por Dulce Quental
Inacreditável como o tempo voa! O tempo não para, dizia Angenor de Miranda Araújo Neto, nosso querido Cazuza. Não para, voa, e há vinte anos parece ter mudado a face do mundo, eu penso. Mudado pra continuar igual? Um museu de velhas novidades, diria Cazuza. Hoje, não comemoramos o aniversário da morte do poeta. Não queremos a morbidez no processo de celebração. Se Cazuza estivesse vivo teria 52 anos. Um jovem senhor, como o tempo, esse tecido que costura as nossas vidas.
Penso em Cazuza e por que não, em Ezequiel Neves, soprando ao meu ouvido mentiras sinceras do liquidificador da vida. É aí que mora o amor? Esse outro, que é também senhor e que fala de um nós que ainda urge?
Chegou tão tarde. Tarde demais pra mim, e tão cedo pra ele, que não conheceu computador, celular, e-mail, twitter. Como ele teria gostado! Todos esses badulaques ao alcance da cabeça impressionista, mestre em frases curtas: as torres gêmeas caindo, a célula artificial, o cabelo cogumelo atômico; tudo lhe interessava, principalmente o humano.
Mentiras sinceras, meu bem-meu mal, não separar o sim do não, a vida da morte, o eu do outro. Passional. Absolutamente e totalmente. Cazuza se movia além da paixão, por compaixão: “Quem sabe eu ainda sou uma garotinha? Por que não me convidaram para essa festa pobre? Porque já fomos perdoados, já passou e eu já posso entender a inocência do prazer! Então fala baixo, fala baixo e sente, eu vou te dar um presente.”
Deu-nos mais do que duzentas e não poucas canções, sua presença. Nada pragmático, compunha aos borbotões. Nada tecnocientífico, como os dias de hoje. No entanto, racional, sem perder a ternura. Alberto Caeiro, o alter-ego mais genial de Pessoa. Não era um porra-louca. Deixou aos 32 anos uma obra, seguindo a tradição dos grandes artistas que admirava: Allen Ginsberg, Vinicius de Moraes, Janis Joplin, Ângela Rorô, Lupicínio Rodrigues; Clarice Lispector, só pra citar alguns.
Foi meu amigo. Uma inspiração. Com quem eu dialogava artisticamente. Quebrou minha cabeça e as minhas resistências. Quando nos conhecemos em 82 eu acabara de voltar da França, ele da Califórnia. Eu mais existencialista, ele beatnick. Cantamos juntos no palco. Ele de joelhos, literalmente, eu aos seus pés, desconsertada. Participou do meu primeiro disco solo, “Délica”, chegando ao estúdio atrasado. Esperei tanto que caí de pileque. Gravamos a voz juntos, alterando as falas. Eu sempre aprendendo. Entrega e controle. Ligar e desligar. Poderia parecer que não, mas ele sabia exatamente o que fazia.
Antes de ir para Boston passou no estúdio pra me ver. Tinha gostado de uma canção que eu tinha mostrado pra ele durante uma festa. A música falava dele. Mas como? Foi ao estúdio aonde eu ensaiava pra ouvir de novo. Coincidência? Empatia? Sei lá, nós nos espelhávamos e pronto. Contou pra mim da doença e viajou. Quando voltou, era uma pessoa diferente: ”Eu vi a cara da morte e ela estava viva”, dizia a letra de “Boas Novas”, do disco “Ideologia”.
Lembro-me de na época ter ficado muito impressionada com a força poética dessa frase: “Esse cara é foda”, pensei. “Que talento pra sintetizar uma experiência, que capacidade de sublimação maravilhosa”. Chapei! Inspirada na letra de “Boas Novas” compus “O Poeta está Vivo”. Sem musica ainda, mostrei a letra pra ele, meio envergonhada de pretender escrever alguma coisa à altura da sua verve e do seu sofrimento. Estávamos no apartamento da Lagoa. Ele escutou atentamente e disse: “você está escrevendo melhor do que eu”. Eu sabia que não, mas esse era o Cazuza: um cara que sabia dizer o que as pessoas precisavam ouvir.
Mostrei a letra uns tempos depois para Denise Barroso, irmã de Julio, da Gang 90, amiga também do Cazuza e uma das personalidades mais importantes da nossa geração. Denise me disse: “Dulce, por que é que você não mostra pro Frejat essa letra. Quem sabe sai alguma coisa?”
Encontramo-nos, eu e Frejat, no apartamento dos seus pais no Flamengo para gravar a “demo” da canção. Frejat ainda dividia o quarto com o irmão Mauro e morava com os pais. A “demo” foi gravada e arquivada num k7 solto por aí, anos, sei lá. Não sei exatamente quanto tempo depois ela seria resgatada pelo Ezequiel, fechando o repertorio do “Na Calada da Noite”, o primeiro LP do Barão Vermelho após a morte do Cazuza. Inicialmente a canção ganhou o nome de “Moinhos de Vento”, só depois passou a se chamar “O Poeta está Vivo”, titulo dado pelo Ezequiel, cérebro, espírito, pai e pau pra toda obra do Barão e do Cazuza.
Momentos que tive com Cazuza: ao lado da lareira perto do fogo, sua cabeça no meu colo; tomando conhaque antes de entrar no palco; tomando esporro por causa de namorado; na praia com os cachorros; no Baixo com Dé; no Vale Florido onde tínhamos casa; com Bineco Marinho, Iara Neiva, Waleska, Aninha Arantes, Bebel Gilberto. São tantas as lembranças que não caberiam aqui nessa lauda, nessa contagem de caracteres, assim como parece não caber nesse tempo corrido todo o tempo que precisamos para gerar, alimentar, cuidar e fazer viver um Angenor igual ao Cazuza.
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Dulce Quental é cantora, compositora, mãe e assina o blog Caleidoscópicas
Texto escrito a pedido do jornal O Povo, e reproduzido pelo Scream & Yell
Belo texto,bons tempos…ponto!
Emocionante. Estava com saudades de você por aqui, Dulce.
belo texto, obrigado por compartilhar!
Ele gostaria do twitter?
Engraçado, eu detesto e toda vez que surge o assunto cito o Cazuza pra justificar.
Ele dizia:
“Eu não quero que nem cachorro me siga”
Não tinha na lembrança que O Poeta Está Vivo era sua.
Eu adoro essa música, ela é linda!
Parabéns!
José,
Eu tambem não gosto. Esse negocio de seguir é esquisito. Não acho que ele gostaria do twitter pelo lance de seguir mas pelas possibilidades de escritura. Cazuza era um craque em frases de efeito. Poemas curtos. Nesse sentido acho que ele usaria. Como uma ferramenta para disparar suas ideias. Ele iria gostar de brincar, eu acho.