por Jonas Lopes
No texto que dá título ao recém-editado no Brasil “Coleção de Areia”, Italo Calvino, ao dissecar uma exposição dedicada a coleções de enfoques pouco usuais, observa que certa coleção de areias recolhidas ao redor do mundo e incluída na seleção da mostra é, como toda e qualquer coleção, um diário – “diário de viagens, claro, mas também diário de sentimentos, de estados de ânimo, de humores” – que nos ajuda a “revelar alguma coisa importante: uma descrição do mundo?”. Assim, escreve ainda Calvino, “o fascínio de uma coleção está nesse tanto que revela e nesse tanto que esconde do impulso secreto que levou a criá-la”. Da mesma forma, pode-se dizer que “Coleção de Areia”, coletânea de textos relativamente ligeiros e escritos para jornais entre 1974 e 1984 (ano original da publicação em livro, um ano antes da morte do autor) cumpre a função de desnudar um pouco mais o espírito do escritor italiano, algumas de suas manias pessoais e artísticas.
Como Borges, Calvino fazia questão de obnubilar as fronteiras entre ensaio e ficção, lançando mão de um ao trabalhar no outro e vice-versa. Nas obras de não-ficção, a exemplo dos literários “Por que ler os clássicos?” e “Assunto encerrado” e dos diários reunidos em “Eremita em Paris”, Calvino costumava deixar pistas sobre sua formação intelectual, ao passo que, aqui e ali, pescamos obsessões que o definiam como indivíduo nos livros fundamentais de sua produção: fábulas (“Fábulas italianas”), a história corrompida por elementos fantásticos (a trilogia “Os nossos antepassados”, composta de “O visconde partido ao meio”, “O barão nas árvores” e “O cavaleiro inexistente”), ciência (“As cosmicômicas”), labirintos (“O castelo dos destinos cruzados”, “Se um viajante numa noite de inverno”) e urbanismo (“As cidades invisíveis’) – os títulos mais subestimados de sua carreira são aqueles tidos como convencionais, embora sejam bons, caso dos tchekhovianos contos de “Os amores difíceis” e das novelas “Marcovaldo” e “O dia de um escrutinador”.
Leve e espirituoso, afetuoso e geometricamente lógico, “Coleção de Areia” deixa transparecer paixões ainda mais miúdas de Calvino, como as listas (“minha vida funciona à base de listas: balanços de coisas deixadas em suspenso, projetos não realizados”) e universos bem específicos do pensamento: filologia, tipografia, etnografia, zoologia. Tais temas são abordados em textos acerca, sobretudo, de exposições visitadas. Ao contrário da maioria de nós, o escritor não privilegia a investigação da beleza estética nas visitas a museus, tanto que se concentra em mostras sobre assuntos envolvidos com história. Coleções, muita cartografia, a trajetória de um jornal sensacionalista iniciado no século 19, os alfabetos fenícios. A razão para um olhar tão incomum é a já citada tendência de Calvino a fundir ensaio e ficção. Autor de pegada metalinguística, o italiano transforma qualquer elemento em narrativa e linguagem, dá sua cara a eles (“crítico é aquele que encontra sua vida nos textos literários”, definiu Ricardo Piglia).
Mapas de expedições espanholas em direção ao Novo Mundo transfiguram-se, na pena de Calvino, em relatos literários – não à toa, menciona a “viagem como estrutura narrativa”; todo percurso, até o das férias mais despretensiosas, redundam em uma sequência de fatos passível de ser encadeada por meio de prosa. Um dos artigos, análise de “A Liberdade guiando o povo”, célebre pintura de Eugène Delacroix, intitula-se “Um romance dentro de um quadro” – o nome explica tudo. As amostras de areia do ensaio aludido no início deste texto são descrições de mundos através de miniaturas. Até ao escrever sobre filatelia, comemora a reflexão de um colecionador de que criar e consumir selos são modos de visitar e se apropriar dos países e paisagens ali retratados, sem nunca chegar a pisar neles.
Falando em conhecer países, “Coleção de Areia” compila textos escritos em três nações visitadas pelo escritor (Japão, México e Irã). Calvino sabe bem da impossibilidade de transmitir impressões sobre locais tão novos para ele sem correr o risco de cair no estereótipo – por isso destaca a batida frieza dos japoneses nos metrôs, seus jardins e templos, ou as ruínas astecas no México. De que maneira, então, ele pode repelir o exótico? Mais uma vez, estabelecendo narrativas. Acostumando-se aos hábitos daqueles povos e às cidades, passa a atribuir um valor próprio para cada novo elemento que surge. “Quando tudo tiver encontrado uma ordem e um lugar em minha mente, começarei a não achar nada digno de nota, a não ver mais o que estou vendo. Porque ver quer dizer perceber diferenças, e, tão logo as diferenças se uniformizam no cotidiano previsível, o olhar passa a escorrer numa superfície lisa e sem ranhuras”.
A se lamentar apenas a passagem em que o italiano critica os muros grafitados por representarem, a seu ver, uma violenta e arbitrária invasão na vida de quem a lê involuntariamente. “A cidade”, escreve, “é sempre transmissão de mensagens, é sempre discurso, mas uma coisa é você poder interpretá-lo, traduzi-lo em pensamentos e em palavras, e outra é se essas palavras lhe são impostas sem possibilidade de escape”. Calvino ressalta que o argumento não vale para escritas de protesto sob regimes totalitários, devido ao aspecto subversivo e clandestino dessas pichações, nas quais “até o ato de lê-las implica certo risco e impõe uma escolha moral”. Ora, nessa época tão anterior à popularização do grafite, hoje considerado uma forma de arte palatável a qualquer público – a ponto de a Bienal recorrer ao suporte este ano –, grafitar o muro para passar mensagens quase sempre era um ato político e subversivo. Calvino, contudo, merece o perdão pela derrapada. Mesmo porque não daria para reclamar de alguém que escreve um necrológio tão acurado quanto o aqui dedicado a Roland Barthes.
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Jonas Lopes é jornalista e assina o blog Gymnopedies
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