por Marcelo Costa
Freddie Quell é um fodido na vida. Serviu a marinha norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial, e o ambiente catastrófico o marcou severamente. Seu pai morreu devido ao alcoolismo; sua mãe está internada em um hospício. Seguindo a trágica trajetória paterna, Freddie bebe como um louco, e não apenas álcool, mas sim coquetéis que podem conter desde qualquer tipo de bebida alcoólica e remédios até solvente de tintas e combustível de misseis. Sua rotina alterna raros momentos de lucidez com embriaguez e violento desvario.
Por um daqueles acasos da vida, o ex-marinheiro Freddie Quell invade um barco em que uma família planeja celebrar o casamento de uma de suas filhas, torna-se arredio e, alcoolizado, desmaia em um dos quartos da embarcação. Quando acorda é convidado a conhecer o comandante do navio, Lancaster Dodd, que se apresenta como “um escritor, filosofo, físico nuclear e, mais importante, um homem” (o “como você” presente no trailer no fim do texto não entrou na edição final do filme), mas que também é conhecido como O Mestre.
Lancaster Dodd é uma daquelas figuras carismáticas dedicadas à religião e, também, com um forte tino para os negócios, afinal, como expõe reportagem da Folha de São Paulo de 27/01/13, igrejas arrecadaram R$ 20 bilhões no Brasil em um ano. A religião é um bom negócio e Dodd está trabalhando intensamente em seu segundo livro sobre a doutrina de uma nova seita, A Causa, que, através de hipnose, tenta reconhecer em seus fiéis traumas e fatos do passado (e de outras vidas) que possam ajuda-los a enfrentar seus problemas atuais (e os problemas do mundo, reforça O Mestre em um embate com um crítico).
A caótica personalidade de Freddie aliada aos seus drinks quase venenosos e alucinatórios conquistam a confiança do messiânico Mestre, que o acolhe como protegido – enquanto sua família tenta lidar com o desafio de “salvar a alma” perdida de Freddie e se enquadrar na rotina paranoica que o novo membro instala no convívio. A esposa do Mestre, Peggy Dodd, após perceber inicialmente como o marinheiro inspira o marido, é a primeira a notar a influência negativa do novo súdito, enquanto o filho vê o pai como um charlatão e a filha recém-casada flutua numa nuvem de desejo e repulsa pelo protegido do pai.
O quadro pintado por Paul Thomas Anderson em “O Mestre”, seu sexto filme, é denso, sufocante e pesado, mas segue uma linha de trabalho e temáticas perceptíveis também no brilhante “Magnólia” (1999) e na obra-prima “Sangue Negro” (2007). Anderson escreveu o roteiro inspirado em relatos do famoso ator Jason Robards, que trabalhou com ele em “Magnolia”, e lhe contou sobre suas experiências com bebida na Segunda Guerra, além de textos do romancista e correspondente de guerra John Steinbeck. Além, claro, de Lafayette Ronald Hubbard, o famoso fundador da cientologia, religião preferida dos astros de Hollywood.
Ainda assim, quem espera encontrar em “O Mestre” uma critica severa à manipulação religiosa poderá se desapontar. A crítica está presente, ainda que nas entrelinhas de várias passagens (na opinião do filho, na critica de um homem contrário a Causa, na prisão por desvio de dinheiro, na opinião do próprio editor de Dodd e de uma fiel seguidora, entre outras), mas com “O Mestre”, Anderson parece mais interessado em analisar a natureza humana da correlação de dois desajustados na função de mestre-discípulo e pai-filho: o que move Lancaster Dodd? Por que Freddie Quell o segue? Por que Dodd insiste no desafio de aceitá-lo?
Há certa dose de fascismo no arquétipo messiânico do personagem d’O Mestre, ainda mais se levarmos em conta que o filme se passa em período pós-guerra catalisado pelo messianismo de outro líder fascista, tanto quanto um desejo peculiar de descobrir caminhos que ajudem outras pessoas, e a egolatria derivativa do descontrole desse desejo, que transforma um homem num líder, e que encontra um sentimento de dualidade no filme, representado pela passagem em que Lancaster Dodd é preso por desvio de dinheiro, sinalizando abuso da fé alheia e suscitando outra questão pertinente: o quão picareta é Lancaster Dodd e quanto ele acredita na Causa, e em si mesmo?
Se o roteiro meticuloso suscita uma turbulenta relação de namoro e cumplicidade com o inimigo (do qual não só os personagens fazem parte, mas também o público, cúmplice), a execução é absolutamente perfeita. Filmado em 70 milímetros, “O Mestre” destaca imagens de tirar o folego, ancoradas em uma trilha sonora (muita vezes invasiva e) brilhante de Jonny Greenwood, e completada por atuações simplesmente arrasadoras de Joaquin Phoenix (Freddie Quell), Philip Seymour Hoffman (Lancaster Dodd) e Amy Adams (Peggy Dodd), os três merecidamente indicados ao Oscar (do qual o longa foi terrivelmente preterido nas categorias filme, diretor, fotografia e trilha sonora, o que suscita a discussão da influência/manipulação religiosa em Hollywood).
Muitas vezes o cinema colocou personagens tão dispares na tela, mas poucas vezes os atores os assumiram com a força devastadora e competitiva exibida em “O Mestre”. Em uma das cenas capitais da trama, um transtornado Joaquin Phoenix quebra absolutamente tudo que vê pela frente sob o olhar controlado de Philip Seymour Hoffman. Os contrastes não poderiam ser mais claros, e causam ainda mais impacto quando colocados ao lado da personificação dominadora da atuação de Amy Adams, a mulher forte que mantém o “genial pensador da seita” em suas mãos (literalmente). Quem domina quem?, pisca o olho Anderson.
Novo retrato dos destroços do sonho americano, “O Mestre” não é violentamente direto como “O Sangue Negro” – o “Cidadão Kane” dos tempos modernos. Principalmente em seu trecho final. Paul Thomas Anderson opta – talvez por indecisão quanto ao rumo de seus dois personagens principais – em deixar tudo em aberto enquanto crava uma frase a ferro quente no peito do espectador: “Se você quiser ficar, fique. Mas se sair, não volte nunca mais. Siga seu caminho e tente viver sua vida sem um mestre. Qualquer mestre. Se você conseguir, será o primeiro homem na história da humanidade”, desafia Lancaster Dodd. Silêncio. Paul Thomas Anderson novamente faz do cinema uma arte grandiosa.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– Baixe o roteiro de “O Mestre” e de outros 21 filmes incluindo “Amor” e “Django” (aqui)
– “Sangue Negro” está em outro patamar de cinema, o das obras-primas (aqui)
– “Magnólia”, de Paul Thomas Anderson, é o mais belo filme dos últimos tempos (aqui)
– “Embriagado de Amor”: talvez Anderson tenha exagerado um pouco na esquisitice (aqui)
– “Boogie Nights”, excelente retrato do submundo da indústria pornô dos anos 70 (aqui)
– Folha de São Paulo: Igrejas arrecadam R$ 20 bilhões no Brasil em um ano (aqui)
não há limites para o talento de PTA. filmografia impecável, já é um dos maiores da história.
Concordo com tudo, mac…
só um comentariozinho adicional: esse PSH é foooodaa, hein…?!
e esse Joaqin Phoenix???
O que são esses caras…??!!
que filme! elenco impecável, os embates entre psh e joaquin phoenix são incríveis [destaque para as cenas da cadeia e a final, o que é o psh cantando pra ele?]. a amy adams, em quem eu nunca prestei muita atenção também está excelente, especialmente na cena final. e a trilha sonora é um espetáculo a parte.
Vi ontem. To de cara até agora. Que filmaço…
(mas ainda não supera Sangue Negro mesmo)