por Marcelo Rubens Paiva
Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo em 1998
“Por uma Noite Apenas” é um dos melhores filmes que vi neste ano. “Two thumbs up” (dois polegares para cima), como dizem os americanos.
Não sei até que ponto interessa saber que “Por uma Noite Apenas” é um dos melhores filmes que vi neste ano. De repente, só vi porcaria. De repente, vi quase nenhum filme.
Nem sei se é assim que um crítico deve começar sua crítica. É uma opinião para lá de categórica. Como deve proceder um crítico? Como não sei, direi o que diria na mesa de um restaurante, com meus amigos:
“É imperdível. Até vejo de novo. Que elenco, que direção, que história linda, que filmão. Passe o sal…”.
É dirigido e roteirizado por Mike Figgis, que já tinha mostrado sua boa mão no filme “Despedida em Las Vegas”, outra produção “two thumbs up”. Max (interpretado por Wesley Snipes) é um publicitário rico. É casado com a bela Mimi (Ming-Na Wen). Mora em Los Angeles. Está em Nova York para visitar um amigo HIV positivo (Robert Dowley Jr.).
Nova York é o bicho. As comemorações dos 50 anos da ONU transformam a cidade num caos. Há vias bloqueadas, manifestações, hotéis abarrotados, táxis escassos. Max acaba perdendo o rumo. O avião.
Acidentes do cupido vão levando a se aproximar de Karen, engenheira espacial, também casada, tão sem rumo quanto ele.
Max já havia exibido sua propriedade moral ao recusar o convite de sua assistente para o sexo. Mas as coisas vão acontecendo, uma caneta que estoura, um convite para um concerto “sold out” (esgotado) que sobra, e Max e Karen vão se aproximando.
Karen é Nastassja Kinski. Existem duas mulheres com quem eu me casaria sem tremeluzir. Uma é minha mãe, por razões óbvias, afinal, sou normal. Outra é a Nastassja Kinski. Max também foi enfeitiçado (não pela minha mãe). E, detalhe, não é aquela Nastassja de outros carnavais, lascívia, com a libido escorregando pelas mãos. É Karen, de óculos, bem comportada, certinha.
Mas isso é só o começo. Sabe o que chama a atenção? Não há quase diálogos. Não há quase motivos. É um filme para se ver de lupa. O que acaba detonando o (desculpe a palavra) adultério são os detalhes, os esbarrões, os flocos de imagens, os lapsos. Nos lapsos está a verdade. Isso é Jung, não? Sincronismo…
Max trai porque a mulher o impede de fumar? Karen trai porque o marido tem um comentário preconceituoso involuntário? Droga, por que as pessoas traem? Por que acaba um casamento? Max volta para Los Angeles. Algo mudou nele. Até seu cachorro percebe. Mas nada mudou. Foi por apenas uma noite, apenas. Mas claro que mudou.
Um ano depois, o reencontro casual. A prova: tudo mudou, desde aquela noite. Virem-se, então. Nada é verbalizado. Afinal, quantos conflitos são exibidos, diariamente, graças à arquitetura das palavras? Livros, peças, novelas. Chega de palavras! Já encheu. Uma coisa nova, por favor.
Figgis conta a história por meio dos olhares. Que denunciam mais do que qualquer escaramuça do caráter. Se um olhar fala mais do que tantas palavras, para que ficar escrevendo diálogos? Isso é cinema. E quem joga com isso acerta ou erra. Figgis acertou. Não perca! E atente aos olhares.