Cinema: “Pecados Íntimos”, a criança que você esconde dentro de si mesmo não sabe, mas precisa ver esse filme. Cuide dela.

  

texto por Marcelo Costa

Sarah é casada com Richard. O casal tem uma filha pequena, Lucy. Sarah é pós-graduada em literatura inglesa, enquanto a profissão do marido – nas palavras da própria – é mentir, uma outra maneira de dizer que ele é publicitário. Após o casamento, Sarah mudou-se para a casa em que Richard já vivia, e o único ambiente que conseguiu – pra chamar de seu – foi um quartinho, local em que ela passa a maior parte do tempo. Com um punhado de sonhos guardados dentro da alma, Sarah vê seu tempo livre esvair-se em cuidados com a pequena (que ela não sabe lidar nem amar), enquanto vive um relacionamento em que o amor deixou de existir, se algum dia existiu. Corte.

Brad formou-se em Direito, mas não consegue passar na prova da Ordem dos Advogados. Ele já tentou duas vezes, e fracassou. Sua vida atual se resume a cuidar do filho pequeno enquanto sua esposa – a documentarista Kathy – batalha pelo pão de cada dia. A rotina de Brad é levar o filho ao parque, estudar para mais um ano de prova da ordem dos advogados, e desejar sua mulher, que após o nascimento do pequeno Aaron não sente a mesma atração de antes pelo marido. Com o filho dormindo entre eles, o peso da obrigação de passar na prova, e a situação ao inverso vivida em casa (a esposa sustentando a casa e ditando o que deve ser comprado ou não), Brad vive uma vida sem foco e sem prazeres.

Brad (Patrick Wilson) e Sarah (Kate Winslet) formam o núcleo principal do longa “Pecados Íntimos”, segundo filme de Todd Field, que surgiu para o público com o mediano (mas indicado ao Oscar em cinco categorias) “Entre Quatro Paredes”. Se faltava ao primeiro filme uma boa dose de emoção, um enredo que fugisse do óbvio, e algo que pegasse o espectador pelo colarinho e o chacoalhasse, “Pecados Íntimos” surge como um grande avanço na cinematografia do diretor. E a ótima atuação de Kate Winslet nem pesa tanto na positiva equação final, já que a força do filme está intrinsicamente amarrada ao seu bom argumento, que joga na cadeira do cinema temas como pedofilia, adultério e sexo virtual, para mostrar o quão somos (e seremos) crianças lidando com os problemas do mundo.

Um dos pontos interessantes da trama é a opção do diretor em usar um narrador em off para abrir coração e alma de seus personagens, o que dá um certo tom literário ao que está sendo exibido como imagens na tela. Esse formato rende algumas boas passagens, e serve para manter intocada a inocência dos personagens, quase todos afundados até o pescoço em problemas pessoais, sem saber ao menos como lidar com a situação. Como diz o título original do filme, seus personagens são crianças pequenas (“Little Children”) que assumiram responsabiidades que não conseguem dar conta. Reside, nesta última linha, a grande beleza do filme: mostrar o quanto seremos, eternamente, crianças lidando com um mundo maior do que nós.

Se soa perfeito em sua proposta temática, sua execução cinematográfica, e sua conclusão prática, “Pecados Íntimos” só fica devendo em comparação a outros filmes recentes do gênero. Expor as mazelas da classe média norte-americana virou objeto de fetiche de vários cineastas nos últimos anos. A forma como cada um olha para o sonho americano pode até ser diferente, mas as narrativas de “Tempestade de Gelo” (Ang Lee, 1997), “Beleza Americana” (Sam Mendes, 1999), “Réquiem Para Um Sonho” (Darren Aronofsky, 2000) e “Magnolia” (Paul Thomas Anderson, 1999) se esbarram em vários momentos. Numa comparação rápida, “Pecados Íntimos” está muito próximo de “Tempestade de Gelo”, e a esperança na vida retratata no final de ambos os filmes é bastante representativa do modo parecido de olhar o mundo dos dois diretores.

Mesmo assim, há espaço para o cinismo cruel de “Beleza Americana” (principalmente no culto a esposa feito por Brad, e narrado magistralmente em off quando a amante questiona a beleza da “adversária”) e para a grandiloquência de “Réquiem Para Um Sonho” (tanto a cena principal da piscina quanto a que flagra um marido se masturbando frente a tela do computador carregam nas tintas, e são ótimas exatamente por isso), que inclusive cedeu a deliciosa Jennifer Connely para o papel de esposa-que-trabalha-demais-e-não-dá-atenção-ao-marido-e-é-traída. E o grande climax do filme – que surge quando todas histórias paralelas se desmembram – é muito bem contruído, mas desde que Paul Thomas Anderson cismou de fazer chover sapos será difícil qualquer cineasta simbolizar com tamanha poesia e precisão a angústia e agonia que abraçam – em um mesmo momento – os perdidos e os desesperados desse mundão de Deus.

As comparações não diminuem a qualidade de “Pecados Íntimos”, que merecia um lugarzinho entre os cinco filmes que disputam a categoria principal do Oscar (provavelmente no lugar de “Pequena Miss Sunshine”, um bonitinho filmezinho indie que está longe de ser grande cinema), mas se viu relegado a apenas três categorias, sendo que a ótima atuação de Kate Winslet vai encontrar pelo caminho a majestosa Helen Mirren. Como o Oscar ousa errar mais do que acertar, fique atento para Todd Field e seu “Pecados Íntimos”. A criança que você esconde dentro de si mesmo ainda não sabe, mas precisa ver esse filme. Cuide dela.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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