Texto e fotos por Marcelo Costa
Vinte e quatro horas de Virada Cultural não é uma parada fácil. São muitos shows, é muita gente, e por mais que os palcos sejam próximos uns dos outros, na segunda vez que o fulano vai do Pátio do Colégio (local dos independentes) para a Avenida São João (palco principal), o corpo já começa a dar sinais de cansaço. Multiplica isso por sei lá quantas vezes e você terá uma pálida ideia de como meus joelhos estão neste momento. No entanto, o esforço vale a pena. Só exige um mínimo de planejamento.
Existe um primeiro grupo de pessoas, dividido em duas facções, que elege seus preferidos. A facção 1 procura acompanhar aqueles artistas difíceis de ver, bandas que estão se reunindo para uma apresentação, ou cantores que são resgatados do limbo. A facção 2 vai atrás de seus artistas mais queridos, mesmo que já tenha visto mais de dez shows dele. E existe, ainda, um segundo grupo que quer ver absolutamente tudo, mesmo sendo uma pessoa só (e é aqui que incluo). Haja pique.
Descansar antes também é um item indispensável. Um grupo de fãs do Som Nosso de Cada Dia, grupo progressivo dos anos 70, viajou do Sul para São Paulo para acompanhar a reunião do grupo tocando seu álbum mais clássico, “Snegs”, de 1973. A viagem cansativa unida ao adiantado da hora (três da manhã) derrubou metade dos fãs, que assistiu ao show em sonhos enquanto dormia nas poltronas (não tão confortáveis) do Theatro Municipal de São Paulo.
Eu mesmo tive que encarar um plantão no sábado. Acordei às oito horas, fui pra redação e sai de lá quase 15h30 decidido a tentar dormir só depois de (re)ver Os Mutantes, às três da manhã, na Avenida São João. Você acha que eu aguentei? Bem, conto isso e mais algumas outras coisas abaixo, em um relato descompromissado ilustrado por algumas imagens que registrei do evento. Vamos lá, acompanhando o balanço das horas pelo relógio do celular.
16h – Encontrei alguns amigos e fomos almoçar no Ponto Chic, em frente da Galeria do Rock. Na porta do Theatro Municipal, mais de 300 pessoas já aguardavam na fila para ver o show de Luiz Melodia, que iria começar apenas às 18h. Passado alguns chopes escuros, uma porção de fritas e um sanduíche de filé mignon, o comboio partiu para a porta dos fundos do Theatro Municipal, local de acesso da imprensa ao teatro, que já tinha boa parte de seus 1580 lugares tomado.
18h – Luiz Melodia começou o show pontualmente com “Estácio, Eu e Você”, faixa que abre seu clássico álbum de estreia, “Pérola Negra”, de 1973, que seria apresentado na integra neste show. Apresentação foi notadamente dividida em duas, com o cantor se destacando nas canções que se tornaram hits nacionais enquanto o guitarrista Renato Piau chamava a responsabilidade pra si nos rocks que nem mesmo Luiz Melodia lembrava e colava lendo as letras (como em “Pra Aquietar”, “Objeto H” e “Farrapo Humano”).
“Vale Quanto Pesa”, “Estácio, Holly Estácio”, “Pérola Negra” (com uma pausa no meio para a citação a capela de “A Coitadinha Fracassou”) e principalmente “Magrelinha” foram cantadas em coro por um público que, em sua maioria, sabia todas as canções do álbum de cor, mas soltava a voz mesmo nos hits a ponto de emocionar o cantor. A banda, afiada, cumpriu com louvor a tarefa de transpor para o palco o repertório de um dos grandes álbuns da MPB em uma apresentação impecável. No bis, três faixas mais novas: os sambas “Contrastes” e “Dama Ideal” e, para fechar, “Cuidando de Você”.
20h – A ideia era sair do Luiz Melodia e correr para tentar pegar um pedacinho do show do Mundo Livre S/A, mas só mesmo em sonho. Quando cheguei ao Pátio do Colégio, os cariocas do Luísa Mandou um Beijo estavam encaminhando sua apresentação para o final, e deu tempo de ouvir as boas “Amarelinha” e “Anselmo”. O Vanguart entrou logo em seguida para uma ótima apresentação, enxuta, sem rodeios, falação e improvisos. “Semáforo” já não está sozinha na boca do público, que também entoou “Para Abrir os Olhos” e “Cachaça”.
22h – Antes de chegar até a Casa das Rosas, local que iria abrigar Tom Zé a partir das 23h, fiz a bobagem de entrar na loja e locadora de filmes 2001, na Paulista. Sai de lá quarenta minutos depois com R$ 50 a menos na carteira, e “Singles – Vida de Solteiro” (Cameron Crowe), a edição especial dupla de “O Iluminado” (Stanley Kubrick) e “Se Meu Apartamento Falasse”, clássico de Billy Wider que acabou de ganhar lançamento em DVD e faz anos que desejo ver. Minha alegria foi tanta ao encontrar o filme que cogitei cabular o show d’Os Mutantes para assistir ao DVD. Antes, porém, Tom Zé.
23h – A Casa das Rosas, um dos pontos mais charmosos da Avenida Paulista estava atolada de gente quando cheguei. O som não estava bom e a iluminação do pequeno palco montado nos fundos da casa também não era das melhores, mas nada impede atrapalhar Tom Zé de fazer uma apresentação no mínimo divertida. Imagina: ele começou com “2001?, aquela d’Os Mutantes (letra dele, música da Rita). É difícil traduzir a excelência de um show de Tom Zé, mas é uma experiência pra lá de gratificante vê-lo ao vivo.
No repertório, canções mais novas como “Atchim”, do álbum “Dance eh Sá”, a sensacional “O Pib do Pib” (que versa sobre a globarbarização sob o ponto da vista da “prostituição infantil barata”), “Politicar” e a já clássica “Companheiro Bush”, mas não faltaram canções mais antigas como “Fliperama” (pedida pelo público), “Senhor Cidadão” e a maravilhosa “Augusta, Angélica e Consolação” (além, claro, da hilária “Jingle do Disco”, do álbum “The Hips of Tradition”). Para fechar, “Jimi Renda-Se” na versão do álbum “Jogos de Armar”.
01h – Cheguei em casa decidido a não sair mais. Enquanto baixava as fotos, um amigo ligou me chamando para ver Joana Duah (ex-Mascavo Roots), no Palco das Meninas, ao lado do Edifício Copan. Olhei para os meus pés. Tenho uma teoria de que se eu desamarrar os sapatos após entrar em casa, não saio mais. Tem aquela coisa de você dar uma passadinha em casa antes de uma balada, e acabar trocando a balada pela cama. Só faço isso quando desamarro os sapatos. E eu ainda não os havia desamarrado?
Coloquei a mochila nas costas e sai novamente, para voltar uma hora e meia depois e despencar na cama de sono. Como foi o show? Joana está prestes a debutar solo com um disco que mistura samba, África, Bahia e música folclórica. Quando o disco sair a gente conversa. Eu estava por demais de cansado para pensar criticamente, mas o público parece ter aprovado. Enquanto voltava pra casa, o amigo se encaminhava para o Theatro Municipal, show do Som Nosso de Cada Dia, e queria ainda ver Pepeu tocar a integra do álbum “Geração do Som”, de 1978. Se eu tivesse ido, fácil que iria integrar o time dos dorminhocos. Preferi a minha cama.
09h – Acordei para assistir a Fórmula 1, mas só vi mesmo a largada, e acabei apagando no colchão que coloquei na sala. Acordei novamente às 10h30 com outro amigo ligando, perguntando qual seria o meu roteiro para o dia. Animei-me, coloquei uma bermuda, joguei a mochila nas costas, passei na feira e comprei um pastel de carne (você acredita que a Vigilância Sanitária proibiu o vinagrete nos carrinhos de pastel? Como assim???) com um caldo de cana, e cheguei a tempo de assistir algumas músicas do Overcoming Trio (Mallu Magalhães, Hélio Flanders e Zé Mazzei).
Como projeto paralelo dos três músicos (Mallu é solista, Hélio toca no Vanguart e Zé no Forgotten Boys), o Overcoming Trio é um divertido passatempo descompromissado. Não dá para levar a sério. Há a paixão pelo folk (que segundo Hélio, “infelizmente está na moda”), mas é preciso um pouco mais. Talvez maturidade, ensaios ou mesmo punch de palco. Mallu é uma gracinha e impressiona. Os mais de vinte jovens a esperando a beira do palco também. Algo está acontecendo, mas este não é o momento e nem o lugar para sair detonando o hype e/ou provocando os invejosos.
12h – Um sol a pino castigava a selva de asfalto elevando aos ares a urina deixada por transeuntes que não esperaram pela liberação de um banheiro químico, e foram largando a cerveja digerida pelas ruas do centro da cidade. É preciso ter banheiros químicos em cada esquina do centro, pois senão fica impossível caminhar por ali após uma noitada de Virada Cultural. O forte sol fez com poucos se arriscassem a assistir os cariocas do DoAmor no Pátio do Colégio, às 12h30. Parece faltar um vocalista ao grupo, mas mesmo assim eles deixaram no ar a idéia de que o som da banda deve funcionar – e muito bem – em uma casa noturna. Ao sol do meio dia, porém, pouca coisa funcionaria além de uma gelada cerveja.
14h – Na Rua Barão de Itapetininga, punks se revezavam em uma homenagem ao Clash: Mingau (365/Ultraje), Clemente (Inocentes), Redson (Cólera) e Ari (365) fizeram um bê-á-bá de hits clashianos com ótimas versões para “Guns of Brixton”, “Complete Control”, “Train In Vain”, “Tommy Gun” e “Rock The Casbah”, entre outras. Luiz Thunderbird engrossou a jam session tocando Chuck Berry e Joelho de Porco, e a “bagunça” terminou com Wander Wildner subindo ao palco para cantar Sex Pistols (“Lonely Boy” e “I Wanna Be Me”), Ramones (“I Believe In Miracles”) e? Replicantes (“Surfista Calhorda”). Os Inocentes fecharam a tampa com “Pânico em SP” e “Pátria Amada”.
15h – Após devorar um dos melhores (pra mim e para o Guia da Folha, o melhor) sanduíches de mortadela da cidade (com queijo, vinagrete e bacon na Casa da Mortadela, esquina da Ipiranga com a São João), acompanhado de um copo de mate com guaraná (do Rei do Mate quase em frente), me reanimei para sambar ao som do maior cabide de empregos da música brasileira, a Orquestra Imperial, que fez a sua tradicional festa baile recheada de hits (“Ereção”, “Supermercado do Amor”, “Artista é o Caralho”, “Fita Amarela”, “Yarusha Djaruba” e “Ela Rebola”, entre tantas outros). O baixista Kassin, que estava no Japão, foi substituído por nada mais nada menos que Dadi, que ficou ali do lado de Jacobina comandando a baderna em forma de samba. Showzão.
16h – No Palco Independente, os gaúchos da Superguidis se apresentavam pela terceira vez em São Paulo, contrastando a excelência da primeira e antológica apresentação no Studio SP, dois anos atrás, com os desacertos das duas apresentações seguintes (esta inclusa). O show do Studio SP – perfeitamente equalizado – mostrou o quão a banda pode ser boa ao vivo, mas no palco do Pátio do Colégio, as guitarras ora falhavam, ora a voz sumia, ora a alça da guitarra de Andrio caia, prejudicando o excelente repertório mesclado dos dois álbuns do quarteto (mais uma inédita). Mesmo assim, canções poderosas como “Spiral Arco-Iris”, “Malevolosidade”, “Raio Que O Parta”, “Por Entre As Mãos” e “Mais Um Dia de Cão” sobrevivem aos problemas.
18h – Antes de chegar ao Palco Rock, para o show do Ultraje a Rigor, que fecharia a Virada Cultural, uma passada pelo Palco das Meninas para rever Fernanda Takai homenagear Nara Leão. Se soubesse que o Ultraje fosse atrasar tanto, teria visto toda a apresentação da Fernandinha, mas vi apenas cinco músicas e parti para arranjar um lugar para descansar os joelhos na área de imprensa frente ao Palco Rock. Com um atraso de aproximadamente vinte minutos, Roger Rocha Moreira assumiu a guitarra para – o que era esperado – tocar a integra do disco “Nós Vamos Invadir Sua Praia”, mas não foi bem isso que aconteceu.
Roger perdeu a oportunidade de tocar seu álbum mais clássico faixa a faixa (como normalmente ocorre nestes shows homenagem) optando por uma apresentação tradicional do Ultraje e Rigor, dessas que se vê em qualquer esquina, incluindo no repertório covers de Ramones e Black Sabbath (Roger, “Paranoid” não é do Ozzy, ok) em meio ao seu caminhão de hits. Sem o apelo da homenagem ao disco (a participação de Lobão tocando bateria na faixa título não conta), o Ultraje fechou a Virada Cultural fazendo mais do mesmo (se fosse playback com o áudio de um outro show qualquer, poucos perceberiam).
O pior, porém, ficou para o final: na volta do bis, Roger e Sérginho Serra fizeram uma longa jam session como introdução para “Marylou”, cansando um público já muito cansado (sem se atentar que a banda estava fechando um evento de vinte e quatro horas). Quando deixei o local, decepcionado, eles ainda não haviam tocado “Eu Me Amo”, “Se Você Sabia” e “Jesse Go” (as duas últimas nem devem ter entrado no show), jogando um balde de água fria sobre uma ideia que parecia genial. Uma pena. Era só Roger e o gol vazio, e ele conseguiu chutar na trave.
Apesar da decepção do Ultraje a Rigor, o saldo final da Virada Cultural foi extremamente positivo com um público, estimado pela Prefeitura, de mais de quatro milhões de pessoas. Amigos falaram entusiasmadamente do show de Sá, Rodrix e Guarabyra no Theatro Municipal. O próprio Luiz Melodia fez uma apresentação de marejar os olhos. A imagem que fica, porém, são as quase duas mil pessoas aplaudindo de pé o músico, as outras centenas cantando as canções do Vanguart, as duas dezenas de jovens esperando por Mallu Magalhães, e o mar de gente que tomou a Avenida São João durante os shows de Gal Costa, Zé Ramalho, Os Mutantes, Orquestra Imperial e Jorge Ben Jor. Agora é esperar pela 5ª Virada Cultural, em 2009. E descansar os joelhos. Vou ali pegar uma bolsa de gelo e já volto.
Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– Virada 2007: Paulinho da Viola, Maria Alcina, Garotos Podres (aqui)
– Virada 2008: Luiz Melodia, Vanguart, Tom Zé, Ultraje (aqui)
– Virada 2009: Wando, Odair José, Los Sebozos Postiços (aqui)
– Virada 2010: Céu, Tulipa Ruiz, Raimundos (aqui)
– Virada 2012: Man Or Astro-Man, Defalla, Titãs, Pinduca (aqui)
– Virada 2014: Ira!, Juçara Marçal, Falcão, Pepeu Gomes (aqui)
– Virada 2015: 51 shows que o editor do Scream & Yell gostaria de ver (aqui)
Olá, Marcelo! Sou do RJ e também estive na Virada Cultural, esse maravilhoso evento que só uma cidade com a diversidade e o Punch de São Paulo poderiam oferecer (no RJ gastam tudo só no carnaval ou com eventos somente na Zona Sul, em frente ao mar, onde todos já têm eventos de sobra). Vi alguns dos shows que v. comentou: Superguidis, que apesar das falhas de som e tudo, foi sensacional: Gal Costa, que está cantando como nunca; Cachorro Grande, que consegui ver todo e de uma distância bem razoável, bom show de rock. No palco independente, vi o LOS PORONGAS, que eu não conhecia, mas já tinha ouvido falar, gostei bastante. Vi o The sinks, de RN, que poderia ser melhor se cantassem em portugues. E vi Inocentes, com thunderbird e com Vander Wildner, sensacional, só mesmo em SP eu pude ver os Inocentes tocando ao vivo. Enfim, um evento maravilhoso, no qual estarei no ano que vem, com certeza. Um abraço, e continue nos trazendo novidades nesse seu blog, que é sensacional. Um Abraço, Paulo.
olha eu ná última foto!
parabéns pela cobertura, e até a próxima virada 😉
imagino seu estomago e a saúde depois de comer tanta porcaria…
Pô, minha Virada não foi tão intensa, mas estive em pelo menos dois roteiros seus e que, na minha opinião, renderam boas lembranças: Vanguart e Wander Wildner versão punk. Abraços!
PS – Pastel de feira sem vinagrete é sacanagem.