por Marco Antonio Bart
Texto publicado em novembro de 2000 no Scream & Yell 1.0
O que faz com que um livro narrando acontecimentos quase banais, ocorridos com um adolescente que não tem nada de extraordinário, transforme-se na mais acurada e sensível crônica da juventude deste século? Só os espertos que chegaram a ler “O Apanhador no Campo de Centeio”, do escritor americano J.D. Salinger, é que podem dizer com certeza. Prestes a completar 60 anos de publicação – surgiu em 1951, antes mesmo dos pais da maioria de vocês nascerem – a novela de Salinger é não só uma das mais marcantes obras da literatura norte-americana contemporânea; é também um marco na longa estrada que os jovens trilharam (e ainda trilham) para provar que têm direito a uma voz e uma visão de mundo próprias.
É bastante possível que você nunca tenha lido “O Apanhador”. No entanto, se você tem um mínimo de “antenidade” com o mundo que o cerca, muito provavelmente já leu ou ouviu alguma alusão ao livro no cinema, em jornal, revistas ou em outros livros. O fato é que este singelo romance de 1951 virou lenda ao longo dos anos, e fez de seu autor, Jerome David Salinger, um dos maiores mistérios da história recente da literatura. A pequena revolução que “O Apanhador” causou no comportamento da juventude americana – e por tabela, no comportamento da juventude do mundo todo – ecooa até hoje, fazendo parte da cultura da segunda metade de nosso corrente século.
“O Apanhador” narra um fim-de-semana na vida de Holden Caulfield, jovem de 17 anos vindo de uma família abastada de Nova York. Holden, estudante de um pomposo internato para rapazes, volta para casa mais cedo no inverno depois de ter levado bomba coletiva em quase todas as matérias. Na volta para casa, ao se preparar para enfrentar o inevitável esporro da família, Holden vai refletindo sobre tudo o que (pouco) viveu, repassa sua peculiar visão de mundo e tenta enxergar alguma diretriz para seu futuro. Antes de se defrontar com os pais, procura algumas pessoas importantes para si (um professor, uma antiga namorada, sua irmãzinha) e tenta lhes explicar a confusão que passa por sua cabeça.
E é só isso aí. Não há nada de mais trágico, ou dramático, na história; é só um adolescente voltando para casa. A grande magia de “O Apanhador” é justamente esta: ser uma história de e para adolescentes, e não meramente um livro “recomendado para leitores em idade escolar”. Foi a primeira vez na literatura americana (ou mesmo na mundial) que o universo próprio dos jovens foi estudado a fundo e exposto de maneira absolutamente natural, sem nenhuma pretensão ou didatismo. As idéias, conceitos, bobeiras, burrices, enfim, toda a loucura de ser jovem, nunca tinham sido traduzidos de uma maneira tão profundamente sintonizada com a realidade.
Vale um aparte aqui: antes de “O Apanhador”, simplesmente não existia esta coisa que há hoje de “cultura jovem”. Pode ser difícil de acreditar, mas há meros 50 anos os jovens (e sua maneira de pensar, suas idéias próprias e suas aspirações) não eram levados a sério pelos adultos de forma alguma. Ser jovem, nos anos pré-Elvis Presley, era apenas estar em um estágio irritante entre criança e o “homem feito”, uma fase que devia passar o mais rápido possível e sem maiores dores. O que não quer dizer que os jovens não tivessem seus anseios e preocupações – que não eram infantis nem adultas – mas que eram ignoradas pelos mais velhos. “O Apanhador”, com seu relato sem retoques de tudo aquilo que realmente se passa na mente de um adolescente, ajudou a tornar a sociedade mais atenta à barra (às vezes, pesada) que é ser jovem.
E o talento sem tamanho de J.D. Salinger é um dos maiores responsáveis pelo status cult do livro até hoje. Apesar de já ter passado longe da adolescência quando escreveu a obra (estava com 32 anos quando o livro saiu), o autor penetrou de forma admirável na maneira própria que os jovens têm para se expressar. O livro marcou época por seu uso ousado de gírias, e expressões e referências “chulas” – que andavam na boca da rapaziada da época. Salinger colocou em Holden Caulfield, de forma realista e convincente, tudo o que se passa na cabeça de um rapaz de 17 anos: as preocupações com o futuro, a incerteza de todo o mundo que passa por esta fase, as garotas (claro!)… Tudo de uma maneira que nunca havia sido vista antes, com liberdade de estilo, inteligência e um raro sentimento de proximidade com o universo jovem.
O mesmo sucesso que consagrou de vez o talento de Salinger (que já vinha, desde os anos 40, publicando contos em revistas) foi sem dúvida o responsável pelo rumo inesperado que sua carreira (e sua vida) tomou desde então. “O Apanhador”, seu primeiro romance (e único volume de material inédito) tornou-se uma coqueluche instantânea entre os jovens americanos, enlouquecidos ao finalmente conseguirem se identificar de forma tão perfeita com um herói de literatura. Engraçado, comovente e forte, o livro é literatura de primeira: leve e ágil, próprio para gente jovem (que ainda não “tem paciência com esta coisa de literatura”). Mas com estilo totalmente próprio e marcante.
Depois de vender 15 milhões de exemplares e virar uma celebridade mundial, Salinger – notoriamente tímido e agressivamente modesto em relação a seu talento – primeiro isolou-se em uma casa no topo de uma montanha, em uma cidadezinha de mil habitantes. Depois foi diminuindo o ritmo de produção (publicou seu último conto, Hapworth 16, 1924, em 1965, na revista The New Yorker) e afinal cortou qualquer contato com a mídia. Não concede entrevistas, não se deixa fotografar e nunca permitiu que nenhum dos seus livros fosse adaptado para o cinema (assim como o próprio Holden Caulfield, Salinger odeia cinema). Em dezembro de 1997, o escritor, do alto de seus 78 anos, autorizou afinal o lançamento de seu quinto livro (justamente a publicação em capa dura de Hapworth 16, 1924), o primeiro em 34 anos. (Parece o My Bloody Valentine.)
A mística sobre o autor de “O Apanhador” não se sobrepôs ao impacto da obra em si. Holden Caulfield e suas desventuras se tornaram precursores do mito da juventude rebelde – Holden contesta os mais velhos e não quer se tornar como eles, a quem considera farsantes. Toda a sua luta é para preservar os valores que ele acha verdadeiros e sinceros. Pode-se dizer que a figura de James Dean, o rebelde sem causa, é filhote da cruzada de Holden por sua integridade.
O livro foi citado por incontáveis bocas célebres ao longo dos anos, em filmes e outros livros. Uma das notas tristes na “biografia” da obra é que o livro teria inspirado o maluco Mark Chapman a cometer o ato que o tornou macabramente famoso – assassinar John Lennon, em 1980. Mas nem por isto “O Apanhador” deixou de ser um dos livros indispensáveis (talvez o único realmente indispensável) na formação de qualquer jovem que deseja compreender melhor a si mesmo, e como o mundo o enxerga – e a seus colegas. Eu mesmo li duas vezes: a primeira aos 12 anos, a segunda – no original em inglês, mais engraçado ainda – aos 19. E ainda vou encarar uma terceira, assim que achar um exemplar em algum sebo: o livro, editado pela Editora do Autor, anda bastante arredio. Mas quem achar, agarre na hora. É a fonte da eterna juventude.
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‘O Apanhador’ e cia…
– Além da música Who Wrote Holden Caulfield? (Kerplunk!, de 1992), o Green Day faz referências a Holden Caulfield nos cinco álbuns da banda.
– A letra de In Hiding, do Pearl Jam, fala sobre tentar achar a casa de Salinger. Eddie Vedder disse ao NME que, no fundo, é uma metáfora sobre tentar encontrar a casa de Deus, “como se Ele fosse um recluso; você encontra a casa Dele, abre Sua caixa de correspondência e descobre que está cheia de junk mail”.
– Quando perguntaram a Mark Chapman por que ele matara John Lennon, o perturado-mental-ou-pau-mandado-da-CIA disse: “Leia O Apanhador no Campo de Centeio e você descobrirá porque o fiz. Esse livro é meu argumento”.
– Em uma referência a Chapman, o filme Teoria da Conspiração traz Mel Gibson no papel de um lunático que compra todas as cópias de O Apanhador… que consegue encontrar, sem nunca ter lido o livro.
– A Disney tem um projeto de produzir uma versão animada de O Apanhador… com um pastor alemão como Holden Caulfield… (que Deus nos livre e o santo Salinger proiba todo esse lixo!).
– A banda americana The Caulfields.
– A gravadora indie Caulfield Records (PO Box 84323 Lincoln, NE 68501 USA).
– A cantora Lisa Loeb fundou a banda Nine Stories, título de um dos livros de Salinger.
– Bill Halley and his Comets gravaram a homenagem a Salinger Rocking Through The Rye (1958).
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Marco Antonio Bart é jornalista e assina o blog Telhado de Vidro
O estilo do autor é muito bom. Consegue prender o leitor. Gostei muito do “O Apanhador…” e achei excelente o Nine Stories.
Espero que os herdeiros não autorizem a adaptação pro cinema.
Além dessa execlente obra, tem outra muito interessante sobre um jovem “rebelde”, também na primeira metade do século XX, porém escrito nos anos 80, que é o “Misto-Quente” de Charles Bukowski. Os dois livros são emocionantes, não sei qual é mais legal!
“A grande magia de “O Apanhador” é justamente esta: ser uma história de e para adolescentes…”
Ou não entendeu nada sobre o livro, ou não soube se expressar.