grandes elocubrações teóricas. Talvez por isso mesmo seja excelente. O segredo, creio eu, está no cuidado com que é preparada e seus ingredientes são escolhidos. Parece algo passado de geração à geração. Não à toa o Saveur De Poisson é freqüentado tanto por locais quanto por turistas. Existe ali uma tradição que não é exatamente de comida árabe ou berbere. Provavelmente uma fusão de hábitos alimentares do Magreb com técnicas culinárias européias.
Mas isso sou eu dando palpite. Basta andar e comer em Tânger, onde pizza é um dos pratos mais consumidos e o McDonald’s um dos pontos de encontro dos playboys locais, para sacar o quanto é difícil dizer exatamente onde começa e termina uma determinada tradição. Trata-se de uma cidade fundada por cartagineses cinco séculos antes de Cristo. Um ponto de passagem para quem quer saber o que existe além do Estreito de Gibraltar. Foi um dos centros de espionagem mundial durante a Guerra Fria e já ofereceu abrigo a figuras como Giuseppe Garibaldi, William Burroughs, Allen Ginsberg, Truman Capote, Tennessee Williams, Jean Genet e Keith Richards. Um lugar que, ao longo da História, já foi ocupado por romanos, portugueses, ingleses e mouros. E que, até hoje, se equilibra entre as leis do Islã e uma certa fascinação pelo Ocidente. Nada mais natural para uma cidade que é globalizada desde sempre.
– Vladimir Cunha é jornalista e assina o blog Tudo Jóia, um compêndio de cultura pop, gastronomia e vagabundagem disfarçada de cool hunting. Vlad também é um dos diretores do documentário “Brega S/A” e escreverá sobre viagens e comida no Scream & Yell.
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