texto por Trissomie
“Filme mexicano? Quase três horas de duração? Sobre cachorros? Com amor no título? Tô fora”. É mais ou menos o que se ouviu sair de muita boca precipitada por aí. Tudo bem, México e amor são palavras que quando muito próximas nos fazem lembrar daquelas novelas de títulos impagáveis que o SBT compra a toque de caixa, é verdade.
Nessa hora muita gente nem quer saber se o tal “Amores Brutos” (“Amores Perros”, no original, lembrando que perro é cachorro em espanhol) ganhou prêmio da Mostra Internacional ou se foi indicado como filme estrangeiro ao Globo de Ouro e ao Oscar. E o medo de pagar ingresso e dar de cara com a Maria-não-sei-das-quantas e seu penteado de baile de formatura chorando pelo amor de Ramón, o bigodudo galanteador?
Pois bem. Esqueça novelas, estereótipos, prêmios, tudo. O diretor Alejandro González Inãrritu e seus 150 minutos de amores realmente brutos sem dúvida fazem valer o ingresso. Contando três histórias distintas porém interligadas, o filme conecta diferentes mundos através de um acidente de carro onde se envolvem Octavio (Gael García Bernal), um rapaz metido com apostas ilegais em rinhas de cães, e Valeria (Goya Toledo), uma celebridade do mundo da moda. A principal testemunha é El Chivo – O Bode (Emilio Echevarría), ex-guerrilheiro, hoje mendigo e matador-de-aluguel. Três personagens, três mundos, três histórias. O lugar comum: a brutalidade do amor.
Valendo-se das diferenças entre a atmosfera de cada história, o filme encontra equilíbrio entre a ferocidade da primeira, um thriller com direito a espancamentos e perseguições com carros, a naturalidade e fluidez da segunda, que provavelmente nem precisaria de diálogo algum para se fazer presente na balança, e a introspecção e o suspense da terceira, que fecha o ciclo de forma sublime. Assim sendo, o diretor consegue pintar o amor com cores completamente distintas para, ao contrário, mostrar a universalidade do mesmo. Muda a roupa e o tipo do amor, mas a visceralidade e a essência revelam-se as mesmas. Para completar, o modo como o destino das personagens é traçado ao longo do roteiro a partir de mudanças causadas pelo relacionamento entre elas e seus cães é sensacional, ainda que isso possa inicialmente passar desapercebido para o espectador.
Não há muita referência a ser dada em relação ao elenco, pois é bem provável que qualquer ator mirim iraniano seja mais conhecido do que qualquer um dos execelentes atores de “Amores Brutos”. Basta dizer que as atuações são no mínimo satisfatórias, isso para não correr o risco de pecar pelo exagero e classificar todas como ótimas, tentação que certamente é despertada em grande parte do público.
Gael García Bernal, o jovem Octavio, esbanja talento e cara de bom moço, além do jeitão romântico de galã latino. Goya Toledo, a loirona de pernas longas no papel da modelo Valeria, lembra uma Rebecca De Mornay menos psicopata. Emilio Echevarría, o mendigo mercenário de personalidade e passado complexos, tem atuação impecável e é realmente a estrela do filme. Talvez nem Sir Sean Connery teria feito um sujismundo tão convincente e de olhar tão expressivo. E ainda há lugar para boas interpretações em papéis coadjuvantes como o de um típico dono de casa de apostas clandestina, um amigo meio clubber, um romântico infiel, um yuppie, e por aí vai. Além, é claro, de cães. Vários cães.
O filme mostra-se dinâmico, principalmente quando alterna entre uma história e outra. Da mesma forma, consegue ser violento sem ser gratuito. Entre tragédias, romances e traições de vários tipos, há também espaço para algumas boas risadas. Ao contrário do que pode-se imaginar, o espetáculo é urbano e não há regionalismo algum. Fora a locação – a Cidade do México – e o idioma espanhol no qual o filme é falado, tudo é tão internacional quanto qualquer produção hollywoodiana. Portanto, não espere um Central do México com estações de trem e analfabetos ditando cartas.
Em 90% do filme o clima é de caos completo. Inãrritu e seu roteirista, Guillermo Arriaga, não dão um segundo de esperança ao espectador e passam todo o tempo desenhando famílias desestruturadas vivendo em uma cidade caótica. A família, inclusive, é o foco principal dos ataques do roteiro com a traição de irmãos em foco. Porém, após jogar o público na vala do final dos tempos, “Amores Perros” se vê abraçando um final moralista, cuja saida para a sociedade, defendida pelo personagem El Chivo, é o abandono da cidade grande e a volta para o campo. Muitos cidadãos de São Paulo vão entender o recado.
Da experiência em si pode-se tirar pelo menos três conclusões, para continuar no embalo do número. A primeira delas é que novela mexicana assusta mesmo, mas os filmes podem valer a pena. A segunda, e talvez mais importante, é que às vezes o amor pode aparecer de forma rude e tosca, mas nem por isso deixa de ser autêntico e belo. E, por fim, a mais inusitada. Um cachorro pode realmente mudar a sua vida.