por Marcelo Costa
Um casal de professores de piano – já na casa dos 80 anos – estrela “Amor” (Amour, 2012), nova fábula dolorida do cineasta austríaco especialista em fábulas doloridas Michael Haneke. O homem atende pelo nome de George (Jean-Louis Trintignant, de “Um Homem, Uma Mulher”, 1966) e ela se chama Anne (Emmanuelle Riva, de “Hiroshima, Mon Amour”, 1959), e em uma das primeiras cenas do filme é vista cumprimentando um ex-aluno, agora músico famoso, após um concerto de sucesso em Paris.
Desse ponto em diante, agravado pela sensação estranha da primeira bonita e impactante cena do filme, “Amor” seguirá uma estrada reta cujas alegorias cinematográficas colocadas de cada lado do caminho são dominadas com excelência por Michael Haneke. Desde uma torneira aberta (que provoca a atenção do espectador) até a ampliação dos espaços (muitas vezes delimitada pelo som da voz em uma conversa), o ambiente é um personagem bastante presente em “Amor”.
Ainda assim, não espere metáforas visuais (embora elas existam, claro). “Amor” é o filme mais direto de Michael Haneke. E um dos mais tristes, melancólicos e doloridos. Se muitas de suas obras assustam o espectador pela maneira violenta da narrativa (mesmo quando não era visualmente violento, caso de “Cachê” e “Fita Branca”), “Amor” não traz a violência em primeiro plano, embora ela esteja ali, presente, fitando os personagens – e, por conseguinte, o próprio espectador – no olho.
Certo dia de manhã, no meio do café, Anne perde a consciência e fica parada, estática, enquanto George, sem saber o que fazer, tenta reanima-la. É o primeiro passo em direção ao abismo da finitude, e Haneke filma a decadência humana de forma surpreendentemente delicada. A violência em “Amor” decorre dos dogmas e leis presentes em Códigos Civis e livros religiosos que a própria sociedade impinge aos seres-humanos, imperfeitos e finitos. Como diria Woody Allen, a vida é uma porcaria, e passa rápido demais.
Não é a toa que “Amor” que Haneke escolheu ambientar sua história em Paris (o filme é uma coprodução Áustria, Alemanha e França, e filmado e falado na língua deste último). A culpa católica carregada nos ombros por séculos não tornaria verossímil a temática do filme em diversos outros países, e Haneke (novamente de forma delicada) ainda consegue uma brecha no roteiro para apresentar a origem judia de George e Anne. O cineasta explora alguns tabus em “Amor”, e só deixa no filme o sentimento verdadeiro de cumplicidade que une duas pessoas.
Desta forma é possível dizer que existe beleza dentro de toda dor de “Amor”. Embora o cenário do filme seja semelhante ao pintar de um quadro, que sufoca o espectador conforme cada pincelada vai atingindo a tela, o cineasta consegue fechar seu drama realista de forma poética enquanto deixa para o espectador uma porção de temas caros – sendo que os principais são amor, doença, família e morte – a serem discutidos na mesa do bar, no sofá da sala ou debaixo do cobertor com seu par em casa. E rende.
Se era praticamente impossível sair feliz de um filme de Haneke (“O Sétimo Continente”, “71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso”, “Violência Gratuita” e “A Professora de Piano” são sufocantes), “Amor” ao menos deixa pétalas de rosas pelo caminho. Não se iluda: você vai sofrer assim mesmo, mas, de vez em quando, é necessário, pois a maior parte das pessoas parece especialista em negar o fim, o que talvez seja o mais correto a fazer, embora encara-lo vez em quando alimente a humildade (ou algo assim).
Em um mundo perfeito, Michael Haneke não existiria. Ou, olhando por outro lado: o cinema de Haneke só existe porque vivemos em um mundo corroído por imperfeições. “Amor” é mais um exemplo focado do caminho tortuoso escolhido por Haneke, e rendeu ao cineasta a Palma de Ouro em Cannes, o Globo de Ouro de Melhor Estrangeiro e cinco indicações ao Oscar (Filme, Atriz, Direção, Filme Estrangeiro e Roteiro Original). É daqueles filmes obrigatórios (e raros hoje em dia) para ver, refletir e seguir em frente.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– “A Fita Branca”: Haneke quer sim ver você sorrir, mas o mundo não deixa, por Mac (aqui)
– “Cachê”: Haneke nos tira completamente a segurança, por Marcelo Miranda (aqui)
– Top 20 Filmes entre 2001 e 2010: “A Fita Branca” em 9º e “Caché” em 10º (aqui)
agendado para sábado à tarde!!
É tão realista que doi… saí da sala de cinema precisando de tempo para falar. Triste, mas não deixa de ser lindo!
haneke acertou a mão, não que em outras vezes ele já não tenha feito isso.
o que mais me impressionou é que desta vez ele escolheu um tema ainda mais real, porque ainda que funny games, caché e até mesmo o sétimo continente mostrem histórias que podem e talvez aconteçam mundo afora mais do que imaginamos, mas dificilmente acontecerão conosco, em amour ele apresenta uma situação pela qual a maioria de nós vai passar, com nossos pais, com nós mesmos, com avós etc etc. acho que quase todos vão se perguntar durante a sessão: e se fosse comigo? ou até mesmo: e quando for comigo?
pra mim, a lição que fica é a da cena do álbum de fotos, quando anne fala sobre a beleza de uma longa vida bem vivida. então é isso, já que ela vai terminar pra todos nós vamos fazer o melhor possível com ela…
Gosto muito do trabalho do Haneke, mas fiquei decepcionado com “Amor”. Ali com meia hora de filme eu já via semelhanças muito próximas ao filme islândes Volcano, de 2011, de um diretor chamado Rúnar Rúnarsson (pesquisei no Google). Sei que “Amor” é um grande filme, com uma execução melhor que a do filme islândes, mas a consciência deste último tirou totalmente a “aura” do primeiro. O unico pensamento que tenho é: coincidência? Provavelmente não.
Marcelo, acabei de assistir Amor. O filme é espetacular! Muito lindo e triste também, mas filmado de uma forma tão cuidadosa e tão rica que nos deixa tocados. O seu belo texto retrata muito bem o que é o filme. Parabéns!