Entrevista por Manuela Colla
Imagem: Hiro retratado por Benício
Demais imagens ilustrativas retiradas do blog de Hiro: http://blog.hiro.art.br
Hiro Kawahara é um ilustrador que nasceu em 1965, em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, e se auto-intitula “um cara que todo mundo conhece mas ninguém sabe quem é”. O motivo? Há 15 anos ele ilustra as toalhas que são colocadas nas bandejas do McDonald’s.
Hiro começou a trabalhar como ilustrador na Editora Três, aos 21 anos – reza a lenda que conseguiu o emprego ao terminar uma ilustração de um repolho no banheiro da editora, umedecendo aquarela com água de privada.
Hoje, Hiro continua escrevendo e ilustrando as toalhinhas de bandeja do McDonald’s como autônomo, além de trabalhar para outras agências de publicidade e design, fazendo ilustrações, direção de arte, jogos, criando personagens, embalagens, naming e logotipos. No meio disso, ele respira, vê os amigos e tenta arranjar tempo para fazer seu livro e viajar. Conversamos com ele:
Como você começou a trabalhar como ilustrador? Foi algo programado ou acabou acontecendo na sua vida?
Foi algo que acabou acontecendo, sem dúvida. Eu estava cursando faculdade de Biologia na USP e pretendia trabalhar como ictiólogo, que é um especialista em peixes. Eu ia passar a vida dentro do laboratório, bastante influenciado pelos documentários do Jacques Costeau. Eu gostava de desenhar desde criança, e um dia uma amiga saiu da faculdade de Biologia para trabalhar numa revista, que precisava de um ilustrador, e ela me apresentou à redação. Para pegar o trabalho, precisei fazer um teste. Isso foi em 1985, e eu nunca havia desenhado profissionalmente. Passei no teste, comecei a trabalhar na Editora Três e não sabia desenhar direito! (risos), mas deu tão certo que desisti da faculdade depois de começar na editora. Faltavam apenas seis meses para que eu me formasse. Na época, minha família ficou apreensiva, não havia nenhum artista na família e meu pai achou que eu ia largar a vida acadêmica para me transformar em um vagabundo, era difícil de entender essa mudança. Mas eu adorava o trabalho na Editora Três, e aprendi muito lá.
Que tipo de trabalho você fazia no início da carreira?
Na Editora Três, ilustrava fascículos de uma série chamada “Vida – Um Guia de Auto-Suficiência”, que ensinava a plantar, criar, bem naquele esquema de passo-a-passo de como fazer coisas do dia a dia. Depois, comecei a ilustrar para algumas revistas da editora, como a “Planeta”. Eu circulava muito pela redação, pela gráfica que ficava no subsolo do prédio, por isso aprendi bastante sobre revistas – eu via o processo todo acontecendo desde o início. Sempre fui curioso, e acabava até dando sugestões de pautas pros repórteres (risos). Fiquei três anos na editora, ilustrando revistas de esoterismo, autoajuda, carros, esportes… Aprendi muito lá.
Como funciona sua criação de uma nova ideia, um conceito?
Eu sempre tive bastante liberdade para trabalhar, como nas bandejas do McDonald’s por exemplo, mas é claro que meu trabalho autoral, como a série de “Fadas Enfartadas”, a liberdade para criar é muito maior. Mas mesmo quando tenho um grande cliente, procuro escapar do óbvio, pensar em soluções diferentes para ele, até mesmo sugerindo coisas que pareceriam meio… absurdas (risos). Eu uso muito a intuição para trabalhar, eu mesmo tenho que achar legal o conjunto da ideia e do traço, senão ela é descartada. Por isso, sempre aconselho os jovens ilustradores para que não tenham medo de ser ridículos, de sair do lugar-comum. Mas sempre com um olho também na produtividade, na viabilidade e na defesa da idéia, senão tudo isso vira apenas uma grande viagem criativa.
Eu não gosto muito de mangá porque acho que a maioria é produzido com muita preocupação na técnica do desenho, mas não têm uma boa ideia por trás dele (existem exceções fabulosas que fazem a regra, como “Blade” ou “Preto e Branco”). Ao mesmo tempo, conheço o trabalho de cartunistas e quadrinhos brilhantes cujo traço não é perfeito, mas a idéia é fenomenal. Por isso, procuro estimular sempre as boas ideias, respeitar meu timing para que elas nasçam e digo que sou mais fã da idéia do que da forma.
Como foi que você começou a ilustrar as bandejas do McDonald’s?
Depois de sair da Editora Três, fiquei trabalhando um tempo como freela, mas eu não tinha ‘pegada’, era muito novo. Acho que fiquei só um ano trabalhando como ilustrador freelancer, depois voltei para trabalhar numa agência onde pretendia passar algum tempo – 3 meses, na verdade. Fiquei lá onze anos. Comecei como Diretor de Arte Júnior e fui crescendo dentro da agência, a Taterka. Eu sou aquele tipo de pessoa que sempre leva um gibi ou livro na hora do almoço, e um dia, comecei a rabiscar na bandeja do McDonald’s. Levei a ideia adiante porque achava que dava pra fazer um trabalho legal, meio Recreio, meio Superinteressante. Eu criava, pesquisava, escrevia, desenhava e finalizava a toalhinha. O texto era muito diferente naquela época, início da década de 90, eu tinha muita liberdade, podia escapar do politicamente correto. Em 2000, fiquei encarregado da parte infantil do McDonald’s, criando campanhas e as caixinhas de McLanche Feliz.
Como surgiu seu projeto das Fadas Enfartadas?
Como eu disse, sou workaholic, trabalho cerca de 18 horas por dia, mas este ano resolvi diminuir um pouco o ritmo e me dedicar a algum projeto pessoal. E assim surgiram as fadas – até agora, está sendo um ano muito legal pra mim. Estas fadas também servem para exercitar meu lado de criador de personagens, e aumentar meu networking no mercado de criação de personagens para cinema. Adoro criar personagens, adoro trabalhos mais autorais, e trabalhar com cinema é um sonho antigo meu.
Você comentou que gostava de desenhar desde criança. O que você gostava de ler nessa época, quais eram seus gibis favoritos?
Meu pai sempre me incentivou muito a ler, tenho que agradecer todos os dias por isso. Ele comprava revistas Recreio para eu e meu irmão, e ele me incentivava a ler a seção de quadrinhos do jornal – e todo o resto dele também (risos). Lembro que, aos domingos, ele saía para comprar o pão de manhã e nos levava para a banca de revistas – eu e meu irmão podíamos escolher duas revistas cada um. Eu gostava da Recreio, dos gibis do Tio Patinhas, e tentava copiar os desenhos de olho mesmo. Copiava também os desenhos que via na televisão, também do Ultraman , tentava reproduzir os monstros, rabiscava o dia todo. Aí pelos 10 anos comecei a ler tudo da Agatha Christie, aquele mistério de descobrir quem era o assassino era muito instigante pra mim.
Que artistas você cita como influência?
Eu sempre digo que metade do trabalho é o desenho e a outra parte são as referências. Eu gosto muito de descobrir artistas novos, e me sinto influenciado por eles também, como a Samanta Flôor, por exemplo. Claro que também tem artistas com muito tempo de carreira que admiro muito, e que sempre irão me influenciar, inclusive, como pessoa. Um que sempre cito é o Hayao Miyazaki (diretor das animações “A viagem de Chihiro” e “Castelo Animado”, entre outros). Eu não sou muito ligado ao desenho japonês, ao mangá, mas acho que ele é mestre no uso da imaginação. Outra coisa que gosto muito dele é o fato de não haver aquele maniqueísmo de “o bem contra o mal” no trabalho dele, os personagens não são totalmente bons ou totalmente maus, não existe essa dicotomia tão marcada. Por isso, gosto de fazer minhas ilustrações olhando pras coisas de forma diferente, tentando não seguir o lugar-comum. E os filmes do Miazaki não caem em clichês, e ele também é uma grande influência de desenho, de criação. Outro que admiro muito é o Al Hirschfeld, que trabalhou até os 99 anos e ilustrou muitos os atores, cantores, celebridades, pensadores e escritores americanos importantes. Quando viajei para Nova York recentemente, uma das minhas intenções era ver os originais dele, mas não consegui. Ele começou a desenhar aos 12 anos, e tinha um traço único. Me inspira demais como pessoa também, quero chegar aos 99 com o fôlego dele. Gosto também do gaúcho Benício (José Luiz Benício, que fez bastante capas de livros, revistas e cartazes de cinema nas décadas de 60 e 70, inclusive todos cartezes dos filmes dos Trapalhões). Acho ele, além de talentoso, um cara muito ético, correto. Entra, também, nas influências pessoais. Claro que muitas coisas mais me influenciam, mas esse é o Trio Sagrado.
Fora as referências de trabalho, o que você gosta de ler?
Eu não sou acadêmico, tenho amigos muito cultos e valorizo a cultura popular. Mas adoro também ler os clássicos. Montei uma biblioteca particular com cerca de 3.000 livros (muitos deles comprados para pesquisas das lâminas de bandeja do McDonald’s, que eu também escrevo). Gosto muito do Allan Poe, do Jack London, do Cortázar, García Márquez, Goethe, Hemingway, Marc Chabon (“As Aventuras de Kavalier & Clay” é um dos melhores romances que já li), mas é claro que também leio bastante quadrinhos. Eu adoro matemática também, leio bastante teoria sobre isso, sobre lógica. Um dos meus livros de cabeceira é “Gramática da fantasia”, do pedagogo italiano Gianni Rodari.
E o que está lendo agora?
Eu sou aquele tipo de pessoa que lê vários livros ao mesmo tempo. Estou lendo o “Nova York, A vida na grande cidade”, do Will Eisner, também o “Frango com Ameixas”, da Marjane Satrapi, terminei de ler “Retalhos” de Craig Thompson, e um livro chamado “Linked”, que fala de como as coisas são interligadas no mundo…
Dá pra notar bastante influência de cultura pop no seu trabalho. De onde vem isso?
Eu gosto de vários seriados que têm diálogos geniais, como Seinfield, The Office, House, Samantha Who, Third Rock… Gosto de observar o primor do roteiro de alguns deles, as sacadas geniais nos diálogos, coisa que não se vê muito mais no cinema.
Você desenha usando o computador ou o papel?
No computador, só para clientes. Voltei a desenhar no papel porque estava preocupado – vi que meu traço estava ficando ‘destreinado’. As pessoas me incentivaram a ter um sketchbook, que levo para todos os lugares, até para reuniões chatas (risos). No último final de semana, fui ver uma apresentação da Orquestra Filarmônica e fiquei desenhando o tempo todo. Eu sempre começo mais sério nos primeiros minutos, depois a imaginação começa a tomar conta dos desenhos. Uso um bloco grande quando quero fazer desenhos mais elaborados, aquarelas… Mas não sou tão compulsivo como alguns amigos. Sou workaholic, mas aprendi a descansar.
Qual o melhor momento do dia para desenhar?
Sou notívago, durmo mais ou menos cinco horas por noite. Vou dormir quando o sol está se levantando, ele é meu relógio. Geralmente fico até as cinco da manhã desenhando, pra acordar por volta das dez da manhã do outro dia. Acho que de noite a mão desenha melhor, gosto do silêncio, da rua vazia, do telefone que não toca. Deixo o dia para aqueles retoques, quando percebo algum problema de proporção num desenho, reviso, fico mais crítico. E é à noite que faço os posts no meu blog (http://blog.hiro.art.br/).
Você recebe bastante emails de ilustradores iniciantes. Como lida com isso?
Eu respondo. Às vezes, tiro um dia só pra responder emails. Muitos têm vontade de desistir de trabalhar com ilustração, e tento incentivá-los, porque não é fácil mesmo, especialmente no começo. Se eu tivesse tido esse tipo de estímulo quando era moleque, talvez as coisas tivessem sido mais simples, mais fáceis pra mim.
O que gosta de ver na Internet?
Visito muitos blogs de ilustradores novos, gosto também de muitos blogs de artistas como o Scott C., o Enrico Casarosa, Vera Bee, Alarcão, Bill Presing, etc., além do maior blog sobre ilustração do mundo, o Drawn, referência para qualquer amante de desenho. Gosto de ver sites de coisas estranhas e bizarras, como o Odee, que faz listas de coisas estranhas; o Monster Brains, que só fala de monstros, o Cryptomundo, que só fala de animais estranhos… Adoro essas coisas.
caramba, eu tenho alguns fascículos do guia de autosuficiência em casa. muito bom aquele material, e excelente este ilustrador que eu conhecia sem saber quem era.
Entrevista interassantissima. É sempre bom conhecer historias assim. 🙂