Sob o CEL 23
Antônio, João e Claus
por Carlos Eduardo Lima
Outro dia eu estava pensando em tema e músicas para uma edição do meu podcast Atemporal, quando decidi escolher algo muito sutil. Uma playlist que abordasse uma sonoridade pós-bossa nova, algo que tem ainda muito do Rio de Janeiro sessentista, mas que já não é tão feliz, bronzeado e solar. Eu queria, na verdade, um tom de céu cinza esbranquiçado, um sentimento meio triste, em forma de música. Entenderam?
Pois bem, o primeiro módulo deste programa teve três músicas de um japonês. Ryuichi Sakamoto é um grande cara, altamente influenciado por Tom Jobim, a ponto de ter embarcado num projeto legal do início dos anos 2000, chamado Morelenbaum 2 + Sakamoto, no qual ele, Jacques Morelenbaum e sua esposa Paula, gravaram um disco lindo intitulado “Casa”. Não por acaso, as músicas foram registradas na casa de Jobim, no bairro carioca do Jardim Botânico, certamente sob as bênçãos de Tom. O clima de “As Praias Desertas”, canção de 1959, refeita para “Casa” e que tem o privilégio de abrir o disco, é exatamente o que eu buscava: uma espécie de pós-bossa nova, um certo fim de festa numa praia de deserta, no inverno, sob o tal céu branco. Sakamoto me ajudou com outros dois temas de sua autoria, “Rain” e “Merry Christmas Mr.Lawrence”, das trilhas sonoras de “O Último Imperador” (1987) e “Furyo, Em Nome Da Honra” (1983), respectivamente, que apareceram em versões gravadas por ele com o acompanhamento de um duo de cordas, no fim da década de 1990. Bingo, Sakamoto já estava totalmente se voltando para esse lapso musical-temporal-climático que eu buscava e as versões, tristes que só, eram muito do que eu queria.
A continuidade do programa se deu com a participação de meu caro amigo Zeca Azevedo, um sujeito bondoso, de coração grande e profundo conhecedor de música. Ele havia feito um convite simpático para que eu montasse um módulo pro Discofilia, programa que Zeca produz e apresenta na Mínima.FM, de Porto Alegre e eu lhe pedira em troca uma sequência para o Atemporal, que veio em forma de um módulo de garotas cantando soft rock, com Joan Baez, Rita Coolidge, Rumer e Carole King. Apesar da seleção perfeita e da participação inestimável do Zeca no Atemporal, eu ainda queria buscar a sonoridade inicial do programa.
Dito e feito. Fui encontrar João, Antônio e Claus. Explico. João Gilberto e Antônio Carlos Jobim adentraram os anos 70 bem diferentes do que eram na década anterior. A bossa nova, devidamente internacionalizada, absorvida e cantada até por Frank Sinatra em 1968, já ficara pra trás. Tom e João buscavam algo diferente e vê-los nessa perseguição do novo é emocionante, sobretudo nos dias de hoje. Claro que o “novo” aqui é algo totalmente desvinculado do caráter cronológico, veja, João não faria um disco de glam e Tom não apareceria criando climas com Brian Eno (algo que poderia ser sensacional até) mas o que esses dois queriam era olhar para o Brasil. Tom estava cada vez mais distante do compositor de “Garota de Ipanema” e cada vez mais voltado para uma visão do país típica de um sujeito abastado da Zona Sul carioca. Nada contra, o próprio Imperador Dom Pedro II, outro sujeito abastado da Zona Sul Carioca, após sua coroação, nomeou estudiosos e conferiu-lhes uma missão: descobrir quem era o brasileiro. Para isso chamaram um austríaco, Francisco Varnhagen. O que Pedro II queria era definir uma identidade nacional para seu nascente e recém-pacificado império, o único das Américas, e Varnhagen pensou na imagem do indígena cordial, do negro escravo não revoltado e do branco descendente direto do português. Claro, uma visão estereotipada de cordialidade nacional, de “em se plantando tudo dá” e coisas do gênero, que perdura até hoje em muitos âmbitos.
Tom não poderia ir muito além disso, apesar de toda sua genuína preocupação com a ecologia, com a nacionalidade, com o interior do Brasil, visto de longe. Para isso se tornar música, ele resolveu seguir os passos de outro maestro, Heitor Villa Lobos. O caminho trilhado pelo mestre foi inverso: Villa Lobos sempre quis aproximar a música erudita da popular e brigou nesta seara até sua morte, em 1959, ano de lançamento do primeiro disco de João Gilberto, um tal de “Chega de Saudade”. O resultado desta aplicação de Tom em Villa Lobos já poderia ser sentido em “Matita Perê”, disco que ele lançou em 1973, com claras alusões sinfônicas que pagavam tributo ao mestre e também reafirmavam suas influências de Ravel e Debussy, os tais compositores impressionistas franceses do fim do século XIX. O disco, no entanto, ficou eclipsado por uma canção emblemática, “Águas de Março”, que chamou todas as atenções possíveis, mas que, se pensarmos bem, é muito mais que uma canção bossa nova clássica. É uma entrada ou uma bandeira para o Brasil, para o cotidiano de lendas do caminho, de estradas, de gente simples de longe e de gente simples da cidade. É uma síntese, uma canção que poderia ser um romance de Guimarães Rosa, mas que dura cerca de quatro minutos. Não por acaso, uma das canções mais bonitas de “Matita Perê” chama-se “Um Trem Para Cordisburgo”, cidade natal de Rosa, no interior de Minas Gerais.
Tom encontraria seu disco perfeito nesta busca sinfônica três anos depois. Outra forma de perfeição foi encontrada em 1974 quando gravou “Elis e Tom”, um momento iluminado da música nacional em todos os tempos temporais. A presença de Elis Regina neste disco é algo assombroso, mas que, dado o rumo da prosa, fica para outra vez. Tom atingiria seu ápice em 1976, nas asas de “Urubu”. Na minha opinião, este é o seu disco mais perfeito, mais capaz de sintetizar suas qualidades como músico, compositor e, por que não, cantor. Dentro da lógica de busca de um Brasil musical, Tom resolveu guardar um lado para grandes temas sinfônicos de sua autoria e outro para canções com letras (igualmente autorais) mas que apontavam para um Rio de Janeiro com chuva. Exatamente o objetivo da minha busca lá do primeiro parágrafo.
“Urubu” é um assombro. A abertura com “O Boto”, com ritmo quebrado e solo de berimbau, já é coisa muito séria, tudo isso para chegarmos em “Lígia”, que é a antítese da garota de Ipanema. Tom desdenha da moça, mas admite seu amor por ela e, para um copacabanense de 42 anos, é perfeitamente possível pensar no cenário da música, o tal Rio nublado, traduzido logo de cara na majestade de um verso como “nunca fui ao cinema, não gosto de samba, não vou a Ipanema, não gosto de chuva, nem gosto de sol”. De uma beleza assustadora. “Urubu” ainda se volta mais para o Brasil em outras músicas lindas como “Correnteza”, “Saudade do Brasil” e, sobretudo, em “Arquitetura de Morar”.
João Gilberto também buscava algo, talvez de forma menos radical que Tom, mas essa busca pode ser sentida quando “Amoroso” vêm à tona em 1977, apenas alguns meses após “Urubu”. Podemos dizer que estes discos são o resultado da maturidade destes dois gênios. Assim como Jobim, João gravou “Amoroso” nos Estados Unidos. Eles preferiam os equipamentos dos estúdios de Los Angeles e Nova York e seus contratos de exceção com as gravadoras dava essa opção, sendo que, ao contrário dessa lógica, Tom chegou a pagar do próprio bolso as viagens e gravação de “Urubu”. João Gilberto era a voz da bossa nova e um sujeito dificil, para dizer o mínimo. Chegara à década de 1970 distante do Brasil, mas sempre tendo o país e seus encantos como musa inspiradora maior. Seu disco homônimo de 1973, conhecido como “disco branco”, traz uma versão incongruentemente bela de “Águas de Março”, mostrando o quanto João ainda estava vinculado aos velhos parceiros e colaboradores.
“Amoroso” é outra obra-prima. É uma visão um cidadão do mundo, brasileiro de origem, sobre o Brasil. Há bossa nova clássica em “Tim Tim Por Tim Tim”, João cantando em inglês (“S’Wonderful”), italiano (“Estate”) e espanhol (“Besame Mucho”), tudo com brejeirice suficiente para reconhecer a verdadeira obra-prima do disco em “Wave”, de, adivinhe, Tom Jobim, em sua versão definitiva nove anos após ser lançada por Tom em formato instrumental.
Tanto “Amoroso” quanto “Urubu” têm, além da cara pós-bossa nova, das nuvens no céu, do clima de praia deserta, um ponto em comum importantíssimo: ambos foram arranjados e produzidos por um alemão. Sim, engraçadas as coincidências. Pedro II busca um austríaco no século XIX para definir o Brasil para um jovem império, enquanto Tom e João, dois sinônimos de Brasil pra muita gente, buscam um arranjador e produtor alemão para ajudá-los a encontrar uma sonoridade cada vez mais brasileira. A escolha estava longe de ser equivocada. Claus Ogerman é um dos gênios do século passado (na foto acima com Sinatra e Tom), criminosamente esquecido por muita gente. Há, no entanto, quem lembre dele, como Diana Krall, que o chamou para arranjar e produzir seu disco bossanovista “Quiet Nights” em 2009.
Claus é responsável por verdadeiras obras-primas em termos de arranjo e estúdio nestes dois discos. “Estate”, por exemplo, originalmente uma canção italiana sobre o verão (“estate” em italiano), se transformou numa peça orquestrada lindíssima, lânguida, perpassada pela voz baiana de JG num italiano que vai do ultrajante ao pra lá de decente, fazendo triste toda e qualquer alegria que o sol possa trazer. A já citada “Lígia” é outro exemplo de como Ogerman consegue dar às cordas uma sonoridade que se tornou brasileira imediatamente e assim permanece até hoje.
Acho que está na hora desses discos serem redescobertos, não só “Urubu” e “Amoroso”, mas tudo o que estes dois fizeram nos anos 70, no fim de suas respectivas festas, em busca de si mesmos, de um país, de democracia, de algo que os inquietava. Hoje todo mundo parece estranhamente em seu devido lugar, quietinho, seguindo com o rebanho. Não gosto disso.
PS: Eu não gosto do Lobão, no entanto, não posso deixar de lhe fazer justiça por ter pego o espírito da coisa em termos de Rio nublado. Sua canção de 2000, “Ipanema No Ar”, é exatamente sobre essa visão estética de um Rio encoberto, e que eu já havia mencionado aqui no texto sobre o Buffalo Tom e o verão
PS2: Abaixo segue a playlist do Atemporal que suscitou o texto. Ouça o programa aqui
Módulo 1
Ryuichi Sakamoto – Merry Christmas, Mr.Lawrence
Morelenbaum 2 + Sakamoto – As Praias Desertas
Ryuichi Sakamoto – Rain
Módulo Discofilia
Joan Baez – Jesse
Carole King – Dream Like I Wonder
Rita Coolidge – Fool That I Am
Rumer – Just For A Moment
Módulo 3
Tom Jobim – Valse
Tom Jobim – Lígia
Tom Jobim – Arquitetura de Morar
Módulo 4
Tom Jobim – Estrada do Sol
João Gilberto – Wave
George Benson – Breezin’
– CEL é Carlos Eduardo Lima (siga @celeolimite), historiador, jornalista, fã de música e responsável pela coluna Sob o CEL no Scream & Yell e pelo podcast Atemporal.
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Leia também:
– Cesar Camargo Mariano relembra “Elis e Tom”, 30 Anos Depois, por Marcelo Costa (aqui)
– João Gilberto: “The Man Who Invented Bossa Nova”, por Marcelo Costa (aqui)
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-“Quiet Nights”, Diana Krall, um álbum de velha bossa nova, por Marcelo Costa (aqui)
– “The Complete Reprise Recordings”, Frank Sinatra e Tom Jobim, por Marcelo Costa (aqui)
Mac, transmimento de pensação você colocar esse vídeo de Lígia com Tom e RC. O nosso amigo Rei, assim como todos os cantores de sua geração, sempre sonharam cantar Bossa Nova. Fico imaginando a felicidade dele ao se deparar com o mestre maior.
Sempre leio os textos do Cel e fico me perguntando quem no jornalismo musical brasileiro é capaz de pautar temas tão legais que façam o leitor pensar. Cada texto tem uma riqueza de detalhes impressionante que me fazem pesquisar sobre os assuntos. Parabéns para ele e para o Marcelo Costa, por publicar o que o Carlos escreve. Não dá para esta coluna ser maior e com periodicidade semanal?
Ana Cecilia, obrigado por seu post tão gentil. Tenho carinho por este espaço e este veículo, por isso os textos saem motivados. Fico muito feliz com suas palavras.
Que texto bonito!
Quando lemos um texto e imediatamente começamos a procurar pelas citações feitas significa que o autor cumpriu seus objetivos com louvor. Parabéns!