texto de Marcelo Costa
Sofia Coppola é uma diretora que gosta de investigar o vazio. Em seus três filmes, “Virgens Suicidas”, “Encontros e Desencontros” e o mais recente, “Maria Antonieta”, a filha do senhor Francis foca na ausência para criar seus roteiros, e ela consegue seu intento de forma brilhante na ótima estréia, e, principalmente, no excelente “Encontros e Desencontros”, em que a história na tela era a história da própria diretora, mas tropeça feio em “Maria Antonieta”, um placebo de biografia que acaba por não dizer nada sobre nada.
A rigor, “Maria Antonieta” era para ser o segundo filme de Sofia, mas acabou atropelado por “Encontros e Desencontros”, que se mostrou menos dificultoso em sua conclusão, e acabou por levar a diretora ao seu primeiro Oscar. Há algumas semelhanças entre estes dois filmes, notadamente a trilha sonora ‘muderna’ e a sensação de superficialidade das relações humanas. Em um, a personagem principal está presa em um casamento infeliz. No outro, o casamento – em forma de barganha – é o de menos: a própria sociedade é responsável pela infelicidade da moça.
No primeiro caso (“Encontros e Desencontros”), a história funciona a perfeição, muito porque o casamento está ali, na frente do nariz do espectador, e ganha contornos muito mais profundos na relação com o personagem de Bill Murray, que serve não só para relativizar a relação de infelicidade da personagem principal de Sofia Coppola, como também divide com ela o peso dos relacionamentos humanos quase desfeitos. No segundo caso, porém, faltou o segundo eixo narrativo para justificar as atitudes do primeiro. Ao centrar sua câmera no mundo cor-de-rosa da corte real, e ignorar o povo, Sofia tirou do público a capacidade de entendimento, e fez questão de ignorar (ou esqueceu) dados essenciais que ajudassem o espectador a desenhar em sua cabeça o real (com o perdão do trocadilho) personagem central.
Maria Antónia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena, arquiduquesa da Áustria e rainha consorte da França de 1774 até 1789, foi entregue (leia-se: casou) ao delfim francês Luís (futuramente o rei Luís XVI) em 1770 quando tinha 14 anos. Este demorou sete anos para consumar o casamento. Neste período, aos 18 anos, assumiu a coroa francesa com a morte do rei Luis XV. O reinado de Maria Antonieta e Luís XVI durou 15 anos, quando ambos foram depostos no auge da Revolução Francesa (1789), e guilhotinados quatro anos depois, em 1793. Atenção: guarde essas informações (e procure outras), pois nenhuma delas está no filme.
Sofia fechou seu olhar sobre a personagem de Maria Antonieta, e esse é um dos pontos questionáveis da adaptação. Ao tentar mostrar o mundo superficial em que a rainha vivia, Sofia deixou de situar o roteiro na história. De acordo com que a trama se desenrola, o espectador pouco sabe sobre o que está acontecendo fora da corte, e mesmo episódios interessantes acontecidos debaixo da coroa, como o caso do colar de diamantes (ver wikipedia), não são esclarecidos a contento pelo roteiro deficiente.
Assim, conforme a trama vai se encaminhando para o seu final, perguntas começam a saltar no colo do público: “Oras, por que ela era tão odiada? Por que a guilhotina?”. Talvez “porque ela esbanjava muito”, algo que o roteiro tenta impor a força, e não soa plausível, afinal, todo e qualquer reinado foi marcado por luxo e gastos (e nem por isso Dom João XI, Dom Pedro I e outros foram parar na guilotina – e olha que o caso destes citados seja talvez bem pior). Porque ela traiu o marido é outra daquelas justificativas “faça-me rir”, já que a devassidão sempre caminhou lado a lado com a coroa real, onde quer que fosse (no filme, o Rei Luís XV compra um título de nobre para uma prostituta, que vive com ele até seus últimos dias, para depois ser enxotada da corte; o próprio cardeal Luís Rohan tinha fama de devasso – e isso não está no filme).
O que tudo isso acima propõe é que falta História em “Maria Antonieta”. Ao se recusar a ler a famosa biografia escrita por Stefan Zweig – por considerá-la rigorosa demais – e optar pelo livro de Antonia Fraser, que faz da rainha um personagem mais humano, Sofia Coppola excluiu de sua adaptação todo um mundo externo que precisava ser exposto para justificar a verossimilhança da história (ou História). Fica pouco claro na película que Maria Antonieta exercia forte influência política sobre Luís XVI (como dizem os livros e reforça a versão de Jean Renoir em “A Marselhesa“, de 1938), a ponto de desautorizar as reformas liberais propostas pelos ministros do rei.
Estudiosos contam que ela recusou as possibilidades de acordo com os moderados, e procurou que o rei favorecesse os extremistas para inflamar ainda mais a batalha. Tudo isso está de fora do filme. Apesar de ser baseado em uma biografia, Sofia Coppola focou no vazio de Maria Antonieta e esqueceu a História. Desta forma, o filme não funciona como adaptação e nem é verossímil. Tampouco funciona como invenção. Os franceses vairam o filme em Cannes. Eles sabem que a História é bem diferente.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.