Cinema: Com “Tudo Pode Dar Certo”, Woody Allen segue fazendo pensar enquanto conta piadas

por Marcelo Costa

Após quatro filmes seguidos em cidades européias, Woody Allen volta para a sua amada Nova York com “Tudo Pode Dar Certo” (“Whatever Works”, 2009), uma comédia tipicamente alleniana de primeira hora, que lembra seus primeiros filmes, mas destaca um texto que não carrega a amargura que seus longas iniciais deixavam por trás dos sorrisos fáceis.

Tudo bem que é difícil não ver amargura em Boris Yellnikoff (Larry David, roterista genial da série Seinfeld, soa um pouco desajeitado no papel, como se estivesse vestindo uma roupa grande demais), um velho judeu ranzinza metido a gênio, que foi indicado ao Nobel de Física, mas não ganhou, e agora fica premiando o mundo com sua visão soberana que defende que a raça humana é burra demais para ser feliz.

Escrito em 1977, o roteiro de “Tudo Pode Dar Certo” foi tirado da gaveta devido à greve de roteiristas e atores em 2008/2009. Um olhar aprofundado revelará algumas idéias que Woody Allen iria usar nos seus filmes seguintes, notadamente “Annie Hall” e “Manhattan” (onde Woody é um escritor de meia idade que namora uma jovem de 17 anos, mas não enxerga futuro no relacionamento até se descobrir apaixonado).

Boris é um suicida fracassado que, segundo os amigos, tem um “total delírio de grandeza”. Excêntrico até o último fio de cabelo, Boris passa o tempo tocando piano com os amigos e lecionando xadrez para crianças – idiotas, segundo ele. Sabe o Clint Eastwood de “Gran Torino”? É quase a mesma coisa, sendo que a grande diferença é que as tiradas humorísticas de Boris muitas vezes são impagáveis.

Para Boris, o problema central do mundo é que pessoas como Jesus Cristo e Karl Marx, entre tantas outras, acreditam que as pessoas são fundamentalmente decentes, e não são estúpidas, egoístas, gananciosas, covardes, de visão curta. “Lamento dizer, somos criaturas que falham”, explica ele logo no começo da película, antes de se aprofundar em um monólogo de deixar o espectador sem ar.

E é assim: Woody Allen defende sua doutrina nos três primeiros minutos do filme. “Se tiver que comer nove porções de frutas e legumes por dia para viver, eu prefiro não viver. Odeio essas malditas frutas e legumes”. Depois, outra estocada no peito do freguês: “Você pega o jornal e lê sobre algum massacre ou algum ônibus de escola que explodiu, e diz: ‘o terror’. Então vira a página e continua tomando o café da manhã”.

A rotina de nosso amigo muda até que uma loirinha adolescente, Melodie (Evan Rachel Wood bastante convincente), entra em sua vida de forma abrupta, e se apaixona por ele. Como escreveu um critico norte-americano, esse não é o cenário perfeito para uma comédia, mas sim para um delito penal, e dá exatamente o tom perfeito do politicamente incorreto que Woody usa com tanta sabedoria para provocar o espectador.

No entanto, a paixão de uma jovem por um velho não é o que move a trama de “Tudo Pode Dar Certo”, mas sim o choque entre cérebro e coração, juventude e experiência. Boris vive um momento da vida em que se relacionar com um mulher é a última coisa que pensa, mas Melodie traz à tona uma das idéias principais de Boris: agarre qualquer chance de felicidade que passar pela sua frente, pois no final tudo pode dar certo.

Vindo de um cara tão pessimista quanto Woody Allen, a idéia de que não podemos perder uma chance sequer de ser feliz soa bastante interessante. Se tivesse lançado “Whatever Works” no final dos anos 70 é bem provável que o filme não soasse tão leve quanto soa agora, três décadas e mais de 30 filmes depois. E essa percepção faz o filme ganhar muito mais brilho do que realmente tem.

Não é que “Whatever Works” seja ruim, pelo contrário, há graça de sobra e uma poesia insuspeita que valorizam o filme, mas o próprio Woody defende que comédias são, por natureza, inferiores. Assim, após o sensacional “Match Point” e o sedutor “Vicky Cristina Barcelona”, dois filmes de cunho sério, “Tudo Pode Dar Certo” é um aceno do diretor às comédias e a Nova York, e seu melhor filme humorístico desde “Trapaceiros” (2000).

Apesar da força do personagem Boris Yellnikoff e da ótima química da narrativa com Melodie, as melhores gags do filme giram ao redor de Patricia Clarkson (como Marietta) e Ed Begley Jr. (John), que interpretam a mãe e o pai da menina. Mais do que escadas para as tiradas cruéis de Boris, Marietta e John dão fluência ao filme, e reforçam a tese de que se deve aceitar qualquer coisa que os faça feliz enquanto experimentam ménage à trois e descobrem que, na verdade, Deus é gay.

“Whatever Works” começa com “Hello, I Must Be Going!”, de Groucho Marx, uma introdução perfeita. Woody Allen segue vivendo a vida e fazendo filmes porque é isso que lhe resta. A vida é um fardo, mas passa rápido demais, já cravou certa vez Alvin Singer, de “Annie Hall”. Aqui, ao final, ele cutuca o espectador: “A maior parte de sua existência é sorte, mais do que você gostaria de admitir”. Woody Allen faz pensar mesmo quando está contando uma piada. Poucos sabem fazer isso tão bem quanto ele.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

Leia também:
– Todos os filmes de Woody Allen, por Marcelo Costa (aqui)

6 thoughts on “Cinema: Com “Tudo Pode Dar Certo”, Woody Allen segue fazendo pensar enquanto conta piadas

  1. Oi Ma,

    Fui ver com minha filhota hoje, dia das mães. Apliquei ela no seu primeiro Woody Allen. Acho que ela gostou:) Eu chorei no final. Ela não entendeu. Tem toda a filmografia dele para fazer um fash back e entender porque Allen chegou e chega tão proximo d’agente. É um mestre cada vez mais genial dentro do seu estilo.
    bj

    dulce

    bj
    d.

  2. Salve Mac, nesse filme o diretor não cria um daqueles filmes em que ligamos de modo entusiasta para os amigos recomendando ao sair do cinema (como em “Vicky Cristina Barcelona”, por exemplo), mas consegue divertir. Apesar de não tão inspirado em “Tudo Pode Dar Certo”, a fase do diretor é tão boa que mesmo quando faz algo mais ou menos, ainda é melhor do que a grande maioria. Abs. 🙂

  3. VIVIANE ALVES
    Fui ao cinema esperando um filme mais ou menos, mas o que vi foi uma comédia que chega perto de nossos sentimentos. Indico a todas as pessoas que queremassistir a um filme leve que fala de coisas que a maioria das pessoas não se dão conta que acontece em suas vidas.

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