por Marcelo Costa
Antes de qualquer coisa acho importante dizer: eu não li o livro (ainda). Amigos e muitos críticos reforçam a fidelidade do roteiro ao livro, mas quando digo que não li estou me despindo de uma pretensa comparação entre literatura e cinema, e também de uma expectativa formada no âmago (muitas vezes inconscientemente) que procure respostas emocionais que transformem a ansiedade em algo tocável e reconhecível.
O desconhecimento da história torna o espectador refém do roteiro, inevitavelmente, afinal ele não sabe o que vem pela frente e por experiência, destreza ou chute forma pequenos núcleos opinativos em sua mente que caminham para lá e para cá conforme a fita vai desenrolando na tela. É um jogo interessante entre diretor e espectador que, quando bem executado, gera filmes inesquecíveis.
“Ensaio sobre a Cegueira” nasce valorizado como história. Baseado na obra homônima do escritor português José Saramago, agraciado com o Nobel de Literatura em 1998, a história é devastadora. Aborda uma epidemia de cegueira em uma cidade qualquer que começa infectando um homem e, depois, toma toda a população e a joga em uma espiral de desencontros cujos valores são esquecidos.
O tema é caro a vários escritores – “A Peste”, de Albert Camus (cujo inimigo também é uma epidemia), “O Macaco e a Essência”, de Aldous Huxley (a fumaça negra causada pela bomba nuclear em uma terceira guerra mundial devasta a civilização) e mesmo “Blecaute”, de Marcelo Rubens Paiva (com três amigos em uma São Paulo devastada) – cujo pessimismo em relação à humanidade fica evidente.
Para esta adaptação, Fernando Meirelles cercou-se de alguns dos seus colaboradores (César Charlone na fotografia, Daniel Rezende na edição) e de um time estrelado de atores do qual fazem parte Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, Don McKellar, Danny Glover e Gael Garcia Bernal. O filme foi rodado em Toronto, no Canadá, em São Paulo e Osasco no Brasil e Montevidéu no Uruguai, e apesar de todo o esforço o resultado soa… incompleto, distante.
Se o roteiro de “Ensaio sobre a Cegueira” é fiel ao livro, e o livro é um clássico da literatura moderna, qual o motivo do filme não funcionar? Talvez seja a opção da direção em torná-lo distante de seu público. A estilização fotográfica é belíssima, mas inibe o espectador que acaba por fim não se envolvendo com a história, por mais que a história seja envolvente.
Colocado na posição de observador, o espectador enfrenta um segundo problema, talvez o maior do filme: a sujeira visual exibida nos corredores, nos destroços de ruas famosas de São Paulo é muito maior do que a sujeira moral proposta pelo roteiro. Fernando Meirelles parece ter amaciado o formato visual do discurso para não chocar o público, e a sujeira moral é um dos grandes atrativos de “Ensaio sobre a Cegueira”.
Meirelles já havia feito o mesmo em “Cidade de Deus” alcançando um resultado excepcional ao contar a história da favela carioca com um certo tom de humor, câmera e edição frenéticas e muita ação, opções que amaciavam a realidade dura de um território dominado pelo tráfico de drogas, vivendo chacinas recorrentes e com “governantes” locais que desafiavam o Estado.
Em “Ensaio sobre a Cegueira”, porém, a opção parece não funcionar. As cenas estão ali, mas não causam impacto. A derrocada da sociedade na visão de José Saramago é completamente pessimista, e não dá para o público ficar alheio a esta visão. Porém, tudo se apóia na belíssima metáfora da cena final, lírica, dos cegos que vêem, pois o espectador deixa a sala achando que a humanidade tem solução, mesmo com toda barbárie exibida minutos antes.
Entre a sutileza do discurso cinematográfico e a metáfora deslumbrante de seu final arrebatador (e talvez rápido demais – o que pode escapar ao público), “Ensaio sobre a Cegueira” está longe de ser um filme ruim assim como também não exibe os dotes tão caros a um filme clássico. Fica no meio do caminho e até pode abrir os olhos de algumas pessoas, mas o mérito será muito mais do paciente do que do médico. Não será sempre assim?