por Bruno Leonel
Samplear é uma arte. E, como toda arte, para se obter um resultado de qualidade exige dedicação, preparo e habilidade. Hoje em dia devido à facilidade e às centenas de ferramentas disponíveis para colar e (re)arranjar sons, talvez o uso da técnica esteja um pouco desvalorizado, mas sempre é válido lembrar a importância de nomes que ajudaram a popularizar o estilo em uma época onde “tomar emprestado” trechos de outros artistas não era tão simples e tampouco visto com bons olhos por muita gente. Em tempos de pós-modernidade, no qual tudo faz referência a alguma outra coisa, das mixtapes, do dubstep e do grande sucesso de nomes como Frank Ocean e Flying Lotus é difícil imaginar um único artista do hip hop e da música eletrônica atual que não deva ao menos um pouco do devido respeito a Joshua Paul Davis, o Dj Shadow. Ainda que muitos sequer tenham idéia disso.
Shadow começou sua carreira fazendo experimentações e registrando faixas em um pequeno gravador de quatro pistas. Passou a ter certa popularidade discotecando em rádios universitárias da Califórnia e, desde o começo, pareceu bastante interessado na vertente instrumental do hip-hop – estilo muito apoiado pelo selo inglês Mo’wax, que mais tarde seria o nome por trás de diversos artistas importantes do estilo. Diferentemente do que buscavam algumas cenas da época como o gangsta e o rap de Los Angeles, Shadow chamava a atenção por fazer insólitas combinações musicais unindo pérolas perdidas de R’nB a gêneros como o jazz e música ambiente. Sempre com um clima obscuro e com uma profundidade pouco vista no hip hop até então, as criações de Shadow saiam do óbvio misturando peças musicais raras e frases instrumentais pouco conhecidas. Vocais raramente apareciam, vez ou outra eram usados apenas trechos falados ou frases pilhadas de filmes e programas de televisão. Evitando o uso de referências óbvias, Shadow ganhou reputação em parte devido à capacidade em manipular fragmentos fazendo-os soar como peças inéditas.
Alguns de seus primeiros singles, no começo dos anos 90, como “In/Flux” and “Lost and Found (S.F.L.)” são hoje considerados emblemáticos para o estilo, ainda que não tenham tido êxito comercial. Muitos apontam os trabalhos de Shadow dessa fase como um pilar importante para o hip-hop da década e até para o trip-hop. Até 1992, os lançamentos de Shadow foram todos distribuídos pela Hollywood Basic (subsidiária de vida curta da Hollywood Records) como a compilação “BASIC Beats Sampler” – coletânea que trazia além de faixas de Shadow, o trabalho de grupos como o “Organized Konfusion” – importante dupla da cena Hip-Hop de Nova York. No mesmo ano Joshua produziu e fez scratchs nas gravações do disco “Sleeping with Enemy” do rapper Paris. O disco trazia críticas ferozes a figuras como George W.Bush e à polícia norte-americana. A polêmica acabou gerando popularidade para o artista e o LP teve boa repercussão comercial.
Em 1996 Shadow lançou seu primeiro álbum solo, o aclamado “Endtroducing”, verdadeiro marco da história do rap contemporâneo. Nunca um disco de samplers havia soado tão coeso, ao mesmo tempo em que transgredia barreiras de gênero. Desde figuras do rock inglês até renomados produtores, são vários os nomes que já citaram o álbum como referência. Segundo o próprio Shadow, “Endtroducing” foi feito com um equipamento simples e um extenso acervo de discos de onde eram retirados os fragmentos. O álbum foi recebido com entusiasmo pela crítica. Anos mais tarde recebeu até uma nomeação no Guinness Book como “Primeiro álbum feito inteiramente com samplers” além de várias citações em listas de discos mais influentes dos anos 90.
Dois anos mais tarde foi lançada a compilação “Preemptive Strike”, que reunia diversos singles e faixas lançadas pelo produtor entre 1991 e 1998. No mesmo ano ainda Joshua produziu o álbum de estréia do Unkle, “Psyence Fiction”, um disco que contava com diversas participações como Thom Yorke e Richard Ashcroft. Shadow só lançaria um novo trabalho de inéditas em 2002, intitulado “The Private Press”. Competente segundo álbum que mostrou expansão, no já extenso leque sonoro de referências do produtor, embora não tenha sido recebido com o mesmo entusiasmo da estreia, o disco foi bem elogiado pelo público e até emplacou faixas em trilhas sonoras no cinema.
Mais recentemente, seu disco “The Less You Know, the Better” (2011) apresentou grande pluralidade quanto ao estilo das composições. Nele aparecem temas com guitarras em destaque (“Border Crossing”) e até melódicos arranjos de pianos e cordas (“Sad and Lonely”). Há desde referências ao indie rock até faixas mais pesadas, coisa pouco vista em trabalhos anteriores do DJ. O álbum dividiu opinião entre fãs. Ao vivo, o produtor sempre realizou apresentações elogiadas. Usando um sofisticado aparato tecnológico seus shows apresentam projeções e artes que ilustram visualmente as colagens sonoras sendo feitas em tempo real. Sua primeira apresentação no Brasil em 2006 foi aclamada, até por pessoas pouco familiarizadas com o trabalho do produtor.
Longe do comodismo e da mera repetição, Shadow se estabeleceu como força criativa na arte do “turntabilism”, além de ser conhecido como um profundo conhecedor de discos. Mesmo tendo seu trabalho reconhecido pela crítica, Joshua parece seguir em um caminho cada vez mais experimental na busca incansável por novos jeitos de combinar sons. Essa busca, muitas vezes parece ignorar as possibilidades comerciais que seu trabalho possa representar. De forma improvável, Shadow soube combinar sons de forma única fazendo suas faixas soarem espectrais e climáticas, afastando-o quilômetros de outros nomes do estilo que eventualmente podem cair lugar-comum da superficialidade, mesmo que atinjam o grande público em suas empreitadas. Samplear é uma arte, e como toda arte exige tempo para se aperfeiçoar.
Endtroducing repousa ao lado da minha cabeceira. Em vinil, lógico. Mas essa pedra preciosa deve ser ouvida em cd, mp3, k7, ou qualquer outra mídia. Penso ser, possivelmente, meu album predileto em todos os tempos. Impossível se cansar dele. Soa fresco e novo a cada audição, pode-se deixar-se perder em seus calabouços sonoros por décadas. Nada que Shadow lançou depois se aproxima da gradiosidade de endtroducing. Porém, só com este album, o homem merece toda minha consideração. CLÁSSICO.
“Endtroducing…” é um disco que deu profundidade às bases do hip hop. De repente, elas passaram a se tornar complemento essencial das rimas ao invés de mera ‘pista pra deixar as rimas fluirem’.
“Mutual Slump” e “The Number Song” são espectrais de tão boas.
Tenho o homem como um dos maiores produtores de beats EVER – artista cuja importância se iguala a um Aphex Twin.
E estarei lá no Cine Joia amanhã. Simbueraaa!!!
Infelizmente vou perder esse show, mas queria muito conferir. As apresentações do cara sempre valem a pena!