por Thiago Pereira
“Raul Seixas: O Início, o Fim, e o Meio”, documentário de Walter Carvalho (um dos nomes-chave do cinema nacional recente), já têm, antes de qualquer projeção, uma missão dificílima: dar conta de Raul Seixas. Todos conhecem Raul Seixas, ou pelo menos todos tem uma visão sobre ele: seja o maluco beleza que apavorava as famílias quando surgiu, nos anos 70, seja o compositor imortal que é reconhecido pelas novas famílias, que veem nele sinônimo de música brasileira realmente popular. Entre esse vão temporal, cabe ainda a ideia de um Raul drogado, de um Raul lúcido, de um Raul político, de um Raul anarquista, e daquele Raul caricatural, imaginário, que marca presença em qualquer show de rock no Brasil, chamado aos berros de “Toca Raul”.
Portanto, Raul não é pouca coisa, Raul é rock: um dos pouquíssimos exemplos onde o gênero dialogou (e dialoga) com as massas, onde teve sotaque brasileiro genuíno, onde foi usado com dignidade e conhecimento de causa. O documentário captura isso logo em seu início, em pouquíssimos segundos, com Raul cantando “Blue Moon”, do repertório de Elvis, emendada habilmente com “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga. É entre essas duas sumidades que repousa os extremos da obra musical do baiano: entre o tradicional e o radical, o mundo e o quintal. Enquanto Deus explica as coisas, o Diabo fica dando os toques, ele passou, generoso, a receita.
O filme consegue, com clareza e didatismo, avaliar a grandeza artística do músico. Inclusive com cenas históricas e emocionantes de shows, como o do Phono 73, onde um magrelo e abusado Raul Seixas, com energia animal, parece estar se apresentando não para uma plateia, mas para o mundo. Estão nas belas imagens de arquivo que desfilam clássicos maiores (“Gita”, “Mosca Na Sopa”) e menores (“Meu Amigo Pedro”, “Sessão das Dez”) as possibilidades nítidas de relacionar Raul com alguns dos nomes mais festejados da nova geração, como Cérebro Eletrônico e Cidadão Instigado, provando que sua obra segue fresca. Além de, claro, fazer o espectador se impressionar com o cancioneiro, o artista sensível, que deixa Caetano Veloso meio atordoado ao tocar “Ouro De Tolo”, no violão.
A missão mais complicada, no entanto, é entender o sujeito Raul Seixas, autointitulado metamorfose ambulante. Em suas duas horas de duração, o documentário segue orientação jornalística e não passa por caminhos poéticos/épicos: ele vê e mostra o músico de acordo com o realismo, onde personagens ordinários – como a multidão que parou Salvador no seu enterro, ou a doméstica que acompanhou seus momentos finais – têm tanta importância no filme quanto sua família (especialmente suas mulheres e filhas) e personalidades famosas no país, como o próprio Caetano, Pedro Bial, Nelson Motta, e, principalmente, Paulo Coelho. A relação dos dois é exposta sem retoques, seja nas declarações do escritor sobre o primeiro encontro e a relação de amor e ódio que cultivaram até o (francamente) constrangedor último abraço, nos bastidores de um show no Canecão, final dos anos 80. A cena da “mosca” (sem spoilers) está destinada a se tornar um clássico nas citações futuras ao filme.
Por mais que exista beleza e cuidados de pós-produção (a cena dos Panteras – primeira banda de Raul – “dublando” uma música antiga é bonita pra valer), a força do filme está mesmo no trabalho investigativo: dos companheiros que faziam com Raul o fã-clube de Elvis em Salvador, nos anos 60, até o dentista que tratou o músico já no fim da vida, muita gente aparece para ajudar a decifrar a história. Mérito da câmera pouco oculta do diretor (vazando perguntas e comentários aos entrevistados) que captura uma impressionante quantidade de declarações chocantes e pessoais. A franqueza com que são abordados temas espinhosíssimos (como drogas, religião, política, paternidade, casamentos) assusta quem está acostumado com a linha mais “morde e assopra” adotada nos documentários nacionais recentes.
Sim, as questões que os fãs de Raul sempre se perguntam estão colocadas (e algumas, respondidas) com fartura no filme: “Quem foi seu maior parceiro? Existia uma rivalidade assumida com Caetano? Ele foi preso realmente na ditadura? Quantos filhos deixou? E seu envolvimento com o ocultismo?”. Vários trechos arrepiam, de verdade, como a presença de Marcelo Nova na fase final da vida de Raul, questionada por alguns e respondida de forma corajosa pelo próprio Marcelo.
Apenas é meio duvidoso o tratamento narrativo dado aos suspiros finais de Raul. É quando a película caminha perigosamente na linha do sensacionalismo, transformando os últimos dias do músico em algo próximo de um episódio desses programas espirra-sangue da TV. Enxergar e valorar Raul como um ícone das massas é louvável, daí a entender que essa é a via para retratá-lo, ou pior, que essa é forma de aproximá-lo do povo, não. E o próprio Raul, com todo escracho e iconoclastia do mundo, provou que essa equação se resolve com inteligência e brilhantismo.
O saldo final é um retrato transparente de Raul nu e cru, no início e no meio, com um fim mais triste (na abordagem e na vida real) do que deveria, com toda aquela energia perdida – literalmente – no éter e na apelação. Mas o gosto amargo no final não compromete totalmente o grande trabalho de investigação traçado pelo filme. “Raul: O Início, o Fim e o Meio” deve ser assistido por tudo e por todos, para que, além das caricaturas e gritos nos shows, essa genuína potência criativa chamada Raul Seixas possa ser mais bem compreendida pelas próximas gerações.
– Thiago Pereira é jornalista e integra a equipe do Programa Alto Falante
Tenho muitos ídolos na música, mas Raul é o maior. Até porque ele transcende a música. Algumas de suas idéias e sua maneira de ver a vida são inspiração pra mim.
Temos alguns músicos escrachados, sarcásticos, inteligentes, talentosos…
Mas ter essas característcias e exibí-las de forma azeda é meio chato de ver.
O bacana do Raul é que ele misturava os itens acima como humor e doçura.
Aí, ficava irresistível.
Penso tb que a honestidade com que encarou sua vida (idéias, por mais metamorfoses que elas pudessem ter) é um belo diferencial.
Sobre seu final trágico. Como roçou o texto do Thiago, penso que pra um cara como Raul tragédia mesmo seria viver como a maioria.
Como diz Paul Rabbit: Nada a lamentar, ele viveu o que quis.
PS: O único senão que tenho para com Raul é o fato dele sempre ter querido ser americano. Acho isso uma puta babaquice. Mas, enfim, credito tal vontade ao imenso amor pelo rock’n’roll que tinha.
Tem até uma história que a Rita Lee conta que quando os apresentaram o Raul mandou essa: Bora trocar o teu Lee pelo meu Seixas.
Eu como fã que sou, que vou a passeata todos os anos regiliosamente no dia 21 de agosto, eu que tenho cd, vinil, show em vhs, camiseta e botton.
Eu que odeio documentario, cedi as lagrimas da primeira a ultima cena deste doc.
Walter Salles que conseguiu marvilhosos depoimentos das esposas, das filhas, do irmão, dos amigos, dos fãs na passeata anual, conseguiu também descrever Raul através do mito e dos anos.
Percebe-se que ele foi sim o inicio, o meio, porém nunca o fim. Mesmo após 23 anos, ainda o temos presente, em suas letras que permanecem atuais, em toda a loucura, em todo o personagem.
Achei que passou do ponto o doc de Raul Seixas dedicar metade do filme ao sensacionalismo da morte/drogas. Tanta obra, entrevista e lucidez pra continuar abordando pelo menos até os 80% do filme…
Aquela reconstituição não precisava mesmo…
Indico aqui o livro: O Baú do Raul.
Bom dia a todos.
Eu não tive tesão em ver o filme pelas presenças nada Raulseixistas do Nelson Motta, do Bial e do Caetano. Esse último eu amo e odeio.
Ver o Nelson Motta tecendo loas ao Maluco Beleza com a mesma cara de bobo alegre que teceria a Veveta Sangalo não iria me cair bem.
PS: O livro O Baú do Raul é mesmo dez, Rodrigo!