“Somos Tão Jovens”, de Antonio Carlos Fontoura
por Leonardo Vinhas
Tente imaginar a cena: você, adolescente, está em casa, convalescendo de uma doença que te deixou literalmente de cama, e sua amiga da mesma faixa etária chega, tira várias coisas da bolsa e te diz: “trouxe cassetes de rock, revistas de rock, posters de rock. Tudo que você gosta”. Você provavelmente cogitaria que sua amiga também precisa de assistência médica – psiquiátrica, mais especificamente, pois só uma patologia mental ou uma sociopatia explicaria que uma garota letrada e sadia falasse assim. É esse tipo de diálogo que compromete bastante “Somos Tão Jovens”, a cinebiografia que retrata os anos formativos de Renato Russo.
Se você está lendo o Scream&Yell não precisa ser explicado sobre quem foi Renato Russo. E goste ou não de seu trabalho, não há como negar que a Legião Urbana foi uma das maiores bandas do país, levando contemporâneos como Roberto Frejat e Humberto Gessinger a dizerem que o nome deveria ser “Religião Urbana”, tamanha a devoção demonstrada pelos seus fãs. E a trajetória de formação do maior responsável por tal fenômeno renderia um puta filme, não tenha dúvida. Só que…
Problemas pontuais não faltam. A começar por um vício hollywoodiano lamentavelmente reproduzido aqui: a escalação de atores de quase trinta anos (ou mais de 30, como Thiago Mendonça, que aos 32 interpreta Renato aos 16) para viver os papeis centrais adolescentes. É difícil olhar para homens feitos e pensar neles como moleques pós-púberes. Principalmente quando eles estão ao lado de atores que realmente têm a idade e a compleição física adequada.
A tentativa de enfiar títulos e trechos de canções nas conversas como se fossem parte do diálogo também é dura de engolir. Mas não é tão grave quanto o didatismo forçado de vários momentos, como o exemplificado no parágrafo inicial. Como o roteirista Marcos Bernstein e o diretor Antonio Carlos da Fontoura parecem não confiar na capacidade do público sacar referências ou mesmo entender como a música pode influenciar um adolescente, sobram cenas absolutamente desnecessárias e esquemáticas, inseridas para que o espectador saiba que Lô Borges é mineiro, que os Sex Pistols eram feios e cuspiam no palco ou que aquele rapaz loiro que foi tocar bateria na Legião Urbana é mesmo o Marcelo Bonfá. O elenco fica visivelmente desconfortável, e tais cenas constrangem. Afinal, quem explicaria a escolha de uma canção pra tocar em casa dizendo, “é, Lô Borges é um dos meus mineiros favoritos”?
Porém, mesmo com esses problemas, o filme encanta, graças à música e ao personagem. A história de Renato Russo é intensa demais para passar despercebida: o garoto feio, homossexual e desengonçado que sonhava em ser rockstar – e conseguiu. Ele era, ainda, uma pessoa inteligente a ponto de fazer grande poesia e cruel o suficiente para trair a confiança dos amigos mais próximos. Até seus chiliques mais vazios e birrentos são retratados, impedindo sua mitificação como “pobre garoto atormentado”.
E a música é uma surpresa. Houve cuidado até para se preservar a tosqueira dos timbres, e só não tocam mais clássicos punk porque a trilha custaria uma fortuna em royalties. Mas o material nacional está garantido, e a crueza do Aborto Elétrico é fidedigna. É um prazer ouvir uma canção como “Fátima” em sua estrutura mais básica e redescobrir sua força. Poesia juvenil com mais contundência que boa parte do que se chama de “texto adulto” hoje em dia. O senso de urgência da melodia, completado por um bom trabalho vocal de Mendonça, abrem as portas da máquina do tempo e finalmente arrebatam o espectador para a época na qual o filme se passa, ajudando a obra a engrenar em sua metade final, quando as “apresentações” estão quase todas encerradas e o didatismo pode ser deixado de lado.
Os musicófilos versados na história da Turma da Colina também vão ficar felizes de saber que até bandas que tiveram pouca expressão nacional, como Escola de Escândalo e Dado e o Reino Animal, dão as caras, ainda que muito brevemente. Os integrantes do Aborto Elétrico também têm espaço para sair da caricatura, principalmente Fê Lemos (Bruno Torres). Mas não dá para perdoar as falhas de Sergio Dalcin, que volta e meia “esquece” que seu André Pretorius, o primeiro guitarrista do Aborto, era sul-africano – o sotaque some e reaparece sem explicação. Os irmãos Vianna, Herbert e Hermano, fundamentais para a divulgação nacional do rock de Brasília, também estão devidamente representados. Aliás, a atuação de Edu Moraes como o líder do Paralamas é hilária: do figurino ao modo de falar, ele recria o jovem Herbert Vianna nos poucos minutos que lhe são reservados.
Mas a atuação que rouba o filme – e ajuda a torná-lo mais verossímil – é a de Laila Zaid no papel de Ana, a amiga mais próxima de Renato. Força e suavidade coexistem em sua personagem, e sua interlocução é fundamental para ajudar o “Juninho” a se transformar no Russo que conhecemos.
Segundo o relato dos que conviveram com o jovem Renato, ele era teatral e megalomaníaco, mas podia ser também introvertido e carinhoso. De várias maneiras, o filme cobre todos esses lados, e oferece pequenas frestas para espiar dentro da imagem que ele criou. Por outro lado, o filme se recusa a abordar sua homossexualidade. Ela é mencionada, mas nunca vista de perto – aliás, Renato beija uma garota, mas não o faz com um homem. Medo de que, senhores?
Faltam sutilezas em alguns aspectos, sobra “detalhismo” em outros. Pena. Isso não impediu o filme de arrecadar R$ 5,8 milhões em seu primeiro final de semana, levando 471,5 mil espectadores ao cinema. E já tem gente dizendo que “agora precisamos de um filme que mostre os anos com a Legião”. Se for o caso, não faria mal aproveitar a chance para ser menos “cauteloso” e mais honesto ao biografado.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
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