Por Marcelo Costa
A vida de Caden Cotard está um caos. Ele é dramaturgo e está finalizando uma peça de teatro, mas o caos começa em casa. Sua filha está fazendo cocô verde, o leite está vencido e sua mulher, uma pintora bastante particular, já não o ama mais. Só estas primeiras linhas já poderiam render um filme, mas o espectador não tem a mínima idéia do que lhe espera após esta apresentação inicial de “Sinédoque Nova York”, estréia na direção do badalado roteirista Charlie Kaufman.
Kaufman debutou no cinema assinando o roteiro de “Quero ser John Malkovich”, dirigido por Spike Jonze, que voltaria a trabalhar com o roteirista em “Adaptação”. O roteirista ainda assinou duas parceiras com Michel Gondry, “A Natureza Quase Humana” e “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”. Por último, George Clooney dirigiu um roteiro dele em “Confissões de uma Mente Perigosa”. Apesar da variação de diretores, a personalidade de Kaufman brilha (às vezes mais, outras menos) nos cinco filmes escritos por ele.
Com um histórico brilhante conquistado menos de 10 anos de cinema, nada mais natural que esperar que o roteirista ouse ainda mais em seu filme de estréia como diretor, porém ninguém poderia imaginar que – sem ninguém para lhe dar tapinhas na mão – Charlie Kaufman poderia ir tão longe em “Sinédoque Nova York”, uma fábula com tons de absurdo que só encontra concorrente no cinema moderno nas obras de David Lynch, que chega inclusive a soar como referência em algumas passagens.
Os vinte primeiros minutos de “Sinédoque Nova York” são deliciosos, porém Charlie Kaufman leva seus personagens por trilhas difíceis de acompanhar nos 104 minutos seguintes. Há em “Sinédoque Nova York” um pouco de cada um dos outros roteiros assinados por Kaufman, que volta a investigar temas que lhe são tão caros como o senso de inadequação do homem moderno (chegando ao ponto de, no final, não sabermos se Caden Cotard (interpretado muito bem por Philip Seymour Hoffman) e a loucura que cerca o momento da criação (e dá-lhe metalinguagem).
Não acredite na simplicidade, meu amigo (a). Esses dois temas estão longe de esgotar “Sinédoque Nova York”. Tanta coisa surge pela tela que muitas portas abertas não se fecham e é preciso binóculos para perceber os detalhes como se estivéssemos observando uma belíssima pintura de menos de um centímetro de comprimento. Após o pânico inicial, Charlie Kaufman deixa seus personagens caminharem sozinhos dentro de um enorme galpão, e ali o filme se desenrola com os personagens principais virando coadjuvantes de sua própria história.
A guia para a loucura de Kaufman parece contar o seguinte: Adele, sua esposa, o deixou e levou consigo sua pequena filha Olive, de apenas 4 anos, para a Alemanha. Neste meio tempo, o dramaturgo recebe um prêmio de uma fundação que apóia a genialidade, e Caden se vê diante de seu maior sonho: escrever a melhor peça de teatro já escrita. Ele muda para Nova York, e constrói uma pequena Nova York dentro de um galpão. Os anos passam. As décadas passam, mas ele acha que foram dias. Cria-se um mito em torno da peça, e aos poucos fragmentos se juntam.
Em seu primeiro longa-metragem, Charlie Kaufman quis abraçar o mundo e falar tudo àquilo que queria falar para o público, desde a crueldade da arte que seduz o artista fazendo-o refém de si mesmo para, por fim, devorá-lo, passando por discussões filosóficas acerca de “temas simples” (risos) como a vida, a morte, e a razão de se estar respirando neste mundo velho sem porteira até a completa falta de criatividade. Kaufman quis, mas não conseguiu. Falta ritmo para “Sinédoque Nova York”, que começa cômico e leve para terminar triste, amargo e introspectivo – como a vida.
Pela brecha aberta pelo filme sentimos a necessidade de alguém que dome os impulsos de gênio de Charlie Kaufman, e os transforme em grande cinema como já aconteceu com “Quero ser John Malkovich” e “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (que rendeu a Kaufman o Oscar de Roteiro Original). Sozinho com a direção e o roteiro em suas mãos, ele parece perdido (e só parece, pois é bem possível – mais risos – que haja sim sentido em toda maluquice exposta na tela) como seu alter-ego Caden Cotard, que acaba tornando-se cópia de si mesmo – e leva todo mundo consigo.
Não tome essa perdição conjunta proposta por Kaufman como demérito. Ele quer trazer o espectador para a trama, e em muitas passagens comove os olhos e toca a alma, mas parece derrapar na hora de juntar as peças deste imenso quebra-cabeça chamado… filme. A grande questão, óbvia, é que na verdade as peças estão todas em ordem na cabeça dele, mas para quem está de fora, juntar é uma tarefa árdua. O fã do bom cinema de autor pode se arriscar sem medo de ser feliz, embora corra o grande risco de sair da sala do cinema não entendendo patavina do que viu. Ainda assim será melhor do que assistir a “Velozes e Furiosos 4”, “Se Eu Fosse Você 2” e “Presságio”. Fácil.
“Sinédoque Nova York”, de Charlie Kaufman – Cotação 2/5
Leia também:
“Adaptação”, por Marcelo Costa (aqui)
“Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, por Marcelo Costa (aqui)
Pôxa, eu queria ver esse filme… Primeiro porque eu gostei muito de “Brilho Eterno…” e depois porque eu amo a JENNIFER JASON LEIGH, ela está bem no filme? É um papel pequeno, né? Vou esperar sair em dvd! Grande resenha, mais uma vez, Marcelo!
Sou fã de carteirinha do cinema proposto por David Lynch, então acho que depois de uma “pancada” cerebral em Inland Empire (q por sinal Macelo, seria legal vc comentar um dia) eu posso esperar tudo. Prefiro cinema de autor e nesse sentido, fiquei tentado a ve-lo, já que o cinema atual, pouco me atraiu nessa década, salvo casos raros.
Assisti. Adorei. Filme corajoso. Se derrapa em alguns momentos? Pode ser. Mas é irrelavante. Já pro cinema!
Falta assistir, ainda não chegou por aqui 🙂
Achei o filme genial. Além do Lynch, outra referência bem explícita é o Kafka (que inclusive tem uma referência explícita numa cena rápida do filme).
O curioso, como observou um amigo, é que tanto quem gostou quanto quem não gostou comentou a mesma coisa: “O filme é Charlie Kaufman sem ninguém para lhe aparar as idéias”.
Marcelo, adoro seus comentários sobre filmes. Como gosto muito de eleger um diretor ´da vez´, vou ver esse filme, pois gostei muito de Adaptação, de Brilho Eterno… e de Quero Ser John Malkovitch. Costumo fazer o seguinte: antes de assistir no cinema o filme da vez, pego na locadora alguns filme do mesmo diretor (ou roteirista, dependendo do propósito) e faço uma comparação e analiso a obra do cara. Já fiz isso com diversos diretores (minha última investida foi na dupla Tim Burton/Johnny Depp; vi tudo e sou fã da dupla) e acho muito legal. Vou rever os filmes mencionados acima, vou ver (pois ainda não assisti) A Natureza Quase Humana e Confissões de Uma Mente Perigosa de depois vou ao cinema sem medo de ser feliz. Para mim, cinema é cultura. Abraços.
filme difícil, mas vale a pena.