Break up Book #04, por André Takeda
“Emmylou”, First Aid Kit
Ele não lembra exatamente quem, até porque muito do que aconteceu naquele dia passou por seus olhos como se fosse uma tempestade de areia travestida de dor, mas alguém disse algo como ei, acho que você gostaria de ficar com a aliança do seu pai“. Tirou a mão direita do bolso do casaco, sentiu o frio de Porto Alegre congelar seus dedos e agarrou aquele anel de ouro que tanta conhecia. Desgastado. Largo. Fosco. Sem saber exatamente o que fazer, colocou a mão de volta ao bolso e, junto, a aliança. Que ali ficou. Por dias. Semanas. Meses. Primavera, verão, outono e inverno de novo. Quando o clima pediu o velho casaco de lã e as mãos exigiram proteção, encontrou, assim sem querer, a aliança. E, pela primeira vez em seus trinta e tantos anos, leu as iniciais de seus pais e uma data gravada na parte interior do anel. Óbvio. Era o dia do casamento deles, algo que ele nem sabia. Sozinho, no meio da rua, sentiu o peito se encher de angústia e foi então que se deu conta. E ligou para você. Você, claro, não atendeu ao chamado. Há muito tempo aquele número já não existia na sua memória. Era, como o próprio display do celular dizia, um número desconhecido. E você não queria desconhecidos na sua vida. Muito menos desconhecidos que já conhecia bem. Talvez tenha sido um erro não ouvir o que ele tinha a dizer. Talvez não. Porque às vezes é preciso parar de andar em círculos. Para você, provavelmente, seja fácil pensar assim. Mas, para ele, a vida sempre foi um círculo, uma circunferência perfeita, como aquela aliança. Principalmente depois que conheceu você. Sim, porque tudo sempre voltava a você. Tudo. Feito um círculo. E, com aquela aliança na mão, ele teve vontade de ligar e falar e confessar. Seria algo como eu sei que é ridículo, que pode parecer uma estupidez, mas sempre tive essa ideia de que o casamento dos meus pais foi um fracasso, assim como o nosso casamento, sabe, mas, na verdade, o casamento dos meus pais não foi um fracasso, porque se fosse um fracasso o meu pai não estaria usando a aliança de casamento até o seu último dia, afinal, você sabe, minha mãe faleceu há mais de 15 anos, e, durante todo esse tempo, o cara não tirou uma única vez a aliança, então que não me venham dizer que os dois eram infelizes, que a minha mãe morreu de mal com ele, ou qualquer coisa parecida, o que importa é que ele nunca se separou dela, que o casamento dos dois foi um sucesso, literalmente até que a morte os separe, por mais brega que isso possa parecer, e, outra vez sem medo de ser ridículo, sempre achei que o modelo de casamento para mim era o de Johnny Cash e da June Carter, nessa minha loucura de achar que a música pop é a resposta para tudo, mas, na verdade, este modelo, este exemplo, sempre esteve muito mais perto de mim do que eu imaginava, e agora estou aqui com a aliança do meu pai na minha mão e tenho vontade de dizer que não fracassei, meu amor, não fracassei porque o mundo só vai me tirar de você no dia em que eu morrer. Mas, todos sabemos, este discurso ficou engasgado no ar frio do inverno. Você não atendeu ao telefone. Ele ficou calado. Você continuou sua vida. Ele voltou a fumar. Você tentou de novo. Ele, com todo o respeito ao casal Johnny e June, ganhou novos ídolos. E a música pop, bem, a música pop nunca foi mais a mesma.
Você encontra “Emmylou” no álbum “The Lion’s Roar”.
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André Takeda (siga @andretakeda) é autor dos livros “O Clube dos Corações Solitários” (2001), “Cassino Hotel” (2004) e “A Menina do Castelinho de Jóias” (2011). É colaborador de primeira hora do Scream & Yell e assina atualmente o Tumblr Eu Quero Ser Amigo, publica suas fotografias (como a deste post) no http://www.flickr.com/photos/andretakeda/ e assina no Scream & Yell a coluna Break up Book.
Download: baixe “Ao Vivo”, coletânea de textos de André Takeda em PDF (aqui)
Leia também:
– Break up Book #01: “All I Have To Do Is Dream”, Tashaki Myaki (aqui)
– Break up Book #02: “Blue Skies”, Noah and The Whale (aqui)
– Break up Book #03: “The Whole of The Moon”, Idiot Wind (aqui)
A música é muito bonita. As irmãs suecas fazem um lindo vocal. O disco todo é bom de ouvir.
André, tenho 17 anos e desde os meus 12 anos leio ao menos uma vez por ano “Um Adolescente nos anos 80”, publicada em 2000 na S&Y 1.0.. Gostaria de agradecer porque você, através dessa história, me ajudou a passar por uma fase da minha vida aonde eu estava perdido com todas essas mudanças de pré-adolescência e tudo que vem junto a ela. Tive a minha Julia, tentei não errar como o João errou, mas talvez por ler tantas vezes aquelas histórias, cometi os mesmos erros que ele e também graças as histórias, vi que ficar na foça não valia a pena e que tem gente que já sentiu pior.
Agradecer também porque foi você o responsável a me introduzir a música dos anos 80, que acabou me levando a musica dos anos 60 e que fez o molde pra tudo que eu escuto hoje! Simplesmente obrigado. Adorei ler seus textos novos. Talvez você nem leia… só queria te dizer que você, suas histórias, foram importantes na minha vida. 🙂