Television ao vivo em São Paulo

por Marcelo Costa
fotos por Liliane Callegari

O que uma banda como o Television tem a dizer ao público do século 21? Seu primeiro disco, “Marquee Moon”, foi lançado no distante 1977, em meio ao furacão punk, e vendeu quase nada nos Estados Unidos, mas bateu no 27º lugar da parada britânica, o que não é nenhum feito para se emoldurar e colocar na parede, mas desde então, entra ano, sai ano, a bolachinha de oito músicas freqüenta listas de melhores discos de todos os tempos (assim como algumas canções do álbum) tornando-se um objeto muito mais de referência do que apreciação (as pessoas falam mais do disco do que o ouvem).

A referência, inclusive, é uma das culpadas por certa expectativa criada em torno do Television hoje em dia. No começo dos anos 00, quando “Is This It” saiu, muita gente apressada chegou a escrever que os Strokes tinham muito das bandas que passeavam pela Nova York dos anos 70 incluindo o Television no pacote de influências da turma de Julian Casablancas. E quem acreditou nessa referência (com jeito de pegadinha) e foi a um show do Television esperando algo que remetesse ao som do “novo (já velho) rock“ proposto pelos Strokes nos anos 00 deve ter tido uma grande decepção.

No Beco 203, na Rua Augusta, em uma quinta-feira fria (para padrões paulistanos), três quartos da formação que gravou “Marquee Moon” em 1977 (e depois “Adventure”, em 1978, e um terceiro álbum simplesmente batizado de “Television”, em 1992) subiu ao palco para mostrar como o rock and roll pode, às vezes, soar lírico e contemplativo. Liderados por Tom Verlaine, um dos ícones desse instrumento de seis cordas chamado de guitarra (e também voz), o Television fez um daqueles shows em que o ouvinte não tira o pé do chão durante a música, mas os ouvidos (e a alma) agradecem pela regalia concedida.

Ao vivo em 2011, o Television soa quase o mesmo do decantado “The Blow-Up”, bootleg que registra uma apresentação do quarteto em 1978 (lançado no Brasil em CD duplo pela Trama em 1999). 33 anos separam cada show e, claro, o tempo passa – e pesa. O cerne do som do grupo, no entanto, continua intocado: a bateria básica de Billy Ficca (que lá em 1978 soava mais barulhenta, mas o cenário em si era mais barulhento) acompanhada do baixo sutil de Fred Smith fazendo a cama para os solos ásperos de Tom Verlaine e as participações melódicas do guitarrista Richard Lloyd (que passou o cargo em 2007 para o fiel escudeiro da carreira solo de Verlaine, Jimmy Ripp, que honrou a posição no Brasil).


A fórmula do Television parece simples (como sempre parecem as grandes canções), e pode soar deslocada de um mundo (moderno) movido pela velocidade. Se antigamente, no auge do punk, a banda precisava tocar alto para se fazer ouvir, hoje cadencia as canções com uma simplicidade que chega a emocionar (sendo, por isso, mais indicada para um teatro do que para um bar/balada): a bateria surge suave e vai crescendo lentamente, sem pressa. Tom Verlaine sussura as letras (e ri vitorioso quando o público encobre sua voz – como em “Prove It”, a primeira canção da noite em São Paulo) e o ritmo das canções aumenta levemente sem nunca soar agressivo, mas sim… estiloso.

Se em 2005, em sua primeira passagem pelo Brasil, a banda fez um show de 1h30 no Sesc Pompéia tocando apenas oito canções (dentre elas, “Knockin’ On Heaven’s Door”, de Bob Dylan, presente nos shows do grupo desde sempre – inclusive em “The Blow-Up”), nesta segunda passagem, Tom Verlaine estendeu o set list para 11 números, mas continou evitando ceder ao apelo fácil de tocar apenas os clássicos de “Marquee Moon” (que, inevitalmente, era o que todo o público queria ouvir) optando por resgatar obscuridades e covers como “Jericho”, “Persia” e “The Sea” (a última cantada em português de gringo).

Com apenas três álbuns em quase 35 anos de carreira (e o último sendo de quase 20 anos atrás), algumas cartas marcadas inevitavelmente bateram ponto na noite, caso de “Little Johnny Jewel” (das sessões de “Marquee Moon”, mas lançada oficialmente apenas na reedição do álbum em 2008), “Glory” e “The Fire” (dobradinha do segundo bom disco do grupo), mas os olhos de boa parte da audiência brilharam mesmo na quilométrica “Marquee Moon” (14 minutos inspirados de guitarras estridentes) e em “Venus” (outra do disco clássico), já no bis. “Satisfaction”, aquela dos Stones, encarregada de fechar dezenas de shows do grupo desde 1975, colocou ponto final (meio amargo) na noite. Uma cover? E “See no Evil”? E “Friction”?

Pode ser teimosia em não ceder ao óbvio amplificando uma dualidade que sempre divide fãs: amar um artista exatamente por ele ser artisticamente teimoso, mas o querer domesticado quando frente a frente num show. Desta forma, não deixa de ser gratificante perceber que Tom Verlaine, do alto de seus 61 anos (Billy Ficca também tem 61 contra 63 de Fred Smith), ainda se importa em fazer o que gosta. Ele se surpreende com o público quando toca algum hino de seu disco mais famoso, mas ainda vê desafio no ato de subir em um palco e tocar (ou mesmo cantar uma canção em português). E só isso vale o ingresso, mas de “bônus” o Television oferece o charme de duas guitarras estridentes lutando numa noite de frio contra a velocidade do tempo, dos hypes, das referências equivocadas em um belo show feito para quem ainda aprecia ouvir… música, embora o público do século 21 pareça interessado em outra coisa…

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
– Liliane Callegari (@licallegari) é arquiteta e fotógrafa. Veja mais fotos da apresentação aqui

3 thoughts on “Television ao vivo em São Paulo

  1. Ótimo texto e resenha!!! Concordo plenamente com vc! Hj em dia, muito mais intencificado do que antes, o publico só quer dançar, pular, gritar e suar!
    Hj, sinônimo de show bom é show apoteótico, caotico, com todos subindo no palco e o vocalista tirando a roupa… o som em si, as notas, as texturas, a poesia e o clima ficam em segundo plano! Claro que esses shows “caoticos” são legais e divertidos, mas é bom ver que ainda existem bandas que fazem um show de música, não um show de circo!

  2. Cara, beleza, concordo com o que você disse sobre a contemplação, mas, bixo, o show do Television, ficou abaixo: não foi uma vez que o Verlaine e o Fripp não se entenderam e o Ficca não sabia se entrava ou se terminava a música – parecia uma banda extremamente desentrosada, não?

  3. Television, uma das bandas dos anos 70 de que mais gosto! Pena que não pude ir ao show… (Morar em Brasília tem suas desvantagens)
    “Marquee Moon”, o álbum, é simplesmente um dos 10 melhores discos de todos os tempos. “Marquee Moon”, a canção, é uma das músicas mais geniais que eu já ouvi, uma inesquecível viagem de 10 minutos e meio.
    Sobre esse negócio do Strokes, também acho que foi um factóide da crítica musical essa “inspiração” deles na banda de Tom Verlaine. Ainda está por vir uma geração de bandas de rock que realmente faça jus à influência de Television.

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