por Bruno Capelas
Em 1997, com o clipe de “Diário de Um Detento” e o disco “Sobrevivendo no Inferno”, que além da já citada, contava com petardos como “Capítulo 4, Versículo 3” e “Fórmula Mágica da Paz”, os Racionais MCs apresentaram ao Brasil o rap na língua pátria. Muitos rappers e MCs vieram antes, mas com os Racionais a coisa tomou proporções grandiosas (“Sobrevivendo” vendeu 500 mil cópias na raça, sem gravadora grande enfiando jabá e TV Globo inflando – só com o apoio da “família”), uma surpresa apenas para aqueles que não perceberam o grupo que já vinha beliscando outra fatia de público desde a dobradinha poderosa do álbum “Raio X Brasil” (1993): “Fim de Semana no Parque” e “Homem na Estrada”.
Marcados por um estilo que conquistou não só o público já habituado ao rap, mas também “os branquinho de shopping” – mesmo que estes não tenham sido o alvo inicial da banda – contando histórias sobre drogas, prisões, roubos e preconceito, Mano Brown e seus companheiros acabaram também, talvez inconscientemente, deixando a impressão na cultura do brasileiro médio que o estilo das rimas versáteis e batidas secas equivalia a narrar apenas histórias de violência. Poucos não foram os rappers que lutaram contra essa ideal – e neles se insere Criolo, que em 2011 solta um álbum capaz de quebrar mais algumas barreiras para o gênero. “Nó na Orelha” (que pode ser baixado gratuitamente aqui), produzido por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, pode ser a pedra de toque para que muita gente passe a abrir seus ouvidos para o rap, sem lenço nem preconceito.
Em seu primeiro disco, “Ainda Há Tempo”, Criolo fez um bom trabalho, seguindo à risca a tradição do estilo no Brasil, procurando narrar a vida na periferia e levando em frente a tentativa de se estabelecer uma cultura de paz, mesmo quando esta se assemelha muito mais a uma utopia perante um cotidiano de velada guerra civil. Em “Nó na Orelha”, porém, ele se apresenta mais como cantor do que como rapper: não são todas as faixas as quais ele aparece rimando, e nem todas as em que ele rima são exclusivamente raps. Na maior parte do álbum, ele trafega entre bonitos sambas, reggaes e até pelo formato tradicional da canção. É possível, porém, que essa escolha seja para mostrar que o rap é não apenas um gênero, mas um estilo de compor que trespassa o ritmo musical – percebe-se, em muitas das rimas do álbum, uma construção típica do gênero. Como ele mesmo cantou em uma releitura que fez de “Cálice”, clássico de Gil & Chico: “Me chamam Criolo e o meu berço é o rap / mas não existe fronteira pra minha poesia, pai”.
Quando segue o cânone do rap, Criolo atrai o ouvinte não acostumado ao estilo brincando com sonoridades, comprimindo e/ou esticando palavras até não poder mais ou enveredando por rimas ousadas, em terminações complicadas. É o caso, por exemplo, de “Grajauex”, cujos versos acabam sempre em “-ex”: “sabão de coco não é Pompom com protex/no almoço o sodex, meu advogado é o Alex/e se jogo do bicho é contravenção, mega sena é ilusão pra colar com durex”. Ou em “Subirusdoistiozin”, cuja descrição do ambiente da favela é muito bem feita, com riqueza de detalhes, incluindo até a incorporação de determinados sotaques – “pleno domingão/flango ou macalão/se o negocio é bão/cê fica chineizin”. E mais: é possível se entender o que o cantor fala, mesmo que talvez o entendimento real de certas palavras ou gírias seja limitado a poucos ouvintes. A certa altura, em “Mariô”, o cantor versa: “eu odeio explicar gíria”, de maneira a parecer que seu universo não é acessível para qualquer um, mas, ao mesmo tempo, ao escrever algo como “Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo / têm o mesmo valor / que a benzedeira do bairro”, é possível que Criolo esteja tentando aproximar e dar valor a elementos díspares que costumeiramente não são tratados em um mesmo patamar.
Olhando ainda para o conjunto de raps do disco, outra questão interessante a ser observada nas letras de Criolo é a maneira como ele procura desmitificar estereótipos que retratam a periferia e exibir a sua visão sobre o ambiente em que vive. É o caso de passagens como “cientista social, Casas Bahia e tragédia / gosta de favelado mais que nutella” (“Sucrilhos”), ou “e covarde são quem tem tudo de bom / e fornece o mal, pra favela morrer” (“Subirusdoistiozin”). Em outros momentos, ele procura deixar clara sua missão como artista, ou pelo menos, exibir as dificuldades de fazê-lo. Tal ideia aparece de maneira mais clara em ao menos dois momentos do disco: em “Sucrilhos”, quando ele canta “é que cantar rap nunca foi pra homem fraco”, e em “Lion Man”: “e se fosse pra ter medo / dessa estrada / eu não taria tanto tempo / nessa caminhada / artista independente / leva no peito a responsa, tiuzão”. Nessa última faixa, ainda se sente presente uma consciência global do MC: “e já era / sua rainha tá ciscando / já era / o país tá no abandono / já era / o planeta tá morrendo / já era / vai cair o rei”.
Entretanto, é pelas músicas fora do contexto de seu berço como artista que Criolo pode soar mais convidativo a ouvidos principiantes: seja num samba de respeito, na tradição lírica de Paulinho da Viola, mas com a referência pop da Turma da Mônica (“Linha de Frente”), num dub esperto (“Samba Sambei”), num autêntico afrobeat que versa sobre contrabando e cita Manuel Bandeira sem soar fora de lugar (“Bogotá”) ou transportando-se para a década de 70 ao emular Odair José e outros craques da “música de bordel” (“Freguês da Meia Noite”). Ou ainda na bonita balada “Não Existe Amor em SP”, que merece por si só um comentário à parte.
É até difícil acreditar que o rapper do resto do disco é também o crooner desta faixa, graças à suavidade e ao lirismo que se encontra aqui. Trata-se de uma das crônicas mais apaixonadas já feitas sobre a capital paulista, apesar do título que parece negar tal fato. Em pouco menos de cinco minutos, há uma sucessão de cenas, cortes cinematográficos, que se sucedem formando e desdobrando imagens na cabeça de um impassível ouvinte: “numa linda frase / de um postal tão doce / cuidado com doce / São Paulo é um buquê / buquês são flores mortas”. Ao final da canção, amparado por um bonito arranjo tramado por Ganjaman, o cantor Criolo sola: “não precisa morrer pra ver Deus / não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você”.
“Nó na Orelha” não é um disco regular em sua integridade – talvez justamente por misturar diferentes ritmos, o compositor se sai melhor em uns que em outros – mas que faz uma conexão entre estilos de ouvintes diferentes. É um álbum capaz de agradar tanto àquele tradicional apreciador de rap quanto a um público “branco de classe média-alta católico” – o equivalente mais próximo da sociedade brasileira ao WASP estadunidense – com ouvido mais aberto à música em geral, mas não ao rap em si. Ele também não se encontra sozinho: outros artistas, cujo caso mais conhecido é Emicida, tem feito essa ligação entre o rap e o indie de maneira interessante – vale a pena ver a sampleada que este deu em “Quero te Encontrar”, do duo Claudinho e Buchecha. Criolo, porém, mostra aqui que é o responsável pela melhor tentativa feita nesse sentido até agora. Na linha de frente da quebra de preconceitos, esse é um disco que pode, literalmente, deixar a quem o ouve com um nó na orelha.
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– Bruno Capelas é estudante de jornalismo e assina o blog Pergunte ao Pop
Ótima resenha, Bruno.
O que mais gostei no som do cara foi a diversidade de ritmos em um único cd.
– Atira pra todos os lados e acerta todas no alvo –
Além, claro, do talento do Criolo – não o conhecia até esse disco – com as palavras.
Gratíssima surpresa.
Discaço!
PS: A produção também salta aos olhos. O Ganjaman devia produzir um disco da Nação Zumbi.
Bruno,
A crítica estava ótima até colocarem o termo indie. Na boa, Criolo não tem nada de indie. Nenhuma sonoridade explorada pelo Criolo – afro-beat, brega, dub, samba, rap,reggae (…) – chega ao indie.
Também discordo de alguns outros pontos, mas gostei das descrições das faixas: ele realmente tem esse lado poético, e faz questão de enfatizar isso pro rap. Em entrevista a Pedro Alexandre Sanches, ele afirmou que tudo que ele faz é rap. Como se o ritmo estivesse buscando algo mais musical, mais lírico, dialogando com outros elementos. Por isso a banda, que faz tanta diferença no resultado final.
Abraços,
Tiago
Tem tipo um plágio de uma da Clara Nunes (tristeza e pé no chão) e outras melodias feitas na medida (por baixo) para agradar a crítica da Folha de SP.
curto Criolo há um tempo, mas nesse disco, nó na orelha, o que deu pra perceber foi uma evolução musical sensacional. ele acertou todas!
Disco do ano, sem sombra de dúvidas. E agradar crítica da folha de Sp de cu e rola, zé (mané).
“É um álbum capaz de agradar tanto àquele tradicional apreciador de rap quanto a um público “branco de classe média-alta católico” – gostaria muito que o criolo pudesse ler isto:
eu estava escutando meu recém comprado “nó na orelha”, quando de repente minha avó entra no meu quarto (enquanto tocava “freguês da meia noite”), uma senhora de 86 anos, extremamente careta, e me diz: nossa, que música bonita! e ficou aqui comigo escutando ao resto do álbum e curtindo música após musica! foi lindo!
valeu criolo!