La Vela Puerca ao vivo no Auditório Angel Bustelo
Mendoza, Argentina – 14/07/2012
Por Leonardo Vinhas
“Vamo’ / Vamo’ la Vela / Vamo’ la Vela de mi corazón / ooh”. Um canto de guerra, como os das torcidas de futebol, ressoa pelo menos meia hora antes da banda subir ao palco. Estamos em Mendoza, região oeste da Argentina, ao pé da Cordilheira dos Andes – a muitos e muitos quilômetros de distância das praias de Montevidéu, e ainda assim os charruas do La Vela Puerca são reis, esperados com as demonstrações mais calorosas da paixão argentina, que trata o rock como se fosse um campeonato do esporte bretão.
Cerca de dois mil mendocinos (e um brasileiro) esperam pela banda. Uma jovem em cadeira de rodas, padecendo do caso mais extremo de nanismo, muitos adolescentes, alguns tiozões, e até um cachorro (provavelmente fugindo do frio de quatro graus) – em comum, todos (à provável exceção do cão) aguardam uma banda uruguaia que saltou do ska puro e simples para um rock amadurecido e versátil, uma banda capaz de entregar letras e melodias que marcam momentos muito particulares e diferentes na vida de cada um.
Também vale dizer que é uma banda que contrariou a própria estrutura do mercado fonográfico de seu país e foi capaz de apostar que era possível viver de música em uma nação com menos de três milhões de habitantes – o que só aconteceu porque sua obra atravessou fronteiras, chegando à Espanha, à Alemanha e a quase todos os países da América do Sul, fora o Brasil – ainda que Sebastián “el Enano” Teysera, um dos vocalistas e principal compositor, já tenha viajado pelo país acompanhando Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá em shows que reviviam o repertório da Legião, antes dos ex-legionários acharem que seria uma boa ideia ter o Wagner Moura desafinando na trilha de Renato Russo.
A turnê argentina é uma prova da popularidade do octeto: uma série de shows entre capitais e cidades interioranas para divulgar seu sexto álbum, “Piel y Hueso”, o primeiro lançado pelo selo Mi Semilla, de propriedade da banda. “Sobre la Sien”, do disco em questão, abre o show, e junto com “Se la Va”, confirmam os hits do álbum. Mas basta entrar “Haciendose Pasar por Luz” e “De Atar”, dobradinha do excelente “A Contraluz” (2004), para ficar claro que o material atual perde muito para aquele que ajudou a fazer o nome da banda.
Não é apenas uma questão do público estar mais familiarizado com essas canções. Sua força bruta, e ao mesmo tempo madura, é a raiz da empatia da banda – uma combinação bem diferente da urgência adolescente de “Piel y Hueso”. Então, embora as canções recentes tenham seu apelo de energia imediatista, não se comparam ao efeito emocional causado pelo material antigo, ou mesmo pelo trecho em que a banda fica restrita a Teysera, Sebastián “Cebolla” Cebreiro (segundo vocalista) e o trumpetista Ale Picone, executando as novas “Sé a Donde Quiere Ir” e “3 Minutos”.
Independente disso, não é um show para se assistir parado. A própria banda não dá respiro entre um tema e outro. E é notável como a configuração com três guitarras – Rafael Di Bello, Santiago Butler e Teysera – funciona a favor da melodia (sem perder a agilidade), e não do peso. Em canções como “Sanar” e “Sin Palavras”, em especial, fica claro o quanto a capacidade melódica da banda é particular e contagiante, mesmo com o gás levemente diminuído em prol da clareza sonora. Em “Colabore”, por outro lado, faz falta o pendor para a barulheira. Nada que atrapalhe o pogo, os cantos de guerra e a vontade de fazer um grande show.
Talvez esse último dado seja o grande diferencial do La Vela Puerca: uma paixão quase irracional pelo palco. Antes da banda tocar o primeiro acorde, Cebreiro anunciou que estavam todos de luto por Marcel Curuchet, tecladista do No Te Va Gustar, espécie de “banda-irmã” do La Vela, que havia falecido em um acidente de moto nos EUA naquela mesma tarde. “Pero hay que tocar”, finalizou o segundo vocalista, e poucas canções depois, sentia-se a entrega da banda, inclusive na vocalização emocionada de Teysera. E quando eram canções que tratavam de morte ou amizade, a situação toda adquiria uma emoção única, principalmente em “Por la Ciudad”, cavalo de batalha que usaram para iniciar o bis.
Sem mise-en-scène, a banda finaliza o show com “Zafar” (o hino para quem está de saco cheio da cidade grande), “Va a Escampar”, “El Viejo” e “El Profeta” – uma sequência matadora, de encharcar a roupa de suor apesar do frio andino. Ficaram de fora uma quantidade indecente de hits (“Fragil”, “El Señor”, “Alta Magía”, “El Huracán” e muitos outros) e um certo tanto da alegria inconsequente da banda. Porém, mesmo de luto e em uma noite gelada, La Vela Puerca conseguiu fazer todo mundo sair do caretaço auditório (onde não se pode nem consumir água durante os shows!) com a sensação de que “é preciso rir um pouco porque a morte sempre está por aí”, como dizem em “Por la Ciudad”, e que, antes de que o momento final chegue, existe algo mais. Uma experiência quase religiosa sem religião alguma envolvida.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. As duas imagens do texto são de Santiago Flores, registro de um show no Teatro de Verano
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