Em 2012, “Você Não Soube Me Amar” completa 30 anos. O compacto que a Blitz lançou em junho daquele ano sinalizou que alguma coisa nova estava surgindo e mudando o comportamento do público brasileiro. “Você Não Soube Me Amar” é o ponto de referência para o surgimento do que veio a ser conhecido com rock nacional, ou BRock (como defendia o jornalista Arthur Dapieve).
Para festejar a data marcante (30 anos? Parece que foi ontem), o Scream & Yell começa um especial que pretende revisitar alguns álbuns importantes daquele período, discos emblemáticos que foram trilha sonora de um Brasil pós-ditadura. “Nós Vamos Invadir Sua Praia”, lançado pelo Ultraje a Rigor em 1985, inaugura a fila em texto do editor do site, Marcelo Costa (publicado originalmente no número 1 da revista Zero, em 2002 – e revisto para este especial).
Nas próximas semanas, Tiago Agostini lançará luz sobre “Dois” (1986), da Legião Urbana; Tiago Trigo escreverá sobre “Cabeça Dinossauro” (1986), dos Titãs; Renato Beolchi contará a saga de “O Concreto Já Rachou” (1985), da Plebe Rude; e Bruno Capelas promete texto sobre “Vivendo e Não Apredendo” (1986), do Ira!, É só o começo: muitos outros discos virão. Mistura sua laia ou foge da raia, sai da tocaia, pula na baia: agora nós vamos invadir sua praia.
por Marcelo Costa
Início dos anos 80 e o Brasil sofria com a ditadura, que começava a se esfacelar, mas ainda era um fantasma perseguindo o imaginário popular. A música nacional como um todo, e o rock em particular, havia sido deixada de lado – mutilada pela censura quando não proibida. A MPB, após e vindas do exílio, parecia perdida. O primeiro sinal de que as coisas poderiam mudar veio com um compacto que falava sobre “chope e batatas fritas”, pop ensolarado como as praias do Rio de Janeiro, que fez a Blitz vender muito em julho de 1982 e participar até de programa de fim de ano do Rei Roberto.
Outros sucessos cariocas tomaram as rádios na primeira metade da década, mas a resposta paulista não tardou e surgiu cínica, na veia, já escancarada na capa de um disco: “Nós Vamos Invadir Sua Praia”. Mais do que provocação bairrista, a promessa do título captava a essência do rock’n’roll adolescente (mesmo com Roger Rocha Moreira, autor de todas as letras do disco e da grande maioria das canções, estar beirando os 30 anos) transformando 9 das 11 canções do disco em clássicos absolutos daquela geração. Praticamente um “Greatest Hits”.
Até o lançamento do álbum, em setembro de 1985, a carreira do Ultraje se resumia a alguns shows e dois compactos de boa repercussão na imprensa. A boa aceitação de “Inútil” (com “Mim Quer Tocar” no lado b) e “Eu Me Amo” (com “Rebelde Sem Causa”) abriu as portas para um álbum completo. Liminha e Pena Schmidt levaram Roger (guitarra e voz), Mauricio (baixo e voz), Leospa (bateria) e Carlinhos (guitarra) para o Rio de Janeiro e, no recém construído Estúdio Nas Nuvens, ajudaram o grupo a parir um dos discos obrigatórios da música brasileira.
O repertório do álbum já estava sendo burilado nas casas noturnas da noite paulistana e foi definido pelos fãs do Ultraje em uma votação (eleições diretas, claro) numa apresentação história do grupo na boate Rádio Clube (que mudaria o nome para Avenida Club posteriomente, e hoje em dia atende por Estúdio Emme), em São Paulo, em um sábado de Aleluia. Desse show também saiu a versão ao vivo do hit “Independente Futebol Clube”, que fecha o álbum com intensa participação da plateia (algo que se repetiria em todas as apresentações subseqüentes do Ultraje a Rigor).
“Nós Vamos Invadir Sua Praia”, a música, abre o disco como uma carta de intenções: “Daqui do morro dá pra ver bem legal / O que acontece aí no seu litoral / Nós gostamos de tudo / Nós queremos é mais”. Guitarras base e solo se cruzam e a levada do baixo comanda. Os backing vocals da canção ficaram a cargo de um time de estrelas: Léo Jaime, Ritchie, Selvagem Big Abreu (do João Penca e Seus Miquinhos Amestrados) e Lobão (é dele a frase: “Cadê a minha farofinha, Roger?”).
O ouvinte não tem tempo para descanso. Na sequencia, uma bateria eletrônica serve de introdução para “Rebelde Sem Causa”, retrato de tédio de um cara sem problemas (“Minha mãe até me deu essa guitarra / Ela acha bom que o filho caia na farra / E o meu carro foi meu pai que me deu / Filho homem tem que ter um carro seu”). O reggae “Mim Quer Tocar”, a próxima, carrega na ironia (“Mim quer votar” / “Minha em batuqueiro – conheiro”) causando um momento inusitado nos shows: o público jogava moedas no palco na hora do refrão: “Dinheiro, dinheiro, mim gosta ganhar dinheiro”. Roger toca sax e Liminha bateria na canção.
O cardápio de hits é impressionante: “Zoraide”, rock ultra básico que se inspira em uma namorada pentelha (“Fica juntando enxoval / Pede um fogão de natal / Diz que eu me visto mal / Que eu sou um cara chulé / Que mulher!”) para discutir a monogamia (“Essa história de uma só / Zoraide tenha dó / Eu quero mais é variar”); “Marylou”, canção “infantil” de duplo sentido com levada country (e Herbert Vianna solando) sobre a galinha que carrega o nome da música e a vaquinha Sarah Lee; “Eu Me Amo”, uma canção que sarreia a dependência das pessoas nos relacionamentos. Para Roger não é “Eu não consigo viver sem você”, mas sim “Eu não consigo viver sem mim”.
“Inútil” é a canção que mostra a evolução do Ultraje (e do rock brasileiro como um todo) em apenas dois anos. Lançada em compacto em 1983, a canção tinha todos os elementos de um clássico instantâneo: um riff que grudava na cabeça, uma letra irônica e oportuna (que hoje em dia é discutida em aulas de Língua Portuguesa em universidades), mas a produção tirava todo seu peso transformando a música em algo suave, pop quase new wave. A coisa muda dois anos depois: a versão que entrou no disco traz Roger cortando o ar com um riff sujo enquanto Carlinhos complementa a canção com efeitos e repete o solo de Edgard Scandurra na gravação do compacto. A voz de Roger surge mais enterrada na mixagem, mas não descaracteriza a letra antológica: “A gente não sabemos escolher presidente / (…) A gente somos inútil”.
Calma, ainda não acabou: há “Jesse Go” (parceria de Roger com Mauricio cantada pelo segundo), “Se Você Sabia” (uma das raras músicas do disco, talvez a única, a não tocar massivamente em rádio) e “Independente Futebol Clube”, a tal canção que “tinha uma participação muito legal da plateia” e que foi gravada ao vivo em uma casa de shows de São Paulo, um hino que colocava uma pedra – de forma direta, simples e genial – sobre o tema relacionamentos: “Eu não sou seu / Eu não sou de ninguém / Você não é minha / Eu não tenho ninguém / Nós somos livres / Independente Futebol Clube”. É nessa hora que o público entra como se fosse uma torcida comemorando o gol de seu time.
Porém, a genialidade e simplicidade de “Independente Futebol Clube” encontra concorrente no disco, naquela que é, talvez, a melhor canção de Roger e um dos clássicos irretocáveis do rock nacional: “Ciúme”, um riff anos 60 a la Chuck Berry ambientado numa levada contagiante e com uma letra sensacional, um retrato de época perfeito: “Eu quero levar uma vida moderninha / Deixar minha menininha sair sozinha / Não ser machista e não bancar o possessivo / Ser mais seguro e não ser tão impulsivo / Mas eu me mordo de ciúme”. Para o final, um crescendo mortal com solos de guitarra ambientados na mixagem duelando com vozes sobrepostas. Um hit inconteste. Em dezembro de 1985, lá estava o Ultraje tocando “Ciúme” no especial de fim de ano de Roberto Carlos.
“Nós Vamos Invadir Sua Praia” deu ao Ultraje a Rigor discos de ouro e platina e catapultou o grupo ao estrelato (a banda precisou pedir à gravadora para que parassem com a divulgação, com receio de o público se cansasse com tanta exposição). Mais: mostrou que havia como unir juventude e inteligência à música. Bons instrumentistas, canções certeiras e letras sensacionais na hora certa, no lugar certo – um Brasil renascendo após o fim da ditadura – fazem de “Nós Vamos Invadir Sua Praia” um disco fundamental.
O álbum chegou a ser lançado em CD em 1989, mas a tiragem era pequena e logo esgotou. Em 2001, a série Warner Arquivos recuperou o disco acrescentando cinco faixas bônus: as versões compacto de “Inútil” e “Mim Quer Tocar” mais “Marylou (Versão Carnaval)”, “Hino dos Cafajestes” (as duas do EP “Liberdade para Marylou”, de 1986) e a inédita “Ricota”, de Edgard Scandurra (com ele tocando guitarra e cantando), que o Ultraje gravou em 1983 como plano b caso a censura barrasse “Inútil”. Como a canção passou batida pelo órgão, “Ricota” acabou na gaveta, mas a banda chegou a gravar uma nova versão e lançá-la no álbum “Crescendo”, de 1989, com letra modificada (a versão aqui presente é a original). Em 2010, “Nós Vamos Invadir Sua Praia” retornou ao mercado em versão de vinil 180 gramas lançada pela Polysom.
Faixas
01. “Nós Vamos Invadir sua Praia”
02. “Rebelde sem Causa”
03. “Mim Quer Tocar”
04. “Zoraide”
05. “Ciúme”
06. “Inútil”
07. “Marylou”
08. “Jesse Go”
09. “Eu Me Amo”
10. “Se Você Sabia”
11. “Independente Futebol Clube”
Faixas Bônus – Edição de 2001
12. “Inútil” (Versão Single-1983)
13. “Mim Quer Tocar” (Lado B de Inútil-1983)
14. “Hino dos Cafajestes” (Single)
15. “Marylou” (Versão Carnaval)
16. “Ricota” (Faixa Previamente Não Lançada)
Produção: Liminha e Pena Schmidt
Roger Moreira: voz e guitarra base
Carlo Bartolini (Carlinhos): guitarra solo e vocais
Maurício Defendi: baixo elétrico e vocais
Leonardo Galasso (Leôspa): bateria e vocais
Músicos convidados
Liminha: guitarra, violão, percussão, teclados e vocais
Herbert Vianna: guitarra solo em “Marylou”
Lobão, Ritchie, Selvagem Big Abreu e Léo Jaime: vocais em “Nós Vamos Invadir Sua Praia”
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Após “Nós Vamos Invadir Sua Praia”, o Ultraje a Rigor (com Serginho Serra no lugar de Carlinhos) lançou “Sexo!!” (1987) e “Crescendo (1989)”. Em 1990 saiu o disco de versões “Por que Ultraje a Rigor?” e, em 1993, apenas com Roger da formação original, foi lançado “Ó”. Em 1999, a banda lançou “18 Anos sem Tirar!”, um disco ao vivo que trazia quatro faixas inéditas gravadas em estúdio. Em 2002 foi a vez de “Os Invisíveis” e em 2005 o Ultraje gravou seu “Acústico MTv”. Em 2009, o grupo liberou gratuitamente o EP virtual “Música Esquisita a Troco de Nada!”, que permanece liberado para download (aqui) junto a outras 40 canções.
Site oficial: http://roxmo.sites.uol.com.br/
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– Histórias do Ultraje a Rigor, por Marcelo Costa (aqui)
– “Nós Vamos Invadir Sua Praia”, biografia de Andréa Ascenção, por Adriano Costa (aqui)
Muito bom o texto e nos remete a melhor época do rock ‘n’ roll nacional e quão bom é reviver esses nostálgicos e inesquecíveis momentos ao som do ROCK ANOS 80.
Discão. Quando era moleque as primeiras músicas que lembro de cantar são desse disco. Texto bem bacana sobre um trabalho diferenciado do rock brazuca.
Sensacional!!!! foi o primeiro disco que eu comprei com os meus parcos caraminguas, inclusive escutamos esse disco até furar em uma festinha. bons tempos
só tomara, marcelo, que não apareçam aqueles de sempre, para detonar Legião, Titãs, paralamas, ira!…
Nós Vamos Invadir sua Praia e Inútil são duas grandes músicas.
E são grandes justamente por não serem só engraçadinhas, tinham conteúdo.
O resto do disco é um Mamonas melhorado.
Incrível como Ultraje nunca mais fez nada que prestasse depois disso.
Bacana essa iniciativa, Marcelo.
Interessante ver quais discos dessa época ficaram ou não datados.
Na minha opinião poucos passaram no teste do tempo.
é incrível como mesmo depois de tanto tempo só a menção da música faz vir na mente a letra, os arranjos, os solos…
E, brigadú, pelo link p baixar as músicas. Vou fazer uma edição especial colocando ciume seguida de independente futebol clube p meu namorado. Quem sabe ele entende a mensagem de q ciume é muito anos 80 !!! kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Também acho que pouquíssimos destes discos mais populares do rock brazuca dos anos oitenta resistiram ao teste do tempo (inclusive este). No entanto o lado mais underground gerou albuns que ainda hoje continuam fresquinhos, como o primeiro e o segundo do De Falla, “O Ápice” do Vzyadoq Moe, “Cadê as armas” das Mercenárias, todos do “Fellini” e outros de nomes como Sexo Explícito, Último Número, Picassos Falsos, Patife Band, Colarinhos Caóticos, Black Future, entre outros.
Achoque, ao contrário, a maioria desses discos sobreviveram ao tempo. Legião 1 e Dois. Selvagem, O Concreto Já Rachou, Jesus não tem dentes… o blesq blom, os tres primeiros do IRA, são discos que se tornaram atemporais.
Ismael, quando se fala que não sobreviveram ao tempo é basicamente se referindo ao som.
Se este soa datado ou não.
Todos os que citou são grandes discos, mas os do Ira!, por exemplo, têm o som completamente datado.
Desses aí os que melhor envelheceram na minha opinião foram o Selvagem? e o O Blesq Blom.
Aliás, o som dos Paralamas é o mais fresco(no ótimo sentido rssrrs) das bandas dos anos 80.