por Marcelo Costa
“Possuo um talento especial para imaginar buracos, todos bem negros, profundos, voraginosos, e teria mesmo descrito para Rachel uma variedade enorme de grotas e cavernas, subterrâneos e frinchas, se minha vontade de dizer algo não fosse sempre engolfada por um sentimento profundo de desânimo”.
Estamos na página 10 e nosso companheiro narrador já entrega parte importante do seu mundo. Ele é um maestro conceituado, porém, em dúvida constante sobre a fidelidade de sua parceira, uma violinista trinta anos mais jovem. A relação entre este casal constrói “Valsa Negra”, quinto romance da carreira curta, porém, altamente recomendada, da escritora Patrícia Melo.
Após uma belíssima estréia com “Acqua Toffana” (1994), livro que interligava duas histórias cheias de sangue, sexo, violência e veneno, Patrícia conquistou a mídia e o público com o personagem Máiquel de “O Matador” (1995), livro que ganhou uma boa versão cinematográfica com roteiro assinado por nada mais nada menos que Rubem Fonseca. O escritor foi influência direta sobre “O Elogio da Mentira” (1998), livro mais denso, mais comentado e mais difícil da escritora. Em seguida, foi a vez de Reizinho no absurdamente genial “Inferno” (2000).
Em “Valsa Negra”, por sua vez, Patrícia Melo mergulha com olhos abertos no profundo mundo dos desajustados do amor e nos leva a vasculhar todo o oculto daqueles que se entregam a paixão. Nada melhor do que a epígrafe do livro, um verso de Catulo, para resumir: “O ódio é indistinguível do amor”. É claro que há diferenças, e cabe ao leitor entender o universo surreal dos apaixonados da maneira que melhor lhe convir, mas que ambos os sentimentos se confundem quando absurdamente absorvidos tanto Catulo quanto Patrícia tem razão.
Em suas páginas iremos conhecer a alma de um maestro atormentado. A certa altura ele diz: “A verdade é que não se pode pensar em paz quando se casa com uma mulher trinta anos mais jovem”. Se a idade não bastasse, nosso querido Maestro ainda tem que enfrentar o problema da religião. “Você é um tipo bem subequatorial, ela disse (…) Às vezes me perguntava se um dia Marie me perdoaria pelo fato de eu não ser judeu”, pensa.
Estas duas diferenças básicas poderiam muito bem ser deixadas de lado se nosso narrador não sofresse de uma doença, uma doença física, como o câncer. A mesma doença que havia acometido Otelo, o Mouro de Veneza. E José, da ópera Carmen. E Freud. “A vida da mulher dele era um inferno”, diz o analista do maestro, completando: “Sabia que Frank Sinatra certa vez interrompeu um show para telefonar para Ava Gardner?”.
É esse universo que o leitor encontrará em “Valsa Negra”, um livro pesado, denso e tenso. Poeticamente palpável e dolorosamente conhecível. Desde sua capa, violentamente negra, até sua última página, tristemente previsível, “Valsa Negra” transpira boa literatura, com ritmo vertiginoso, palavrões e muita realidade.
Patrícia traduz a perfeição os detalhes de uma orquestra. As passagens de ensaios, apresentações ou mesmo os comentários sobre obras, artistas e o “mundinho” dos músicos clássicos compõe um perfeito fundo para uma obra decididamente cruel. E apaixonada. E irônica. Ela chega a fazer rir quando o maestro, ranzinza que só ele, diz, após uma dissertação de uma amiga sobre um quadro, “que ninguém quer falar de futebol com um maestro”.
O personagem Marie, colocado em segunda posição pela narrativa, tem seus atrativos. É provocativo, apaixonado e, também, cruel. Joga o jogo do amor e da sedução sem conhecer os limites do parceiro. Mas quem conhece os limites do parceiro? Quem confia? Quem acredita? O amor é uma doença? Quem ama e quem odeia? Não é a mesmíssima coisa? “Valsa Negra” além de um excelente romance, pode até soar revelador. Tudo depende de como você ama, caro leitor. E como você ama.
“Não eram nem dez horas da manhã quando deixei o apartamento. A cidade estava mais cinza, eu não me sentia disposto. Entrei no carro, olhei para o céu. Seria um dia ruim”.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.