texto por Tiago Agostini
fotos por Liliane Callegari
Quando “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranqüilos”, último CD do Otto, saiu no ano passado, automaticamente duas músicas saltaram aos olhos e ouvidos. “Crua” e “Seis Minutos” eram gritos urgentes de uma alma desesperada, com produção e execução tão dramáticas quanto impecáveis. O resto do CD parecia irregular, e as demais canções perdiam força quando comparadas a essas duas pérolas do cancioneiro corno brasileiro.
Em março desse ano, em um show no Sesc Pinheiros, a loucura do Otto incomodava. Apesar do som perfeito, a incapacidade dele de terminar uma frase com lógica – e de despejar muitas dessas frases disconexas – tornava o show mediano. Mas o show do Coquetel Molotov e especialmente o do SWU foram tão convincentes – e com um Otto no limite da lucidez – que finalmente fazia sentido o subtítulo do texto publicado à época do lançamento aqui no Scream & Yell: “a força de um pé na bunda”.
A história é conhecida e já foi contada muitas vezes, mas não custa relembrar. Quando gravou “Certa Manhã”, Otto estava no fundo do poço, recém-saído do casamento turbulento com Alessandra Negrini – e, antes de lançá-lo, perdeu a mãe. Foi essa dor que fez Otto cometer um disco tão intenso. E, por mais que o cantor insista sempre em negar, “Crua” e “Seis Minutos” são endereçadas diretamente à ex-mulher, principalmente quando, ao cantar a segunda ao vivo, ele cita o nome da filha do casal em trechos da letra.
Uma das lendas sobre o relacionamento versa sobre a primeira vez em que os dois ficaram juntos. Segundo a história, Otto voltava para casa em um táxi, ainda deslumbrado, quando o carro passou por um outdoor com Alessandra, ao que o motorista disparou: “essa mulher é muito gostosa, mas não é pro bico de caras como eu e você, né?” Não foi só o taxista que duvidou. “Tentaram me matar”, disse Otto nos bastidores do Conexão Vivo em Salvador, como relatou o jornalista Alex Antunes num dos textos fundamentais para entender o cantor. “O que era aquele pernambucano se casando com a Alessandra? E pior, em Pernambuco maltratavam a Alessandra também. Chegaram a me convidar e negar passagens a ela para o Carnaval.”
“Aqui é festa, amor, e há tristeza em minha vida”, canta Otto em “Filha”, que abre todos os shows, como que para lembrar que os dias negros passaram, pero no mucho. No SWU, o cantor subiu ao palco todo de branco, tal qual um pai de santo. Por mais que a imagem possa soar estranha, do primeiro ao último minuto da apresentação, Otto está realizando o mais importante ritual de purificação: o seu próprio. Está nas letras, nos gestos, no momento em que ele chama uma menina para subir ao palco (como aconteceu em “Pra Ser Só Minha Mulher” no Recife), ou quando anda pelo meio do público, torso nu, peito aberto, encarando a platéia da mesma maneira que tem encarado a vida no último ano.
Muito do segredo desse ritual está na Jambro Band, que acompanha Otto, um verdadeiro dream team nordestino, como ele faz questão de afirmar com orgulho. Está lá o maestro do espetáculo, o baterista Pupilo (também produtor de “Certa Manhã”), os percusionistas Male e Axé, Rian Batista no baixo, Bactéria nos teclados, Junior Boca na guitarra, e o contraponto ao canto chorado de Otto nas cordas de guitarra, o grande Fernando Catatau. Posicionados em uma meia lua no fundo do palco, eles deixam o cenário livre para Otto ser o centro das atenções. E, óbvio, ele não decepciona, usando cada centímetro do espaço com suas danças desajeitadas.
O repertório não se concentra apenas no último disco, e músicas como “Ciranda de Maluco”, “O Celular de Naná” e até “TV A Cabo” costumam aparecer. “Crua”, trilha sonora de novela das oito, é um dos momentos mais ovacionados. Mas é inegável que o grande momento do espetáculo é “Seis Minutos”. Este é o grande manifesto de Otto contra a dor que lhe acometeu. “Não precisa falar, nem saber de mim, que até pra morrer, você tem que existir”, grita ele, tal qual o personagem de Bill Murray em “Feitiço do Tempo”, que fica revivendo o mesmo dia seguidas vezes e resolve se suicidar de várias formas para passar o tempo. Cada gota de suor que cai da testa de Otto é um pouco da dor que ele expele. No SWU, fechando o show com a canção, o cantor girava os braços segurando a camiseta em uma mão e a jaqueta em outra, como que criando um redemoinho ou um escudo para afastar os problemas enquanto gritava durante o solo final de Catatau. Hipnotizador.
Muitas pessoas reclamaram que Otto desafinou demais (sim, desafinou), outras falaram da barriga de fora e ainda teve gente que reclamou da falta de clareza dos discursos. Bobagem. Música não é perfeição técnica. Música é sentimento. Ater-se a estes pequenos detalhes é ignorar o todo, que realmente importa. Em algum ponto da vida, todos nós precisamos nos renovar. Uns afogam as mágoas em um copo, outros viajam, há os que se tranquem em si para chorar. Otto escolheu o palco como divã e, nele, está expurgando seus demônios, cicatrizando suas enormes feridas expostas em público.
Em certo momento de sua jornada quase eterna em “Feitiço do Tempo”, Bill Murray fala para Andie McDowell: “eu já me matei tantas vezes que nem existo mais”. Pouco tempo depois, ele finalmente consegue se livrar da sina de viver o mesmo dia todo dia. A cada final de show Otto morre mais uma vez, para renascer logo após. A notar pela beleza melancólica de suas apresentações, a dor dos traumas antigos de Otto ainda deve demorar a secar. Sorte nossa, que podemos assistir ao melhor show de 2010 em terras brasileiras.
Leia também:
– Otto e a “força de um pé na bunda”, por Marcelo Costa (aqui)
– O poder do corno, parte 1 (aqui) e parte 2 (aqui), por Alex Antunes
– SWU 2010, três dias de festa e confusão, por Marcelo Costa (aqui)
Boa tarde Thiago.
Eu nunca fui fã de Otto. Na verdade acho muito difícil nessa altura do tiquetaquear de minha vida convencer-me da qualidade do cantor. E também não quero discutir os argumentos, pois não vejo a mínima necessidade em fazer comentários tornarem-se plataforma política de opiniões sobre algo que como você mesmo colocou é sentimento.
Mas teu texto é tão literalmente desprovido de maneirismo e pleonasmos fáceis, que ao terminar de ler, tive vontade de comprar o disco e assistir ao show. Parabéns…
Que texto maravilhoso. Que bela analogia com o personagem do Bill Murray….
Sou fã do Otto há algum tempo. Sim, o som não é dos mais fáceis de ser digerido, e sim ele desafina….mas existem no seu repertório jóias finas, brilhantes como diamantes incendescentes….uma chuva de pérolas negras!!!!!
Me deu vontade de ouvir novamente o cd rever um show dele…
Ano passado, na Virada Cultural em Bauru, assisti pela primeira um show do Otto. Conhecia e adorava os três discos dele até então, mas fiquei particularmente impressionado com uma música nova que ele apresentou ao final do show, “6 Minutos”… Me pegou na hora, a entrega do cara ao cantar isso é impressionante… Desde que “Certa Manhã…” saiu, é dos meus discos preferidos. Vi o show no SWU e 4 dias depois denovo em Bauru… Otto é um dos artistas mais interessantes no Brasil hoje em dia, merece e muito esse reconhecimento de sua carreira.
Ah, a propósito, belíssimo texto Tiago!
Grande texto. E esse show do Otto é mesmo imperdível. Catarse e redenção são palavras próximas de definir, mas mesmo assim ficam aqúem da intensidade da experiência.
Otto é um puta artista!
Tô doida pra assistir a esse show.
O cd tá ótimo.
Ahh .. belo texto!
Antes desafinar, pirar no palco, falar coisas desconexas, do que cantar perfeitinho, comportadamente e ser politicamente correto, como tanto artista “super profissa” por aí, né não??? A carreira do Otto, como um todo, não é tão boa, mas o momento é excelente…
Depois de alguns irregulares, Otto faz sua obra-prima. Todo sentimento. Todo música. Melhor disco do ano. Discaço pra gente madura. Parabéns ao cantor e ao Tiago pelo texto.
Adorei o texto, as musicas de Otto me trazem leveza… cada show dele é unico e especial… Otto sabe mto bem como levantar agalera, Otto sabe mto bem como fazer a musica ter um sentido O Otto é foda demais *-*
LINDO *-*
Ao contrário da maioria, acho a carreira dele homogenia, todos os seus 4 discos contém pérolas:
Tomara que esse último, e ótimo, cd abra os ouvidos da galera para os outros.
Enfim, fico muito feliz pelo sucesso do cara. Goste-se ou não ele é um artista.
Grande cara!
tens estudado, tiago! morre-se um tanto a cada gesto, a cada palavra, a cada porvir.. bonito o otto e é bonito apreciar esse movimento. temos os nossos, apreciemos também este, dele. diva ou divã – parafraseando outro pernambucano – dá-lhe arte e tristeza em nossas vidas! sem miséria, pois miséria pouca em mão de muito é bobagem!
Cara, eu tava nesse showzaço no SWU e achei extremamente foda e sincero. Raridade nos dias de hoje.
Otto, simplesmente especial e encantador….Cada show, uma performance maravilhosa e insana… Musicas que impregnam na alma, que em sua maioria, não possuem nenhum sentido lógico, mas que exprimem toda a emoção e sentimento, a realidade vivida e sentida… Beleza em cada gesto… Liberdade! É nessas horas que a gente sente orgulho de tê-lo como conterrâneo… Coquetel Molotov, sem dúvida, um dos melhores shows de minha vida! E não vejo a hora de vê-lo novamente…Próxima sexta (05/11), em seu palco preferido, no Marco 0 do Recife, mais um show que ficará para a história! Eis aqui, uma fã incondicional e extremamente orgulhosa!
Ah e parabéns pelo belo texto!!
Sobre o show do Sesc e seu discurso quase que desconexo, nas mesma época ela foi ao Jô e deu uma entrevista completamente desnorteado. Visivel que este álbum o machuca. E essa desconexão no discurso, este desnorteamente, torna poéticas e quase papável sua dor.