Livro: Menino de Lugar Nenhum

por Gabriel Innocentin?i

Jason Taylor tem um conhecimento especial do mundo: ele é gago. Ser gago em qualquer idade é difícil, mas aos 13 anos é especialmente dramático. Para resolver este problema, ele lê o dicionário, aprendendo o máximo de palavras, assim pode substituir aquelas em que tem dificuldade (as palavras ‘traváveis’, como ele diz), quando sabe que vai gaguejar.

Como não bastasse, sua irmã Julia tem 18 anos, é descolada e tem as respostas certas para tudo (Julia é uma prima distante de July, a irmã de Doug Funny). Os pais de Jason vivem brigando na mesa de jantar e, para completar, ele ainda enfrenta problemas de popularidade na escola. Estamos em 1982, na cidadezinha de Black Swan Green, título original de “Menino de Lugar Nenhum” (“Black Swan Green”), de David Mitchell.

O enredo faz pensar num seriado televisivo. A organização das cenas está bem próxima de um roteiro cinematográfico. Na oficina “Playing With Structure”, ministrada no site da BBC, Mitchell usou filmes como exemplo para explicar de que forma uma história pode ser estruturada.

Cada capítulo de “Menino de Lugar Nenhum” é dividido em blocos, que representam uma cena: geralmente ocorrem num mesmo espaço, embora possam conter algum flashback. O autor joga com as expectativas do leitor, anunciando o problema e desenvolvendo-o até alcançar o clímax no fim de cada capítulo.

Outras tramas surgem antes mesmo que as iniciais estejam terminadas. Como Mitchell tem não apenas grande domínio técnico, mas conhece o ofício do storytelling, o leitor pode ficar tranqüilo e esperar que todas as peças se encaixem no fim

A prosa do narrador é transparente, embora encharcada de símiles e metáforas (Jason é poeta, escondendo-se sob o pseudônimo de Eliot Bolivar). Sem poder explorar em profundidade a análise psicológica, Mitchell adota o princípio do “show don’t tell”, contando de modo eficiente as aventuras em que Jason se mete.

Assim, acompanhamos os dilemas enfrentados por um garoto gago numa leitura em voz alta para a sala, os perigos de ser um dedo-duro que sofre perseguições dos colegas, o jogo de gato-e-rato com as garotas, a dificuldade em encontrar um lugar adequado no recreio. O jeito encontrado por Jason para lidar com tudo isso é tentar ser invisível: não incomodar os colegas nem os pais.

Mitchell desvenda o período pavoroso da adolescência, com seus jogos de poder e de reputação. Não à toa, uma das imagens mais exatas e significativas é a que compara a hierarquia dos garotos com a hierarquia do exército.

O capítulo “Solário”, em que Jason encontra uma velha que lhe ensina lições sobre poesia, é talvez o único pecado do livro. Mitchell peca pelo didatismo excessivo, explicando o personagem para o próprio personagem. Isto é compensado pela figura fantástica da velha, uma grande personagem, apesar de tudo.

O que em David Mitchell é indireto (a Guerra das Malvinas, mediada pela TV e pelos recortes de jornais que Jason coleciona), em Jonathan Safran Foer é direto (a Segunda Guerra Mundial em “Tudo se Ilumina”, o 11/9 em “Extremamente Alto & Incrivelmente Perto”, que afetam de modo traumático os personagens, alterando seus destinos). O que os une é certo enciclopedismo: crianças excepcionais, wikipedias ambulantes. O exemplar mais recente dessa galeria é o pequeno Bunny Jr., do romance “A Morte de Bunny Munro”, de Nick Cave. Bunny Jr. lê enciclopédias enquanto o pai vai para o trabalho.

David Mitchell (nascido em 1969) era gago na infância e viveu a época descrita no livro. Mais impressionante do que o uso das gírias, muito bem transpostas para o português pelo tradutor Daniel Pellizzari, são as comparações e metáforas empregadas pelo narrador.

Elas não apenas criam uma voz particular, como se referem ao mundo específico de Jason: uma cidadezinha da Inglaterra no começo dos anos 1980. Estão lá os programas de TV, os filmes, os brinquedos, as canções (a trilha sonora é melhor do que a de muito filme; basta dizer que uma das canções preferidas de Jason é “Oliver’s Army”, de Elvis Costello) – enfim, é toda a infância que está representada num tempo e espaço particularíssimos.

A aproximação a ser feita é com o clássico de Salinger, “O Apanhador no Campo de Centeio”. Como Holden Caulfield, Jason Taylor terá de descobrir o mundo sozinho e lidar com o fato de que ter razão nem sempre é a solução. É nessa impotência gloriosa diante das coisas (um simples relógio, por exemplo), das pessoas e do mundo que “Menino de Lugar Nenhum” abriga sua beleza.]

*******

– Gabriel Innocentini (@eduardomarciano) é jornalista e assina o blog Eurogol

Leia também:
– Os dois primeiros livros de Jonathan Safran Foer, por Jonas Lopes (aqui)
– “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D. Salinger, por Marco Antonio Bart (aqui)
– Discografia comentada de Elvis Costello, por Marco Antonio Bart (aqui)

Leia um trecho de “Menino de lugar nenhum”, de David Mitchell: “Homem de janeiro”

Nunca pise no meu escritório. É a regra do meu pai. Mas o telefone já tocou vinte e cinco vezes. Gente normal desiste depois de dez ou onze vezes, a menos que seja um caso de vida ou morte. Desiste, né? Meu pai tem uma secretária eletrônica com rolos enormes, que nem James Garner em Arquivo Confidencial. Mas de uns tempos pra cá ele parou de deixar a secretária ligada. Agora o telefone já tocou trinta vezes. Julia não escuta nada lá no sótão transformado em quarto, porque “Don’t you want me?”, do Human League, está tocando num volume ensurdecedor. Quarenta vezes. Minha mãe não escuta nada porque a máquina de lavar roupa entrou em seu ciclo frenético e ela está passando o aspirador na sala. Cinqüenta vezes. Isso não é normal. E se o meu pai foi estraçalhado por um caminhão na rodovia M5 e a polícia só conseguiu esse telefone do escritório porque todos os outros documentos dele queimaram? Desse jeito a gente pode perder a última oportunidade de ver nosso pai carbonizado no hospital.

Aí eu entrei no escritório, pensando na noiva entrando no quarto do Barba Azul mesmo tendo recebido ordens de não fazer isso. (Mas era isso mesmo que o Barba Azul esperava, claro.) O escritório do meu pai tem cheiro de notas de libra: um pouco de papel, um pouco de metal. Como as cortinas estavam fechadas, parecia ser noite, e não dez da manhã. Tem um relógio muito sério na parede, exatamente igual aos relógios muito sérios nas paredes da escola. Tem uma foto do meu pai apertando a mão de Craig Salt quando meu pai virou diretor regional de vendas da rede de supermercados Greenland (nunca entendi o que a Groenlândia tem a ver com supermercados). Em cima da mesa de aço fica o computador ibm do meu pai. Esses ibms custam milhares de libras. O telefone do escritório é vermelho que nem os aparelhos das linhas especiais pra emergências nucleares, e tem botões que você aperta em vez de usar um disco como nos telefones normais.

Aí eu respirei fundo, peguei o telefone e falei nosso número. Pelo menos isso eu consigo dizer sem travar. Quase sempre.

Mas a pessoa no outro lado da linha não disse nada.

— Alô? — eu falei. — Alô?

A pessoa sugou o ar, como se tivesse se cortado com uma folha de papel.

— Está me ouvindo? Eu não estou ouvindo você. Bem ao fundo, reconheci a música de Vila Sésamo.

— Se você está me ouvindo — lembrei de um documentário da Children’s Film Foundation onde isso acontece —, dá uma pancadinha no telefone, uma só.

Não ouvi pancadinha nenhuma, só a música de Vila Sésamo.

— Acho que você ligou pro número errado — falei, meio em dúvida.

Um nenê começou a chorar e aí bateram o telefone.

Quando as pessoas ficam escutando, fazem um barulho de escutar.

Se eu escutei esse barulho, então elas me escutaram.

* * *

“Quem está na chuva é para se ensopar”, como a srta. Throckmorton ensinou pra gente há séculos. Como eu meio que tinha um motivo pra ter entrado no quarto proibido, dei uma olhada pelas frestas da veneziana fininha do meu pai. Enxerguei as terras da igreja, a árvore antiga e os pastos que se estendiam até as colinas Malvern. Fazia uma manhã muito clara, com céu gelado e crostas brancas nas colinas, mas pro meu azar nenhum sinal de neve espessa. A cadeira giratória do meu pai lembra muito a cadeira na torre de laser da Millenium Falcon. Fiquei mandando bala no céu lotado de MiGs russos que sobrevoavam as colinas Malvern. Em pouco tempo dezenas de milhares de pessoas entre aqui e Cardiff deviam a vida a mim. As terras da igreja estavam tomadas de fuselagens retorcidas e asas cobertas de negro. Eu atirava nos pilotos soviéticos com dardos tranqüilizantes assim que eles se ejetavam das aeronaves. Nossos fuzileiros limpariam a sujeira com vassouras. Eu recusaria todas as medalhas. “Obrigado, mas não aceito, obrigado”, eu diria pra Margaret Thatcher e Ronald Reagan quando viessem aqui em casa, convidados por minha mãe, “eu só estava fazendo o meu trabalho.”

Meu pai tem um apontador sensacional preso na escrivaninha. Os lápis ficam tão pontudos que serviriam até pra perfurar um colete à prova de balas. Os lápis H são os preferidos do meu pai, porque ficam mais pontudos. Eu prefiro os 2B.

Tocaram a campainha. Coloquei a veneziana do jeito que estava antes, conferi se não tinha deixado nenhum rastro da minha passagem, escapuli e desci a escada correndo pra ver quem era. Arrisquei a vida pulando os últimos seis degraus num único salto.

Era o Mongol, sorridente e espinhento como sempre. Mas o bigodinho dele tem ficado mais grosso. — Você nem imagina!

— O quê?

— Sabe o lago da floresta?

— O que tem ele?

—É que —Mongol conferiu se alguém estava ouvindo — ele congelou todinho! Metade dos garotos da cidade foi pra lá. É ou não é matador?

— Jason! — minha mãe surgiu da cozinha. — Você está deixando o frio entrar! Convide o Dean para dentro… olá, Dean… ou feche essa porta.

— Hã… vou dar uma saída, mãe.

Hã… para onde?

— Vou tomar um pouco de ar fresco.

Foi um erro estratégico. — O que você está tramando?

Eu queria dizer “nada”, mas o Carrasco resolveu me impedir. — E por que eu ia tramar alguma coisa? — tentei não encarar os olhos dela enquanto vestia meu casaco de lã azul-marinho.

— Posso saber o que sua parca preta novinha fez para magoar você?

Continuei sem conseguir dizer “nada”. (A verdade é que usar preto significa que você se acha casca-grossa. Não dá pra esperar que adultos entendam isso.)

— É que o meu casaco é um pouco mais quente, só isso.

— O almoço sai à uma em ponto. — Minha mãe voltou a trocar o saco do aspirador de pó. — Seu pai vem comer em casa. Ponha um gorro de lã, senão sua cabeça vai congelar. Gorro de lã é coisa de bicha, mas posso enfiar no bolso depois que sair de casa.

— Até mais, senhora Taylor — disse o Mongol.

— Até, Dean — respondeu minha mãe. Ela nunca gostou do Mongol.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.