Sob o CEL #26
Timba
por Carlos Eduardo Lima
Vocês devem ter visto o último filme da saga do maior boxeador da história do cinema, Rocky Balboa. Se alguém não viu por conta de alguma restrição de gosto antropolóide e preconceituosa, aqui vai um alerta: a série Rocky guarda momentos poderosos, não só do cinema em si, mas da vida. Há um sem número de metáforas e analogias infalíveis sobre imaturidade, paternidade, responsabilidade, envelhecimento, alma, coerência, tudo isso sob o peso das mãos e do cérebro de Sylvester Stallone, que estrelou, roteirizou os longas, além de ter dirigido alguns. O último, “Rocky Balboa”, lançado em 2006, foi surpreendente. Até então, o filme derradeiro da saga, “Rocky V”, havia sido rodado em 1990, com todos os indícios de que a carreira do pugilista havia tido seu último capítulo. Pra encurtar a conversa, em “Rocky Balboa”, o velho lutador está pra lá de aposentado, dirigindo um restaurante que leva o nome de sua esposa, Adrian, morta anos antes por conta de câncer. Rocky toca sua vidinha em conflito com o filho único e vivendo do passado, claro. Pra gente como ele, 2006 pode ser mais estranho que viver em Marte, tamanhas as diferenças em todos os cantos. Por uma série de manobras do destino, Rocky vai ficar frente a frente com o atual campeão dos pesos pesados, Mason “The Line” Dixon. O sujeito tem um cartel impressionante, está invicto, nocauteou milhares, é riquíssimo, boa pinta, tem boa relação com a mídia, faz caridade, tem visual de rapper mas, além disso tudo, há um grande problema: Dixon não convence seus fãs. Todos pensam que as lutas são arranjadas, que o campeão tem queixo de vidro e que não aguentaria um tranco mais forte em cima do ringue.
Não vou contar mais nada sobre o filme e recomendo que todos o vejam, até porque é entretenimento de primeira categoria, com uma coreografia de luta impressionantemente real. O fato é que, quando vejo Rocky Balboa e, sobretudo, observo a situação de Mason Dixon em relação ao esporte e ao que ele significa, penso em Justin Timberlake. Sim, ele mesmo, o cara, the man, o rei da cocada preta da música pop-negra, que vai lançar disco novo daqui a alguns dias. A bolacha já tem nome, “The 20/20 Experience”, e será produzida por outro Timba, o Timbaland, e terá participação de Jay-Z. Veja, sem querer estragar sua festa e já me preparando para os projéteis que este texto deverá receber, te aviso: fuja disso. Não ouça mais nada dos Timbas. Vou tentar explicar abaixo.
Justin Timberlake foi do Clube do Mickey. É um sujeito simpático, natural de Memphis, estado americano do Tennessee. Sim, a cidade natal de Timba pode ser considerada a Meca da música country durante um bom tempo. Talvez ainda seja, dada a quantidade de museus e eventos que os norte-americanos promovem a cada dia por lá. Memphis é um dos meus destinos certos na utópica viagem por cidades musicais que ainda pretendo fazer nessa vida, mas, voltando ao nosso herói, Timba não era um moleque com raízes country ou soul ou qualquer raiz. Era um cara da classe média, branquelo, com pais espertos o bastante para enxergar na malandragem da criança algum viés mercadológico. Sim, porque, nenhum pai ou mãe manda uma criança pequena para esse tipo de vida por diversão ou sem qualquer pretensão futura. Até aí, tudo bem. Timba conheceu um monte de gente, namorou uma colega de elenco, uma tal de Britney Spears, e integrou uma boy band chamada N’Sync. Não me pergunte muitos detalhes sobre eles, até porque, boy bands são rigorosamente iguais por uma simples questão de impossibilidade de variação. Os caras precisam ser bonitos, saber dançar, ter carisma, sorrir e seduzir as câmeras televisivas o suficiente para que as meninas com hormônios transbordantes do outro lado do satélite possam imaginar aquele sujeito em seus braços. É assim desde a Santa Ceia e no mundo todo. Se houver uma boy band no sultanato de Omã, ela seguirá esses princípios básicos. Notaram que, dentre os tais princípios básicos não está o verbo “cantar”, certo? Sim, não é necessário. Desses tempos de N’Sync vem a melhor canção com participação de Timba, chamada “Gone”. É de um disco chamado “Celebrity”, lá de 2001, o quatro trabalho da banda. A música é uma balada à la Michael Jackson, com vocais soluçados e arranjo que oscila economia e cordas sintetizadas. É bonitinha e eficaz como produto pop, assim como dois pacotes de Miojo Galinha Caipira são capazes de matar sua fome numa emergência, mesmo que você saiba que aquilo é artificial, nefasto e não perde para uma macarronada de domingo.
No ano seguinte, Timba saia em carreira solo após a dissolução do N’Sync, pela qual suponho que poucas fãs tenham derramado alguma lágrima. Ele era o menino mais interessante da formação, o que tinha mais cara de genro e que, provavelmente, sabia dançar melhor que os outros. Lançou “Justified” em 2002 e procurou se referendar como um genuíno artista pop com grande acento black em sua música. Cercou-se de produtores, rappers de proveta (um tal de Bubba Sparxxx, por exemplo), mas como contava com grana da gravadora para ser a nova aposta pop, houve recurso para trazer bons músicos como o baixista Nathan East, por exemplo, com horas de voo nas bandas de Eric Clapton e em grupos como Chicago e Tower Of Power através dos tempos. Janet Jackson também participou do disco, em um movimento nítido de apadrinhamento da indústria do disco e do entretenimento. Mais ou menos como se a Máfia resolvesse cuidar de um novo ‘cappo di tutti cappi’ que estivesse ainda sem idade para assumir os negócios da família.
Timba rodou clipes, dançou, sensualizou para menininhas que nasceram na década de 1990 e cantou para um público disposto a ouvir qualquer coisa vinda dele. E por que isso, gente? Porque sim. A indústria da música funciona desse jeito. As pessoas simplesmente são bombardeadas por mensagens que as obrigam a consumir aquele produto, mais ou menos como um anúncio de sabão em pó que faz bolhas de partículas de hélio, que vão deixar a roupa mais branca. Claro que é necessário o mínimo de talento, forjado meticulosamente nas estruturas de desenvolvimento da indústria musical. Horas de dança, horas de malhação, horas de supostas aulas de canto, horas de aulas de interpretação. Timbaland já estava metido nessa galera, justamente para figurar como o produtor. Dizem as resenhas de “Justified” que os Timbas buscaram a sonoridade de “Off The Wall”, disco clássico de um Michael Jackson ainda negão, produzido por Quincy Jones. Sim, o pessoal não tinha mesmo noção, ou melhor, tinha a exata noção de que poderia mesmo se arrogar esse pedigree, sem qualquer risco. Havia suporte, havia tudo.
Timba nunca se descuidou dos negócios. Ele tem restaurantes, ele foi democrático e topou participar de discos de todo mundo, num movimento clássico de arroz de festa, procurando conectar-se ao máximo de gente, fazer seu networking numa época em que esse termo ainda não existia de fato. Procurou intercalar tudo isso com participações no cinema, a princípio em pequenas pontas, depois em papéis maiores. Sua tônica, no entanto, sempre foi a “música”. Em 2006 ele lançaria seu segundo disco solo, “FutureSex/LoveSounds”, que lhe trouxe seu maior sucesso: “SexyBack”. Timba vinha sensualizando em potência máxima e suas fãs, um pouco maiores já, continuaram comparecendo a shows, comprando discos, pedindo músicas em rádios e programas de televisão. O segundo passo protocolar foi dado e ele assumiu parte dos deveres de produtor. Timbaland continuava envolvido na trama e a verba continuava permitindo trazer convidados como Will.I.Am, do Black Eyed Peas (estourados nos quatro cantos da galáxia na época) e o produtor Rick Rubin, afinal de contas, é preciso circular nas influências, certo? A falta de noção intencional continuava presente na escolha do conceito musical do novo trabalho. Se o primeiro disco mirou – e errou por milhões de anos-luz – “Off The Wall”, aqui os Timbas queriam emular Prince. O anão púrpura de Minneapolis deve ter estourado a carótida de tanto rir quando ouviu os “grooves” produzidos por Timbaland. Enquanto isso, a carreira cinematográfica seguia de vento em popa, tendo seu grande momento em 2010, quando ele interpretou Sean Parker, o criador do Napster, em “A Rede Social”, um dos filmes mais superestimados da história do cinema. Contracenou com Cameron Diaz, Mila Kunis, Amanda Seyfried, Amy Adams, entre outras moças bem desejáveis, nos fazendo pensar até que suas aparições na telona não chegam a irritar tanto quanto sua música.
E por que diabos a música do sujeito é irritante, você perguntará. Eu respondo. Porque ela não existe. Ela é oca, vazia, uma vez que se pretende negra para brancos ouvirem e rebolarem. É zero sexo, zero verdade. A música negra, desde que surgiu, sobretudo por questões históricas ainda presentes em nossa sociedade, é celebratória. É uma música vitoriosa, de conquista de espaço, de autonomia, de luta pra sair do gueto, da senzala, da opressão. Claro que ninguém vai ouvir canções com atitude solene, como se jurasse a bandeira, mas a fórmula de Timba pressupõe a completa descaracterização dessas matrizes negras, o completo embranquelamento de tudo, como se ritmos grooveados, levadas de baixo, guitarras sinuosas e vocais tirados da alma fossem ingredientes para uma centrífuga na qual todas as pequenas parcelas de sofrimento, realidade e luta vão ser jogadas fora em forma de bagaço, enquanto as gargantas da casa grande beberão um sucozinho lisinho, sem fiapos indesejáveis.
Há outro agravente. A música negra, exatamente pelos motivos citados acima, só é legítima quando há algum indício de luta com a realidade. Quem a produziu de forma relevante e influente no passado, o fez a duras penas. Gente que teve que alisar o cabelo, aprender a comer na mesa, a falar em público, a andar com livro na cabeça, a usar peruca e suportar um sem-número de humilhações para que alguém escutasse como era de verdade. O embranquecimento não é privilégio de Timba, até porque ele não se importa com isso, provavelmente. Num país como os EUA, ter negros cantarolantes e rebolativos nas paradas de sucesso era algo inconcebível. A solução? Encontrar brancos para servirem de “laranjas” musicais. Houve exceções, Elvis Presley à frente, mas poderíamos dizer que Elvis, um zé ninguém dos cafundós do sul do país, era uma espécie de “negro social”. Timba não. Ele nasceu em 1981, na aurora da Era Reagan, no início do fim dos princípios básicos para a existência de manifestações artísticas relativamente independentes do dinheiro. Quando ele estava no N’Sync, em meados dos anos 90, o mundo como o conhecíamos já havia acabado e esta situação que temos hoje já era moldada. Azar o nosso.
Timba, assim como Mason Dixon, tem queixo de vidro. Carece de tarimba da estrada, carece de perrengue, carece de chifre, de porrada da vida, de temporadas passando necessidade, verdadeiros forjadores de almas que se dispõem a subir num palco e cantar amor, decepção, poder libertador do sexo. Se você não tem isso, amigo, pode ser qualquer coisa, menos superastro do pop. Timba não aguenta um minuto no ringue. Seu novo disco deve trazer – e eu estou apostando nisso, uma vez que só ouvi duas músicas do novo trabalho, uma delas, pasme, com mais de oito minutos – uma grande panqueca sonora com gotas mínimas de chocolate. As participações de Jay-Z, um rapper que só impressiona a quem nunca ouviu rap de verdade, e Timbaland, um arremedo de produtor, típico de um tempo em que esta figura, que é chave para a música pop de qualidade, se perdeu na permissividade dos novos tempos falsamente libertários, serão os parceiros de nosso amigo. Virão participações, novos filmes, novos shows, novas provas irrefutáveis que Timba é um bom cara. Indies gostam e continuarão gostando do cara. Em time que está ganhando, outra máxima dos negócios, não se mexe.
Aceite uma dica musical do velho CEL: procure ouvir Michael Jackson entre 1979 e 1983, Prince entre 1978 e 1991 e George Michael, até o disco “Older”, de 1996. Depois me diga o que achou.
– CEL é Carlos Eduardo Lima (siga @celeolimite), historiador, jornalista, fã de música e responsável pela coluna Sob o CEL no Scream & Yell e pelo podcast Atemporal.
Amigo, esse foi o seu primeiro texto que li e no final dele te imaginei como um cara na crise da meia idade, mas passando por aquela crise dos 20 e poucos, onde achamos que entendemos de tudo e queremos ser superiores a qualquer custo, onde torcemos o nariz pro popular, porque é legal gostar do diferente. Acredite, não sou fã do Justin, mas não acho ele esse artista medíocre que você descreveu. Ele é um cara que faz musica pop, nao tenta fazer mais do que pode, nao fala que quer fazer musica negra ou que quer falar sobre sofrimento de vida, ele apenas canta sobre amores, no ritmo pop que ele sempre fez, apenas atualizando de acordo com o mercado e isso não é algo ruim. Abaixe esse nariz empinado, aprenda a se divertir com a música e seja feliz.