por Marco Antonio Barbosa
A pergunta é recorrente e pertinente: num país que não dá saneamento a seus cidadãos, há espaço (e verba) para se produzir cinema? E suscita outras. É com dinheiro público? E que diabo de cinema é esse? É bom, ao menos? Quem é que está fazendo, e como está se fazendo? E por que cargas d’água FAZER UM FILME para tentar responder a essas questões?
“Saneamento básico, o filme” é um filme para explicar, aos leigos, como funciona o cinema. Mais: é um filme para explicar, aos leigos, como funciona o cinema brasileiro. Mais ainda: é um filme para explicar, aos leigos, como funciona o Brasil. Ou como não funciona, dá no mesmo. Jorge Furtado parece ter se cansado de ser “apenas” o melhor contador de histórias de nosso cinema e parte aqui para plagas mais ambiciosas.
Ele consegue fazer malabarismos com múltiplas camadas de metalinguagem e o faz sem sombra de cabecismo ou enrolação. De quebra, dá conta de uma ambição antiga de nossa sétima arte, que persiste desde milnovecentoseglauberrocha – metaforizar na tela a identidade nacional e suas contradições, vícios e virtudes. A diferença é que faz isso num estilo chocantemente claro e fluido, sem discurseiras, alegorias gratuitas ou panfletarismo esquerdista. Furtado acerta no alvo ao demonstrar que o cinema brasileiro e suas mazelas são um microcosmo bastante plausível da sociedade brasileira e suas mazelas.
A cena pode estar acontecendo agora em qualquer prefeitura. A comunidade precisa de uma obra de saneamento. A prefeitura diz que não tem dinheiro. Mas há uma verbinha não utilizada que, originalmente, seria para a produção de um vídeo. Um filme. Idéia genial: faz-se um vídeo sobre uma obra de saneamento público, gasta-se a verba na obra e filma-se com o que sobrar. Simples e complicado como o Brasil. O famigerado “jeitinho”, que tanto pode atrapalhar quanto ajudar, é a mola-mestra não só da trama do filme, mas também da visão que Furtado constrói de nossa nação. É nosso componente fundador, definidor, fundamental.
É claro que o olhar – ah, como eu odeio esses termos – “aparelhado” vai extrair muito mais do filme. Quem está por dentro da mumunhas do cinema nacional vai se deliciar de forma particular com as sucessivas cargas de ironia injetadas no roteiro. Tragicômico é pensar, mesmo por um instante, que as coisas realmente funcionam assim: diretores que não sabem o que é direção, atores que não sabem atuar, roteiristas que não entendem a necessidade de se ter um roteiro em mãos. E tudo isso com dinheiro público!
Furtado foi extremamente malandro ao fazer de seus personagens um bando de jecas bem-intencionados (à exceção do Zico interpretado por Lázaro Ramos). Seria tentador fazer um film-à-clef apontando, disfarçadamente, figurões da nossa incipiente indústria. Mas aí já seria difícil fazer desses camaradas personagens simpáticos… E também pisca o olho ao mostrar a burocracia e a incompetência do Poder Executivo a partir de uma prefeiturazinha perdida. Para que ir ao Planalto? Faça besteira localmente, atrapalhe seu país globalmente, essa é a mensagem.
Mas mesmo os não-ligados nas mumunhas terão muito o que aproveitar de “Saneamento Básico”. A citada capacidade de Furtado de narrar bem uma história está à toda aqui. Diálogos deliciosos, interpretados com muito gosto por um excelente elenco, se distribuem em uma série de cenas hilárias. As dobradinhas entre Fernanda Torres & Wagner Moura e Paulo José & Tonico Ferreira estão ótimas. Furtado conjuga bem a necessidade de um ritmo rápido, movido a diálogos, quase televisivo, com outras seqüências mais amplamente “cinematográficas” – e chega a um belo momento de pathos ao acompanhar o personagem de Wagner Moura em seu último passeio na motocicleta que adorava… a qual foi vendida para bancar a finalização do bendito filme! Na trilha sonora, brega mas genuninamente tocante, “Io che amo solo te”, de Sergio Endrigo. (Ah, e Camila Pitanga nunca foi tão bem fotografada, se é que vocês me entendem.)
É raro assistir a um filme nacional que se aproxime tanto de um real e concreto comentário social (e artístico) e, ao mesmo tempo, seja tão divertido e descontaminado de ideologias capengas. O mais encantador é notar como Furtado faz com que tudo pareça são fácil, tão sem esforço. Sim, saneamento básico é importante. Mas “Saneamento básico” também.
– Marco Antonio Bart (@bartbarbosa) é jornalista e músico. Conheça o projeto Borealis e também seu canal no Medium: https://medium.com/telhado-de-vidro