texto por Murilo Basso
fotos por Pablo Felippe
“Como é o futebol aqui?”, pergunto, tentando me familiarizar. “Então, é algo engraçado!”. Boa Vista tem cerca de 290 mil habitantes, mais da metade das 460 mil pessoas que constituem o estado de Roraima. A última edição do campeonato estadual contou com seis participantes e, acreditem, não teve a presença do Baré Esporte Clube, campeão no ano anterior. Os grandes eventos futebolísticos na região se resumem a um jogo por ano, pela Copa do Brasil. “Fluminense e Botafogo já jogaram aqui. É algo louco, a cidade para. Mas esse ano foi muito bizarro…”. O já citado Baré Esporte Clube foi eliminado da competição porque não regularizou seus atletas junto à CBF. Motivo? A Federação Roraimense de Futebol ficou cerca de cinco meses sem acesso à internet. “Aqui a gente não tem nem banda, muito menos banda larga”, disse um dirigente da FRF na época. Aliás, em uma rápida busca online, descobre-se que a FRF não possui site ou sequer telefone próprio. Pode parecer difícil, mas a situação se torna ainda mais tragicômica quando olhamos para 2012: “Ano que vem não temos ideia de quem vai representar o Estado. O Real, atual campeão, já declarou que não tem condições. Se o campeão não tem como viabilizar a disputa, imagine o resto. Arrisca a vaga ficar com o FAST, do Amazonas”. Algo contraditório, afinal, estamos no país do futebol, certo? “E ninguém foi a CBF para o julgamento do Baré. É complicado sair daqui”.
Aliás, o isolamento é outro tema estranho para quem não está acostumado à realidade roraimense. Conversando com os moradores, fica claro que a forma mais tranquila para se chegar a Boa Vista é via aérea. Manaus é a capital e cidade – como estamos acostumados a conceber – mais próxima – distante cerca de 750 km. Isso se traduz em aproximadamente 15h de viagem pela BR-147, que tem suas peculiaridades: ela é fechada entre 18h30 e 6h, por passar no interior da reserva indígena Waimiri-Atroari, na divisa com o Amazonas. Segundo último levantamento, uma média mensal de 110 animais de várias espécies morre em decorrência de atropelamentos na rodovia – um dos motivos que levam os indígenas a bloquear os 123 quilômetros da estrada localizados dentro da reserva. “Para nós é algo normal. E se alguém sai de Manaus às 15h tem como passar pela estrada à noite. Dá tempo tranquilamente”. Alguns aproveitam para dizer que o Brasil, como conhecemos, acaba mesmo na capital amazonense: “Manaus ainda é Brasil. Aqui a gente vive em outro país”.
Outros fatores que ajudam a intensificar esse “choque de realidade” para forasteiros é o fato de que se trata de uma capital de Estado, mas que em termos populacionais, está longe de ser um município pequeno – embora o clima interiorano seja comemorado em cada esquina. “Aqui todo mundo se conhece, dá para dormir com a porta aberta. Os bandidos ainda usam faca”. E tudo caminha normalmente nesta cidade que possui três prédios, dois deles em construção. “Ô gringo, como é olhar para um horizonte sem edifícios?”. E que, claro, não tem McDonalds. “Quando abrir uma franquia aqui faço uma festa! Mas pensado melhor, sou mais um China in Box!”.
Talvez mais impressionante seja notar carros respeitando a sinalização, com pedestres andando sem medo: “Já foi melhor. Um tempo atrás todos paravam. Sem contar que trânsito ainda é uma novidade, um acontecimento. O hype não passou”. Além do Guaraná Baré, claro. O Baré chegou a ser comercializado nacionalmente durante a década de 80, mas hoje está restrito ao Amazonas e outros municípios da região norte. Fabricado em Manaus, pela Ambev, pode ser facilmente considerado um dos melhores guaranás desse país. “Antigamente só tinha aquelas garrafas de vidro 600 ml. Há uns dois anos lançaram a latinha e até hoje ela é sensação”.
Os grandes shows acontecem em um estacionamento e, óbvio, movimentam toda a cidade. “Já teve Biquini Cavadão, Frejat… É o nosso Lollapalooza, cara!”. Aliás, a vontade por frequentar grandes eventos merece um capitulo a parte. “Não consegui comprar ingresso para o Planeta Terra, me perdi no fuso horário”. Há ainda quem ressalte não conhecer nenhum roraimense que tenha conseguido ir ao festival. “É impossível comprar ingresso com essa internet.”
No entanto, só é possível perceber o quão distante estamos quando observamos placas indicando o caminho para a Venezuela: Santa Elena de Uairén fica a aproximadamente 200 km de Boa Vista. “É um país legal, pobre e sofrido, mas com uma gente bacana”. Segundo relatos, na terra de Hugo Chavéz o litro de combustível custa R$0,06 e os fiscais de fronteira são “presenteados” com caixas de chocolate Garoto. “Tu precisa ver a alegria deles quando abrem uma. Parecem crianças”. Mas o paraíso mesmo é Lethen, na divisa com a Guiana. “Pô, tênis da ‘Adidas’ por R$40,00. Tem coisa melhor?!”.
Olhando agora, há quem diga que Humberto Gessinger estava se referindo à Boa Vista quando escreveu “Longe Demais das Capitais”. E é nesse cenário que ocorreu a quarta edição do Tomarrock, festival de música e artes integradas que visa promover o cenário independente roraimense. O Scream & Yell acompanhou as apresentações e, embora seja preciso considerar que Roraima está em uma realidade diferente daquela a que estamos habituados, ocorreram boas surpresas. Enquanto na primeira noite a Garden mostrou bom apelo pop, na segunda noite a JamRock (foto acima) roubou a cena com suas canções com levada reggae que, apesar de não trazer novidades ao gênero, mostram melodias bem construídas e arranjos caprichados. Os convidados da Nicotines (AM) também fizeram bonito, com um show repleto de referências ao rock dos anos 80 e 90, além da Camarones Orquestra Guitarristíca (RN), que dispensa maiores apresentações.
Aproveitando nossa estada no extremo norte, conversamos com Manoel Vilasboas, organizador do Tomarrock, para tentar compreender melhor todo o contexto da cena local e as dificuldades para inserir atividades culturais em uma região tão distante. Confira abaixo:
Como surgiu a ideia e qual o conceito do TomaRRock?
O festival é uma forma de comemorarmos o ano de trabalho, a maneira mais fácil de juntar o povo da cena musical/artística (principalmente do rock) de Roraima com vários agentes de outros estados, de bandas a jornalistas, de palestrantes a gestores. Sabemos que estamos muito longe de tudo e queremos um dia ser referencia de boa música e que a cultura roraimense possa ecoar através desses agentes que por aqui vem. Na 4ª edição do festival mudamos o conceito que era de trazer bandas de Manaus e bandas proeminentes do cenário atual, como Madame Saatan, Los Porongas e Black Drawing Chalks para que as bandas locais tivessem contato com carreiras de bandas que pudessem se inspirar. Pra esse ano, mudamos e pensamos em agradar o público costumeiro, os “metaleiros”, trazendo o Dr. Sin, e um público que não “consome” as produções alternativas/ autorais do Canoa Cultural, ou seja, o público do ForFun. Foi o primeiro TomaRRock com esse conceito.
Esse tipo de evento, ou melhor, eventos direcionados a esse tipo de publico, se restringem ao Tomarrock? Como fica no resto do ano? Quais as alternativas?
Houve a cena rock dos anos 80, mas as bandas eram covers. No final dos anos 90 e inicio dos anos 2000 surgiram bandas, todas covers, mas algumas compunham. Tocavam na noite, incluindo ai a minha banda, o Mr Jungle, umas poucas canções próprias e inúmeras versões. A primeira banda a tocar só musicas próprias foi a finada LN3, isso em 2003. Em 2005 o Mr. Jungle volta reformulado só tocando próprias. Em 2006 trouxe a ideia do coletivo que surgiu em novembro de 2007, como “coletivo TomaRRock”, sendo um grupo de bandas autorais que produziriam seus eventos para criarmos espaços para tocar. De lá pra cá viramos o Canoa Cultural, só eu restei e passamos a trabalhar com foco divulgação da cultura roraimense de todas as artes. Somos basicamente a única opção para as bandas autorais de Roraima, com raras exceções de um ou outro produtor de eventos pontuais. Produzimos ou co-produzimos mais de 40 eventos por ano, de artes variadas. Falando só de música, realizamos ainda o Grito Rock, as noites Fora do Eixo, os programas “Canoa na Praça”, “Canoa na Escola” e “Canoa na Estrada”, no interior, levando shows, oficinas e palestras gratuitas para os diferentes públicos. Há os eventos do SESC, do qual participamos da produção, entre eles o “Espaço Rock a Todo Volume” e o festival “SESC Fest Rock”, que já está na sétima edição onde conseguimos imbuir os gestores do SESC de trabalharmos somente as bandas autorais. Temos parcerias com a Fundação de Cultura do município, com a Unidade de Cultura do Estado e Combo Sebrae, e somos chamados para co-produzir ou realizar curadoria para escolhermos somente as bandas autorais. Ou seja, temos eventos constantes, mas sem um local próprio para o publico que queira ouvir música exclusivamente autoral semanalmente.
Eu senti Boa Vista realmente distante em relação ao resto do país. Mas, claro, é uma visão de quem está de fora. Como você enxerga esse isolamento? De que formas ele dificulta o acesso a cultura em geral?
Tá ai algo que nunca mudará. A geografia será a mesma e estaremos sempre distantes do resto do país, a não ser que uma hecatombe nuclear ocorra e aproxime Roraima do centro do Brasil. Para se “fazer” um artista independente em Roraima, o cara deve saber que não temos o melhor som, nem luz e temos poucos espaços adequados para realizar os eventos. O SESC é um grande parceiro, mas o espaço multicultural do SESC local fechou para reformas, fazendo com que o público ficasse carente do único espaço médio e de fácil acesso de Boa Vista. E historicamente o berço do rock autoral roraimense da década passada. Temos hoje quatro vôos diários… Somente um vespertino. Agora em dezembro, quem quisesse sair de Boa Vista por avião só poderia sair após o dia 25 (isso desde o dia 8/12). A pouca oferta de vôos que saem todos lotados inviabiliza quase que por completo fazermos shows casados “Boa Vista/ Manaus” em dias seguidos. Os preços são muito altos. Ah, tem promoções, certo, mas mesmo assim são bem mais caras que em qualquer lugar do Brasil. Com a chegada da banda larga em 2009, a distância do mundo virtual diminuiu, mas ainda é parca a oferta e o publico ainda não tem o hábito de assistir a web tv e web rádio. O acesso à cultura de massa é de boa, mas algo mais alternativo, justamente o que trabalhamos, é algo precário ainda, mas estamos aumentando a freqüência de shows e de ações variadas.
E isso acaba influenciando no festival…
Tivemos que adiar a noite com o Emicida, pois o mesmo tocaria numa sexta feira, pegaria o vôo das 13:30, chegaria em Manaus às 14:30 e só sairia de lá às 23:00, chegando em São Paulo às 03:00 de domingo. Como ele teria 3 shows no sábado e esse era o único vôo, tivemos que adiar para janeiro. O show do Dr Sin, que fecharia a noite do dia 9/12 e ocorreria por volta da 01:00 da manhã já do dia 10/12 foi antecipado para as 22:00, pois o único vôo que lhes devolveriam para São Paulo a tempo de cumprir agenda, sairia de Boa Vista à 00:30 da manhã. Tivemos patrocínio da OI, mas a verba não caiu a tempo e em uma produção do tamanho do TomaRRock desse ano, ou nos adaptaríamos a nossa realidade ou furávamos com quase toda a programação. Sem contar que quase sempre não somos a primeira opção de uma banda quando estamos disputando uma data.
Também me senti bem perdido em Boa Vista no sentido de que é perceptível que, por exemplo, o norte do Paraná é muito influenciado culturalmente por São Paulo. Já a região oeste do PR e o sul de SC, são influenciados pelo RS. Outro exemplo: o triângulo mineiro está mais próximo culturalmente de Goiás do que de Belo Horizonte. Nesse sentido não consegui encaixar Boa Vista em nenhuma situação semelhante: não vejo uma grande influência de Manaus, até pela distancia, assim como não vejo a Venezuela com representatividade suficiente para influenciar vocês significativamente. Há uma influência que eu não consegui pegar? Ou a cultura é roraimense mesmo, algo bem particular e definido?
Ouvi uma vez que Boa Vista era uma espécie de Nova Iorque miniatura. Pois temos pessoas de todos os cantos do país vivendo aqui. Mais de 70% da população é de fora do Estado. Temos influência de todos os cantos, misturados com o tempero indígena. Somos, ao mesmo tempo, urbanos, mas com uma cara multifacetada. A influência caribenha é menor do que se pode imaginar, mas também há pitadas dentro da mistura que é ser Roraimense, nascido aqui ou não. Como eu, um paraense que ama Roraima.
Qual a função do TomaRRock nesse processo de, digamos, inserção cultural?
Queremos transformar o TomaRRock numa referencia da cultura roraimense fora de Roraima. Queremos que quando alguém escutar as palavras “Festival TomaRRock de Artes Integradas” tenham a certeza da qualidade do evento e que encontrarão ali uma mostra do que está rolando em todo o país, misturado com parte do que há se melhor no que tange a cultura do estado. Tá, falta muito, mas creio que estamos trabalhando pra isso, e podemos sonhar. Hoje somos uma das melhores oportunidades que os artistas possuem para mostrar seu trabalho, sempre aumentando a parceria entre o Canoa Cultural, os artistas e o 2º e 3º setor.
– Murilo Basso é jornalista e colabora com o Scream & Yell, o Urbanaque e a Rolling Stone. Já entrevistou Wander Wildner (aqui) e participou da cobertura do Planeta Terra (aqui)