por Sérgio Martins
Jorge Ben Jor é o artista mais importante da música popular brasileira da segunda metade do século XX. Contemporâneo de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Chico Buarque, o cantor e compositor supera seus companheiros de geração na conjunção de dois quesitos: popularidade e influência. Seus quase cinquenta anos de carreira registram altos e baixos, mas ele nunca deixou de vender discos e lotar shows – hoje, aos 70 anos (presumidos: ele esconde a idade), mantém uma média de oito apresentações mensais.
Sua influência sobre as gerações mais novas é inestimável: dos anos 70 em diante, virtualmente todo músico que misturou MPB com rock, soul e pop deve algo a Jorge Ben Jor. Seu período mais criativo, de 1963 a 1976, foi reunido na caixa “Salve, Jorge!”, com treze discos mais um álbum duplo repleto de raridades. A audição desses CDs mostra por que Jorge Ben (como foi conhecido até 1989) é a referência maior para os nomes mais interessantes da música atual.
Os artistas influenciados por Chico ou Caetano raramente desgrudam do molde original. Tornam-se epígonos aborrecidos, como Chico César, carbono de Caetano. A música de Jorge, ao contrário, fertilizou bandas e movimentos com personalidade. Tamanha influência se explica pelo pioneirismo de Jorge Ben Jor em dois fronts. Ele foi dos primeiros a compor letras que falavam da negritude e da vida bandida no morro (caso de “Charles Anjo 45”, de 1969). Grupos de reggae como O Rappa e Cidade Negra e rappers como Racionais MC¿s levaram esse discurso adiante (com mais agressividade). Mano Brown, líder dos Racionais, até batizou o filho de Jorge, em homenagem ao compositor de “África Brasil”.
Mas é no campo estritamente musical que a importância de Jorge Ben Jor se revela superlativa. Ele criou uma batida única para tocar, no violão, o samba com andamento de rock: com uma mão direita rápida, batia nas cordas do instrumento em vez de dedilhá-lo. É o segredo de seu celebrado suingue. “Minha formação vem de Jorge. Comecei imitando o jeito com que ele tocava”, diz o cantor e guitarrista Lucas Santtana, cujo o álbum “Sem Nostalgia”, CD no qual samples do violão de Jorge são misturados a batidas eletrônicas. “Jorge Ben Jor é um inovador. Está no mesmo nível de James Brown e Bob Marley”, diz o cantor e guitarrista Max de Castro.
Nos anos 70, o suingue do músico carioca inspirou o samba-rock de Bebeto e do Trio Mocotó. Bandas de rock dos anos 80 e 90 buscaram a lição de Jorge para “abrasileirar” seu som – foi o caso do Paralamas do Sucesso e do Skank. “A sonoridade do Skank deve muito a Ben Jor”, diz o tecladista do grupo mineiro, Henrique Portugal. Com suas letras astrológicas e seus arranjos esquisitos, “A Tábua de Esmeralda”, de 1974, foi o disco de cabeceira de artistas do manguebit, movimento musical surgido no Recife no início dos anos 90.
Para 2010, os Sebosos Postizos, banda paralela integrada por membros da Nação Zumbi, expoente maior do manguebit, e por Bactéria, ex-tecladista da mundo livre s/a, vão lançar um disco com covers de Jorge Ben Jor. “A gente faz uma leitura mais densa das obras dele”, diz o vocalista Jorge Du Peixe. A “densidade”, no caso, fica por conta de elementos do dub jamaicano que os músicos pernambucanos acrescentam às canções do compositor carioca – um híbrido muito fiel ao espírito de Jorge Ben Jor.
Leitor dedicado, Jorge participa semanalmente de um sarau literário no Rio. Ultimamente, anda frequentando as obras de dois xarás: o argentino Jorge Luis Borges e o brasileiro Jorge de Lima. “Reactivus Amor Est (Turba Philosophorum)”, seu mais recente CD de material inédito, de 2004, não traz nada que se compare em vitalidade a qualquer dos discos da caixa “Salve, Jorge!”. Seu ímpeto criativo não é o mesmo do passado. Ainda assim, o futuro da música brasileira fatalmente passa por ele.
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Sérgio Martins é jornalista, assina o blog Tudo Que Sobra e apresenta o programa Veja Música
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– Jorge Ben Jor comanda micareta em São Paulo, por Tiago Agostini (aqui)
Los Sebosos Postizos é foda!
Alguém esqueceu um senhor chamado Roberto Carlos…
Oi, Mac. Acho que o Chico Buarque é como um mestre clássico: clássico no sentido de ter dado forma eterna às inflexões da alma de um povo através de uma linguagem comum – no caso, toda a tradição da canção anterior a ele, de Noel a Jobim. Todo país precisa de um sujeito que faça isso. Guardando as proporções, é como um Camões, em quem a língua portuguesa atinge, naquele momento histórico, sua mais condensada encarnação. É isso, afinal, que o Chico faz: junta todos os fios da tradição na mesma obra. É uma obra mais completa, mais acabada, provavelmente porque mais cerebral, embora cheia de drama humano. Jorge Ben, muito embora tenha inventado um tipo de samba, não pode competir com isso. Para mim, esse tipo de coisa sempre se resolve pensando na proverbial ilha: que discografia eu levaria para lá? Chico, com todos os discos sensacionais (os meus preferidos, aliás, são os mais recentes), ou Ben Jor? Levaria Chico, porque Chico é mais vasto, há mais lugares para onde ir quando se ouve Chico. Ben Jor é bem mais monotemático, embora seja infalível quando se está bêbado e afim de dançar e ser triste e feliz e cheio de banzo ao mesmo tempo (minha canção preferida dele é ”porque é proibido pisar na grama”). Inventou algo, mas ficou basicamente nisso. E os seus seguidores nunca levam à frente. Você realmente prefere Curumim a Chico Cesar? Já ouviu o “Respeitem meus cabelos, brancos”? Não sei, mas essa resenha me parece bastante condicionada pela atual cena de música pop paulistana. E, se é para falar de música pop, Los Hermanos, o fina flor da moderna música brasileira, é bem mais influenciado por Chico. Abraço!
Dodô, não me leve a mal, respeito o Chico Buarque e reconheço sua importância histórica.
Mas para mim, Paulinho da Viola é muito melhor do que Chico em vários sentidos, inclusive quanto às letras. Se Chico foi óbvio demais em “Apesar de Você” e em “Cálice” (com um trocadalho óbvio desses, até as toupeiras da Censura Federal entenderam a referência), Paulinho sintetizou o ambiente opressor do regime militar na sua obra-prima “Sinal Fechado”. Não por acaso, vi-me obrigado a corrigir uma professora de português (sempre elas, a endeusar qualquer versículo do seu Chico) num preparatório para concursos depois de ler a letra de “Sinal Fechado” e dizer que era uma composição de Chico Buarque.
Na boa, Roberto Carlos, com sua preciosa “Rotina”, fez uma narrativa do cotidiano de um casal muito melhor do que… “Cotidiano”, do Chico, cujos últimos discos depõem contra os seus bons trabalhos de outrora. O mesmo acontece com Jorge Ben Jor. Porém, o reconhecimento da redução da sua genialidade é bem maior do que a admissão da pouca relevância dos últimos álbuns de Chico Buarque. Mais uma vez as professoras de português…
Já o Jorge Ben é melhor letrista do que se imagina. Traz referências históricas e místicas incomuns na MPB (vide “Hermes Trismegisto” e “Taj Mahal”) e foi genial ao fazer o samba evoluir (para mais, recomendo a letra “O Caso das Bossas”, de Zil Rosendo e Dabliu Namor, cantada por Cassiano). No entanto, a sua contribuição à música brasileira se deve mais a outros elementos além da letra. Isso é fato. O que não o desmerece enquanto letrista, ao menos na sua fase áurea.
Concordo com todos aí de cima.
O fato é que essa geração – Chico / Caetano / Gil / Paulinho / Ben / Roberto – é espetacular.
Parafraseando Lula: Nunca na história desse país se verá algo parecido.
PS: Acho que o som de Jorge Ben envelheceu melhor que o de Chico. O genial Chico Buarque tem músicas insuportavelmente datadas. Jorge não.
Olá, Dias. Eu elogiei o Chico com certo temor mesmo de que o que eu dissesse se perdesse no turbilhão do discurso dos fãs histéricos do Chico Buarque que assola, por exemplo, a ala feminina das faculdades de Letras. Mas não é por aí. O olhar que elas lançam sobre Chico é tão turvado de paixões cegas quanto o é o olhar que ultimamente parte da galera da ”nova música popular” lança sobre Jorge Ben. Me parece o velho caso de matar um ídolo para erguer outro, que soa mais relevante para essa ou aquela geração. Não concordo de modo algum que os últimos discos dele sejam fracos sob qualquer aspecto. “Cidades” e “Carioca” superam-se. Chico supera-se neles. Os arranjos, as melodias e as letras são de altíssimo nível em termos de composição (nunca previsíveis, sempre se arriscando), e ainda conseguem soar simples como a canção popular. Basta pensar em “Sonhos sonhos são” ou “Cecília”. É o Scott Walker brasileiro. Jorge Ben é genial, mas sua influência, em geral, leva a simplismos musicais por gente não tão inspirada como ele próprio. Agora, claro que há muita tolice em decidir quem é o melhor. Os dois respondem a distintas necessidades da alma e do corpo. Naquela ilha, como no mundo, o ideal é que haja Chico e haja Ben. Mas esse argumento é chato, porque mata a discussão, rs.
Abraços,
Dodô, tudo o que eu falei sobre o Jorge Ben se aplica unicamente ao próprio. Alguns dos seus influenciados são interessantes, mas, assim feito você, noto os tais “simplismos musicais” de alguns dos seguidores do Jorge. Quanto ao Chico, “As Cidades” tem ótimas músicas e algumas boas letras. Porém, musicalmente falando, prefiro outras fontes. Não falo de “Carioca”, porque achei muito chato e, no fundo, um pretexto para o Chico voltar às turnês e ganhar o afago das suas eternas fãs.
É coisa pessoal mesmo: Paulinho da Viola, para mim, está acima de muitos medalhões da MPB. “Coisas do Mundo, Minha Nega” é que deveria ser estudada nas salas de aula como exemplo de narrativa simples e refinada na música brasileira. Porém, não quero criar caso. Que haja Chico, Ben, Paulinho e outros tantos.
É bom quando se discute com pessoas inteligentes.
Abraços!
Numa ilha deserta com certeza levaria mais discos de Jorge Ben do que Chico Buarque. Não tenho dúvidas da superioridade do último em termos de letras, mas vejo que o primeiro nos tempos áureos sabia explorar mais a diversidade musical. Monotemática é sua obra pós 1976, mas até então ele foi um gênio da reinvenção e da qualidade musical. Claro que em termos de temas para as letras, realmente a obra de Ben possa ser taxada de monotemática se comparada a de Chico, mas aí também é covardia. Contudo para mim a estética musical é o principal, não a letra, quando consumo música. E neste quesito Ben reinou soberano. Soube reinventar o violão tanto quanto João Gilberto (“Samba Esquema Novo”, 1963), aderiu a novidade guitarreira da jovem guarda (“O Bidu”, 1967), mergulhou fundo na estética tropicalista (“Jorge Ben”, 1969), demonstrou que o menos pode ser mais na MPB ao lado do Trio Mocotó (“Força Bruta”, 1970), incorporou elementos da música negra americana (“Negro é Lindo”, 1971), assumiu o ecletismo como melhor remédio para qualquer acusação de ser montemático (“Jorge Ben”, 1972), criou uma das maiores obras primas da música brasileira, tão importante e significativa quanto “Construção” do Chico (“A Tábua das Esmeraldas”, 1974) e abraçou de forma inteligentes as guitarras, a disco music e o funk (“África Brasil”, 1976).