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Dylan com café, dia 41: “Love and Theft”

Bob Dylan com café, dia 41: Nem a enorme quantidade de críticas elogiosas, nem os três Grammy’s e muito menos o número 10 na Billboard (o primeiro Top 10 de Dylan desde “Slow Train Coming”, de 1979) conquistado por “Time Out of Mind” (1997) satisfizeram Bob em relação à produção de Daniel Lanois, que ele resume no livro “Crônicas” como “turbulenta”. Ele também havia ganhado um Oscar em 2000 pela canção “Things Have Changed”, do filme “Garotos Incríveis”, e mesmo chegando aos 60 anos (em 24 de maio de 2001), não estava pensando em desacelerar. Muito pelo contrário: em seu novo disco, Dylan assumiria os riscos da produção (assinada com o codinome Jack Frost), que contaria com sua banda da Never Ending Tour e a busca sonora por algo mais leve e animado, mas como com Dylan nada é tão simples, “Love and Theft” foi lançado no fatídico 11 de setembro de 2001.

O crítico da Village Voice foi certeiro: “Se ‘Time Out of Mind’ era seu álbum sobre morte – não era, mas você sabe como as pessoas dizem que é – este é sobre imortalidade”. Fazia muito, muito tempo, que Dylan não soava tão à vontade em um disco cantando novas canções com ecos de jazz, blues, rockabilly e New Orleans, como na acelerada faixa de abertura, que desloca os personagens “Tweedle Dee & Tweedle Dum” de “Alice Através do Espelho”, de Lewis Carrol, para uma festa de Mardi Gras: “Eles estão pegando um bonde numa rua chamada desejo”, sarreia na ideia “Amor e Roubo” do disco (utilizada em diversas faixas). O clima muda totalmente na segunda canção (algo que se seguirá metodicamente até o fim do disco), “Mississipi”, uma suave recriação de uma sobra de “Time Out of Mind” que Dylan dizia que Lanois insistia em lotear de percussão, mas Bob a queria mais simples (antes de chegar aqui, inclusive, ela foi lançada num disco de Sheryl Crow). Já o rockabilly “Summer Days” provoca: “Não se pode repetir o passado… é claro que se pode!”. O clima volta a arrefecer elegantemente em “Bye and Bye”, se torna grandioso no blues de Chicago “Lonesome Day Blues”, baixa a guarda novamente no swingzinho de “Floater” até abrir as portas para uma das grandes canções do disco, a caipiríssima “High Water (For Charley Patton)”. Dylan segue batendo suavemente (“Honest With Me”, “Cry A While”) e assoprando (“Moonlight”, “Po’ Boy”, “Sugar Baby) num álbum elegante, primeiro volume de uma trilogia que se seguirá com “Modern Times” (2006) e “Together Through Life” (2009), mas isso já é assunto para outros cafés.

Ps 1: uma versão deluxe do álbum ganhou um segundo CD com duas então raridades: “I Was Young When I Left Home”, gravada em Minneapolis em dezembro de 1961, surgia pela primeira vez, mas será oficializada também no volume 7 das Bootleg Series. Já o take alternativo de “The Times They Are a-Changin'”, datado de 23 de outubro de 1963, nunca havia sido editado, e só consta deste lançamento. É uma versão mais lenta, menos militante e mais introspectiva do hino que deu nome ao terceiro álbum de Bob.

Ps. 2: O box triplo “The Bootleg Series Vol. 8 – Tell Tale Signs” exibe três versões diferentes de “Mississipi”, todas das sessões “Time Out of Mind”. Adoro a versão 3, para mim, a com melhor vocal de Dylan, mas a 2 também é bem interessante, e as três soam bem diferentes do floreio que Bob acrescentou à versão final presente em “Love and Theft”. Esse box ainda traz versões ao vivo de “High Water (For Charley Patton)” (bem guitarreira e muito próxima da versão mostrada no Brasil em 2008) e “Lonesome Day Blues”.

Ps. 3: “Love and Theft” foi ainda mais longe do que “Time Out of Mind” nas paradas batendo na 5ª posição do ranking da Billboard. O álbum também ganhou um Grammy na categoria de Melhor Álbum Folk de 2001.

Especial Bob Dylan com Café

abril 10, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 40: Royal Albert Hall

Bob Dylan com café, dia 40: A boa recepção e o sucesso do lançamento das “The Bootleg Series – Volumes 1/3” em 1991 abriu os olhos da Columbia Records para algo que pirateiros sabiam desde os anos 60: além de artisticamente revolucionário, o extenso material raro de Dylan era altamente vendável. Criou-se então uma divisão na gravadora para, arqueologicamente, pesquisar o acervo, e o primeiro lançamento que viria a tona seria a oficialização de um dos álbuns piratas mais famosos de todos os tempos, que começou a circular em vinil já no começo dos anos 70 com os nomes mais variados: “In 1966 There Was” (1970), “Royal Albert Hall Concert 1966” (1970), “Royal Albert Hall” (1971), entre dezenas de outros. A Columbia iria lança-lo pela primeira vez completo, e chegou a remasteriza-lo e a anunciar o projeto em 1995, mas decidiu engaveta-lo.

Como tudo que cerca a música de Dylan, a remasterização caiu nas mãos dos pirateiros, e novamente a festa se fez. A Columbia então retomou o projeto e, finalmente, em outubro de 1998 chegava às lojas num invólucro de luxo “The Bootleg Series – Volume 4: Live 1966 The Royal Albert Hall Concert”. Com um som muito melhorado e um livreto com fotos incríveis de época, um dos álbuns piratas mais desejados por fãs de Dylan em todo o mundo (Jimmy Page incluso) enfim via a luz do laser e a agulha do vinil de maneira oficial além de corrigir um equivoco: durante muito tempo pensou-se que o áudio desse show fosse o da apresentação no Royal Albert Hall em Londres, diante de toda realeza britânica, dos Beatles e dos Rolling Stones, mas, na verdade, era o áudio do show que ocorreu em Manchester, no Free Trade Hall, vulgo Royal Albert Hall, 10 dias antes. Vivendo no limite, constantemente chapado e parindo obras primas a cada minuto, Dylan passava por uma rotina traumática em seus shows da turnê de 1966.

A primeira parte da apresentação o trazia num set acústico, folk, solo. Já na segunda, Dylan subia ao palco eletrificado acompanhado pelos barulhentos Hawks, e era constantemente vaiado. O clima era tão tenso que havia boatos de gente armada no público pronta para alveja-lo durante o set elétrico. Extremamente simbólico, “The Bootleg Series – Volume 4: Live 1966 The Royal Albert Hall Concert” capta tudo isso em detalhes. Do silêncio respeitoso com que o público ouve na primeira parte versões absolutamente sublimes de “Visions of Johanna”, “Desolation Row”, “It’s All Over Now, Baby Blue” e “Just Like a Woman” ao início de caos assim que os Hawks disparam uma canção nunca gravada em estúdio por Dylan, “Tell Me, Momma”, que, segundo Jon Spencer, “isso é punk rock, cara”. Em “I Don’t Believe You”, Bob Dylan provoca: “A coisa costumava ser daquele jeito, mas agora é assim”. O público ri, nervosamente. A tensão só aumenta. Seguem-se, entre gritos da plateia, “Just Like Tom Thumb’s Blues” (“É possível sentir o gosto do suor e o cheiro do medo”, observa o biógrafo Brian Hinton), “Leopard-Skin Pill-Box Hat”, “One Too Many Mornings” (“Que soa como o mais violento clássico local entre United e City”, compara Hinton) e uma raivosa “Ballad of a Thin Man” (“Há um monte de Mr. Jones na plateia, um deles provavelmente com uma faca. Ou com algo ainda mais perigoso”, suspeita o biógrafo).

O gesto final desta apresentação caótica e histórica não poderia ter sido mais simbólico: a banda está afinando os instrumentos, preparando-se para alçar voo no último número da noite sob o barulho de uma plateia inquieta, que berra coisas desconexas até que, enfim, uma voz se sobressai na multidão: “Judas!”, alguém claramente grita. Aplausos efusivos irrompem no teatro. “Não acredito em você”, diz Dylan ao microfone. “Você é um mentiroso”, completa. Ele então se vira para a banda e ordena: “Play fucking loud!!!”. E “Like a Rolling Stone” surge como o Apocalipse em oito minutos vorazes. O show termina entre vaias e aplausos. Não há pedidos de bis. Não haverá bis. De maneira surrealista, “Deus Salve a Rainha” ecoa no ambiente. Este show termina e, após ele, Dylan faria apenas mais cinco apresentações (as duas últimas no Royal Albert Hall londrino) e interromperia a turnê de maneira abrupta, devido a um acidente de moto. Traumatizado, ele só voltaria a fazer uma turnê 8 anos depois, em 1974. Primeiro registro oficial em áudio desse ano doido (o histórico registro em vídeo – acima – foi feito por  D.A Pennebaker, que havia filmado a turnê europeia de Dylan em 65 para o documentário “Don’t Look Back”, lançado em 1967, e acompanhado Dylan na turnê de 66 com as filmagens permanecendo inéditas até 2004, quando foram encontradas numa pilha de filmes danificados pela água recuperados do cofre de Dylan e inclusas no documentário “No Direction Home”, de Martin Scorsese), este show, posteriormente, ganhou relançamento no box completista “The 1966 Live Recordings”, lançado em 2016, com 36 CDs compilando 23 shows desta turnê que sacudiu a música moderna. Um clássico. Vá atrás!

Especial Bob Dylan com Café

 

abril 8, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 39: Time Out of Mind

Bob Dylan com café, dia 39: Após o lançamento de seu “Unplugged MTv”, Dylan seguiu estrada afora com sua banda na Never Ending Tour. Foram 115 shows em 1995 e 84 em 1996, com uma pausa entre novembro e fevereiro de 1997. Naquele inverno nevado em sua fazenda no Minnesota, Bob escreveu uma série de novas canções que, segundo ele, partilhavam de um mesmo ceticismo: “São canções mais preocupadas com as realidades duras da vida do que com o idealismo cor-de-rosa e cintilante tão popular nos dias de hoje”. Após sete anos sem material inédito, Bob entrou em estúdio em janeiro de 1997 escudado por Daniel Lanois para esboçar os arranjos do novo material. Eles não trabalhavam juntos desde “Oh Mercy” (1989), e o clima no estúdio em muito lembrava aquelas sessões, com Dylan e Lanois discutindo intensamente sobre o rumo de cada uma das canções, num processo de queda de braço criativo que, normalmente, terminava no estacionamento, com Bob e Daniel argumentando suas ideias longe da banda. No início das sessões, Dylan mandou uma declaração por escrito à sua gravadora: “Antes de gravar essas músicas, Daniel e eu conversamos sobre elas, sobre como deveriam soar longas. A música em si possui um efeito tão potente quanto às letras, e isso é proposital. Trata-se de um álbum performático, não poético, literário. Sentimos a música, mais do que pensamos nela”.

As sessões aconteceram entre 13 e 28 de janeiro de 1997, e a banda tocava o novo material ao vivo cerca de 12 horas por dia – o bruto de canções inéditas gravadas renderia facilmente dois novos discos. Lanois seguiu na produção enquanto Dylan dizia: “Acho que esse novo disco pode ser chocante por sua aspereza”. Então em maio Bob foi diagnosticado com histoplasmose, uma micose sistêmica que afeta órgãos internos (principalmente pulmão) e é causada por um fungo transmitido por aves e morcegos. O homem cancelou dois meses de shows da Never Ending Tour e, por muito pouco, “Time Out of Mind” (1997) não foi um disco póstumo. Em agosto, porém, Dylan já estava recuperado e de volta à estrada, e o novo disco, lançado em setembro, receberia os maiores elogios da carreira de Dylan desde “Blood on The Tracks” (1975). As críticas variavam de “73 minutos de genialidade” a “Dylan em seu ápice criativo” e “o álbum se atreve a tratar de mortalidade e é chocante em sua amargura”. A definição do biografo Brian Hinton para a esplendorosa faixa de abertura, “Love Sick”, é tão primorosa quanto à música: “Soa como psicodelia desacelerada, ‘I Put A Spell On You’ tocada em um hospício”.

Outra boa definição de Brian: “A canção ‘Dirt Road Blues’ é como se Charley Patton tivesse vivido o bastante para gravar nos estúdios da Sun Records nos anos 50”. Em “Standing In The Doorway”, uma suavemente desesperada canção de abandono anestesiada por melancolia, Bob canta: “Eu sei que a misericórdia de Deus deve estar próxima”. Já “Million Miles” é um blues em marcha fúnebre enquanto “Tryin’ To Get To Heaven” inspirou uma das melhores canções de Marcelo Nova. Especialista em “emprestar” trechos de canções de outros artistas (muitas vezes canções inteiras), Bob incluso, ao ouvir esta canção, Nova titubeou: “Eu estava traduzindo ‘Tryin’ To Get To Heaven’, em que o Dylan diz que está tentando entrar no céu antes que fechem a porta, e fiquei dias pensando nisso até concluir: eu não quero entrar no céu. Daí surgiu a poderosa ‘A Balada do Perdedor’”. No r&b retrô “’Til I Fell In Love With You”, Dylan canta que sua casa está em chamas, e lamenta: “Achei que choveria, mas as nuvens passaram reto”. O primeiro anti-single do disco foi “Not Dark Yet”, uma fantasmagórica e maravilhosa canção sobre a desintegração de um relacionamento. “E, vamos ser sinceros, com tamanho deleite sobre sua própria amargura”, pontua Hilton. Para Emmylou Harris, essa é a melhor música já composta sobre… envelhecer. Calma, há mais: A próxima, “Cold Irons Bound”, ganhou o Grammy de 1998 como Melhor Performance Vocal Masculina (outros dois Grammys foram concedidos ao disco: Melhor Álbum do Ano e Melhor Álbum Folk), e Daniel Lanois dá um show colocando a voz de Dylan milésimos à frente dos instrumentos, rebeldes, nervosos, e tudo soa puro farrapo: “É tão triste ver a decadência da beleza”, canta Dylan, concluindo: “Mais triste ainda é sentir seu coração sendo arrancado”.

Com a banda na mesma pegada desconstruída, nervosamente jazzy & blues, “Can’t Wait” trata o amor como uma condenação. Para encerrar, a mais longa faixa cantada por Dylan em um álbum de estúdio, e assim que terminou a sessão de gravação de “Highlands”, um cara da gravadora perguntou: “Bob, você tem uma versão curta dessa canção?”. E Bob respondeu: “Essa é a versão curta!”. São 16 minutos e 32 segundos (e ele não estava brincando: há uma versão de 27 minutos dessa mesma canção!) de um blues lento que vai num crescendo suave enquanto Bob narra acontecimentos nonsense, como estar ouvindo Neil Young e ter “que aumentar o som”, ou estar em um restaurante em Boston sem ter ideia do que quer comer. É a típica canção interminável (Bob já fez várias dessas), em que o verso atual puxa um próximo verso e assim por diante, encerrando um álbum grandioso, marcado pela dor, pelo desamor e pelo envelhecimento. Sucesso de crítica e público, “Time Out of Mind” foi o primeiro álbum de Dylan no Top 10 dos mais vendidos da Billboard em quase 20 anos (o último havia sido “Slow Train Coming”, em 1979) e inaugura uma nova fase na carreira do bardo. Assim como “Oh Mercy”, Dylan, no entanto, não ficou tão satisfeito com o resultado da produção de Lanois (ou, como alguém certa vez escreveu – sobre “Chaos and Creation in the Backyard”, o último grande disco de Paul McCartney, produzido pelo genial Nigel Godrich: um bom produtor tira qualquer artista de sua zona de conforto, mas poucos grandes artistas estão dispostos a esse exercício de caos e criação), e passará a produzir ele mesmo seus futuros discos de estúdio.

Ps. Segundo o amigo @garrasverdes (do Selo 180) no Instagram:  “Em vinil, teve uma tiragem pequena na época do lançamento e ficou anos fora de catálogo. Custava uma fortuna. Mas a procura era tamanha que pintaram umas prensagens piratas (em vinil colorido/marmorizado). Alguns anos atrás o selo Music On Vinyl reeditou o LP duplo oficialmente”

Especial Bob Dylan com Café

 

abril 6, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 38: MTv Unplugged

Bob Dylan com café, dia 38: Após dois discos de covers de blues rurais, todos os fãs aguardavam um álbum de canções inéditas de Dylan, mas numa pausa da Turnê Sem Fim, Bob adentrou os estúdios da MTv em Nova York nos dias 17 e 18 de novembro de 1994 para gravar um programa Unplugged ao lado da banda que o escudava na estrada mais Brendan O’Brein (posteriormente multiplatinado produtor) no órgão Hammond, o que já entrega um acústico não tão acústico assim (quase praxe na série televisiva), ainda que Bob tenha sugerido apresentar-se solo ao violão – foi dissuadido pelos executivos da MTv. A versão em CD de “MTv Unplugged Bob Dylan” foi lançada em 1995 (o DVD só chegaria ao mercado em 2004), bateu na 23ª posição da Billboard e na 10ª no Reino Unido, e cativa em revisões que atualizam (e ás vezes até amaciam) o repertório do bardo para novas gerações (ao menos em versões oficiais, já que no próximo show ele poderia cantar e tocar tudo de uma forma diferente, novamente e novamente e novamente). Nos dois dias de gravação, Bob Dylan tocou 20 músicas sendo que 12 delas foram oficializadas em CD e DVD (entre outras, ficaram de fora “Everything Is Broken”, “I Want You” e ‘My Back Pages” – os bootlegs “Uncut Unplugged” e “Completely Unplugged” trazem os dois dias na integra).

“Tombstone Blues” (1965) abre o cortejo de forma mais animada e menos urgente do que a original. Na sequencia, “Shooting Star” (1989) mantém a beleza melancólica encontrada em “Oh Mercy”. Sem o impacto das guitarradas, e com o órgão brilhando, “All Along the Watchtower” (1968) ainda cativa. “The Times They Are A-Changin’” (1964) surge totalmente recriada: o que era ação na versão original tornou-se melancolia aqui. Primeira das boas novidade do programa, “John Brown” (1994), uma faixa de 1963 até então inédita, surpreende. “Desolation Row” (1965) soa menos desolada, “Rainy Day Women #12 & 35” (1966) mantém o arranjo original e “Love Minus Zero/No Limit” (1965) surge mais caipira (poderia até ter aparecido em alguns dos dois discos anteriores). Outra surpresa: “Dignity” (1994), sobra poderosa de “Oh Mercy”, ressurge vigorosa e acelerada. Já “Knockin’ on Heaven’s Door” (1973) soa ainda mais poeirenta do que a versão original enquanto “Like a Rolling Stone” (1965), inferior a versões anteriores, é jogada pra galera. Para encerrar, uma emocionante volta ao passado: “With God on Our Side” (1963), outra que troca a urgência de outrora por suavidade melancólica. Mudou o mundo ou mudou Bob? Na verdade, é natural: se com 20 anos queremos mudar o mundo, aos 40 apenas lamentamos melancolicamente o destino das coisas. Afinal, se viver é acumular tristezas, Bob “viveu” bastante e intensamente até aqui… Os dois próximos cafés ampliam o tema.

Especial Bob Dylan com Café

abril 4, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 37: World Gone Wrong

Dylan com café, dia 37: após a festança de 30 anos com 18 mil convidados no Madison Square Garden e muitos amigos no palco, Bob seguiu seu caminho solitário e se enfurnou, sozinho, em seu estúdio caseiro em Malibu para gravar mais uma leva de canções antigas nos moldes econômicos de “Good As I Been To You” (1992). Lançado em outubro de 1993, “World Gone Wrong” corrige alguns equívocos do álbum anterior tanto quanto soa menos gótico do que ele. Muita gente pegou no pé de Dylan por não creditar autores e fontes das 13 canções regravadas em “Good As I Been To You”. Por isso, em “World Gone Wrong”, ele surge didático num longo texto na contra-capa em que lança luz sobre onde conheceu e quem o apresentou a cada um destes blues rurais que integram o disco. A justificativa de Bob para dois álbuns em sequencia revivendo material caipira é semelhante a que deu para um crítico que o acusou de estar copiando Bruce Springsteen no final dos anos 70: “Não copio sujeitos com menos de 50 anos de idade”, disse. Quase 20 anos depois, Bob repete: “Só escuto música antiga e velhos cantores de blues e country. As pessoas deviam se voltar aos discos antigos para descobrir qual é o verdadeiro lance, pois até mesmo meus discos são de segunda geração”. Assim como fez no disco anterior, Dylan dá um show ao violão enquanto conta histórias antigas.

Na dolorosa “Love Henry”, uma garota mata o amor de sua vida a facadas já que ele não quis ficar com ela e um papagaio que presenciou o crime comenta: “Uma garota que matou seu próprio amor verdadeiro mataria um passarinho como eu”. O dedilhar denso de “Jack-A-Rose” conta a história de uma garota que é proibida pelo pai de se casar com um marinheiro, e se veste como um garoto para se alistar na guerra e seguir o amado. O final feliz é raríssimo nesse repertório – e comovente. Já “Blood In My Eyes” (que, segundo Bob no texto explicativo, é outra canção do álbum a se encaixar na “Nova Idade das Trevas”, que são os “tempos modernos” que estamos vivendo) ganhou até clipe. Em “Delia”, uma canção sobre um cara que mata uma garota que ganhava a vida em jogos de aposta e é condenado a 99 anos de prisão, Dylan parte o coração ao cantar “todos os amigos que já tive se foram”. A sobra de estúdio “You Belong To Me” apareceu na trilha sonora de “Assassinos por Natureza” (editada com as vozes dos personagens). No geral, são canções de amor e morte e desejo e solidão despidas de qualquer distração. É só voz, violão, uma gaita acolá, e, na maioria dos casos, tristeza. Na Mojo, Robert Wyatt definiu com perfeição: “Ouça o que esse homem fez e crie coragem. Como seria ótimo se todo mundo que está se esforçando para encontrar a própria voz parasse de se esforçar e usasse a própria voz”. #FicaDica

Especial Bob Dylan com Café

 

abril 3, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 36: 30th Anniversary

Bob Dylan com café, dia 36: em 1992, a Columbia Records decidiu preparar uma grande festa para comemorar os 30 anos de carreira de Bob Dylan. Esse evento, aliás, é o tema de abertura da excelente biografia de Howard Sounes, lançada no Brasil pela Editora Conrad em 2002: “Pelo jeito contido com que Bob perambulava sozinho por Manhattan, vestido como um vagabundo, podia-se pensar que seus dias de grande astro tinham acabado”, descreve Sounes. O evento, porém, foi marcado para o glamoroso Madison Square Garden e esgotou 18 mil ingressos em apenas uma hora (e olha que os preços eram proibitivos: entre US$ 50 e US$ 150, isso em 1992!). “A lista de convidados incluía não apenas antigos cantores folk com também superastros como Eric Clapton e George Harrison, amigos devotados de Bob, e durante os 10 dias que antecederam o show, limusines faziam o transporte de artistas entre hotel e estúdio, para ensaios”, continua Sounes. “Bob não tinha certeza se o show era uma boa ideia: ‘Será como ir ao meu próprio funeral’”.

Transmitido ao vivo pela TV, o “30th Anniversary Concert Celebration” durou mais de 3 horas e meia, e, como uma grande festa, teve de tudo. Rolou um bafão: duas semanas antes, diante de milhões de espectadores no Saturday Night Live, Sinead O’Connor rasgou uma foto do Papa João Paulo II e cantou “War”, de Bob Marley. Quanto ela pisou o palco do Madison Square Garden na festa para Bob decidida a cantar “I Believe In You” – Sinead é fã declarada da fase evangélica de Dylan –, o imenso público irrompeu numa vaia altíssima. Sinead pediu para a banda parasse, e vociferou nervosamente os versos de Bob… Marley. Nos camarins, passou mal e vomitou. Ausente do primeiro lançamento deste show em CD, em agosto de 1993, ela aparece na reedição de 2014 com a versão de “I Believe In You” registrada na passagem de som)

Também houveram diversos momentos emocionantes: John Mellencamp mostrou uma versão reverente de “Like a Rolling Stone”; Lou Reed tomou para si “Foot of Pride”, uma poderosa sobra de “Infidels” recém-oficializada nas “Bootleg Series 1-3”; Johnny & June cantaram “It Ain’t Me Babe”; Eddie Vedder & Mike McCready recriaram “Masters of War”; no Paraíso, Jimi Hendrix deve ter corado com a versão redentora de “All Along The Watchtower”, tocada por Neil Young; outros pontos altos: “I Shall Be Released”, com Chrissie Hynde e uma sensacional “Rainy Day Women #12 & 35” por Tom Petty & The Heartbreakers.

Bob, que acompanhava tudo isolado num circuito interno de TV, entra na parte final da noite: “Alguns de vocês podem chamá-lo de Bobby. Outros podem chama-lo de Zimmy. Eu o chamo de Lucky”, começou George Harrison citando o codinome de seu parceiro de Traveling Wilburys. “Senhoras e senhores, por favor recebam Bob Dylan”. A casa quase veio abaixo. Dylan cantou, sozinho, “It’s Alright Ma (I’m Only Bleeding)” e recebe Tom Petty, Neil Young, Roger McGuinn, Eric Clapton, Steve Crooper e George Harrison para uma versão poderosa de “My Back Pages”. Dai todo mundo que participou subiu ao palco para interpretar uma grande versão de “Knockin’ on Heaven’s Door” (com Eric Clapton solando lindamente na abertura).

Fechando a noite, Bob sozinho interpreta “Girl From The North Country”. O CD e o VHS lançados em 1993 traziam 29 canções. No relançamento de 2014 foram acrescidas mais duas canções no CD e, de bônus no DVD e no Blu Ray, um documentário “Behind the Scenes”, de 39 minutos, mais uma segunda versão de “Leopard-Skin Pill-Box Hat”, de John Mellencamp, e as até então inéditas “Boots of Spanish Leather”, com Nancy Griffith e Carolyn Hester, e “Gotta Serve Somebody”, com Booker T. & the M.G.’s (além de “War”, de Bob Marley, declamada por Sinead). Ficou faltando “Song To Woody”, com que Bob abriu sozinho seu set, e fez Nora Guthrie, filha de Woody, chorar na primeira fila. Um grande momento inesquecível da história da música pop. Em 2022, Bob completa 60 anos de carreira…

Especial Bob Dylan com Café

 

abril 1, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 35: Good As I Been To You

Bob Dylan com café, dia 35: Até 1987, Bob saia sempre em turnê escudado pelos músicos e bandas mais variados (incluindo The Band, Tom Petty & The Heartbreakers e Grateful Dead), mas as coisas mudaram em 1988, quando decidiu não mais fazer turnês temáticas de álbuns, e viver na estrada eternamente com um grupo fixo de pistoleiros de aluguel (a formação atual está junta desde 2010 e Tony Garnier, o baixista, acompanha Dylan desde 1989): nascia a Never Ending Tour (A Turnê Sem Fim), que hoje (literalmente, já que ele se apresenta neste sábado em Barcelona) soma 2910 shows e segue com mais 47 concertos agendados até junho, sem parar. Já no começo dessa turnê, em 1988, Dylan exercitava, em momentos acústicos solo durante os shows, alguns covers variados de canções folclóricas, e foi numa breve pausa da turnê sem fim, em 1992, que Bob entrou em um estúdio em Chicago para gravar um disco com essas canções tradicionais acompanhado de bandolim, violino, overdub de metais e coro. O álbum chegou a ser mixado, mas Bob descartou o material, se enfurnou em seu estúdio caseiro em Malibu (o mesmo que viu o nascimento dos Traveling Wilburys) e regravou todas as canções de maneira nua, crua, apenas voz e violão, eventualmente uma gaita (em duas faixas), e só. A ideia de Dylan era voltar “pessoalmente à música que me é verdadeira”. O resultado é “Good As I Been To You”, seu 28º disco, lançado em novembro de 1992. São 12 canções que combinam a perfeição com o fiapo de voz de Dylan à época: em “Frankie & Albert” (de 1912, gravada por Mississippi John Hurt e Leadbelly), Albert a trai e Frankie o assassina. Em “Black Jack Davey” (1740), uma garota de 16 anos se apaixona por um cigano e abandona bebê e marido para segui-lo. Já no folk inglês “Canadee-I-O” (1839), o amor de uma garota é o mar, e ela encanta primeiro um marinheiro (para desespero da tripulação), e depois o capitão, que se casa com ela, que viverá no navio admirando o mar azul. Já na canção apalache “Little Maggie”, a moça tem um apaixonante par de olhos azuis, e também um rifle no ombro e uma pistola na mão. Na incrível cantiga britânica “Froggie Went A-Courtin’” (1549), um sapo vai se casar com uma ratazana, e eles irão armar uma grande ceia com vacas, pulgas, abelhas, carrapatos e cobras, mas o final da festança será tragicamente estrelado por um gato e um pato. Só sobrará uma broa de milho. Outra pérola é a canção anti-guerra irlandesa “Arthur McBride” (1840). O disco será tão bem recebido que ganhará uma sequencia no ano seguinte, mas isso é assunto para outro café.

Especial Bob Dylan com Café

março 31, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 34: Bootleg Series 1

Bob Dylan com café, dia 34: Em novembro de 1969, Greil Marcus, um dos maiores jornalistas de música de todos os tempos, escreveu um longo artigo de cinco páginas na revista Rolling Stone chamado “Bob Dylan: Breaking Down The Incomplete Discography”. No texto, Marcus lamentava que “em oito anos, Bob Dylan lançou apenas nove álbuns” (!) e listava uma longa série de bootlegs não autorizados que ampliavam o alcance do olhar sobre a obra do (então) jovem bardo. A Columbia sinalizou o desejo de combater algumas fontes de pirataria colocando nas lojas, de forma desajeitada, um volume duplo das “Basement Tapes” (1975) que deve ter feito muito pirateiro rir, já que o material lançado não cobria nem 1/5 do que circulava entre os fãs. O segundo passo da gravadora foi um pouco mais ousado: 21 faixas raras presentes no box “Biograph” (1985), que serviram para atiçar a curiosidade de muitos fãs, mas era apenas a ponta de um gigantesco iceberg: cada disco novo de Bob Dylan (desde os anos 60!) surgia “acompanhado” de um álbum duplo pirata, muitas vezes triplo, com as raridades presentes nas sessões de gravação, desde canções acabadas e inéditas que ficaram de fora do disco por algum motivo até versões embrionárias que seriam retrabalhadas a exaustão até o último minuto a que Bob tinha direito de mexer ou mudar algo.

Parte desse material começou a ser mostrado ao mundo em 1991 com esse box (a gravadora chegou a cogitar lançar 10 CDs, mas acabou diminuindo para quatro, e finalmente para três CDs – divididos em cinco vinis, seu segundo lançamento quíntuplo, e três cassetes) caprichado que trazia nada menos que 58 faixas raras, algumas delas nunca ouvidas nem pelos melhores pirateiros do mercado! Lançado em março de 1991, “The Bootleg Series – Volumes 1/3” era, até então, o mais completo panorama da obra de Bob lançado pela Columbia Records registrando de maneira oficial desde canções que Bob havia gravado antes do primeiro álbum, em 1961, até o magnifico “Oh Mercy”, de 1989, aqui representado pela sobra “Series of Dreams”, uma faixa “fantástica e turbulenta”, segundo o produtor Daniel Lanois, que a queria no disco, “mas a palavra final era dele (Dylan)”. Tal qual ela há cinco pepitas de ouro do álbum “Infidels”, incluindo a velvetiana versão inicial de “Tight Connection To My Heart” (aqui listada como “Someone’s Got a Hold of My Heart”) e as sensacionais “Tell Me”, “Foot of Pride” e, principalmente, “Blind Willie McTell”, que fizeram o biografo Brian Hilton lamentar que Bob não tenha feito deste disco um álbum duplo (“Teria rivalizado com ‘Blonde on Blonde’”, acredita) e muitos momentos geniais que validam a máxima de que as “sobras” de Bob Dylan são melhores do que grande parte dos álbuns oficiais “dos outros”. Não é exagero.

Das 58 raridades, 25 são do período que vai de 1961 a 1963, desenhando um Dylan muito mais completo e complexo. Por exemplo, o material final escolhido para os dois primeiros discos – “Bob Dylan” (1962) e “The Freewheelin’ Bob Dylan” (1963) – era muito mais leve, com requintes de humor, enquanto o que ficou de fora exibe traços de amargura, raiva e frustração. Basta comparar a sarcástica e bem humorada “Talking New York”, gravada em novembro de 1961 e presente no disco de estreia, com a amarga e hostil “Hard Times in New York Town”, registrada em um quarto de hotel em dezembro de 1961, e inédita até 1991. “Subterranean Homesick Blues” surge numa versão demo acústica deliciosa, que serviu como guia para a banda eletrificada soltar os cachorros no arranjo. Outra guia comovente é a de “Like a Rolling Stone”, tocada por Bob em andamento de valsa para climatizar os músicos na sua grande criação. Há mais: da demo de “If Not For You”, do álbum “New Morning”, com George Harrison na guitarra (ele depois regravaria a canção no clássico “All Things Must Pass”, de 1970) a quatro lendários takes nova-iorquinos da obra prima “Blood on the Tracks” (1975) até uma pérola desconhecida das sessões do álbum (evangélico) “Shot of Love” (1981) chamada “Angelina”. Com cerca de quatro horas de duração, “The Bootleg Series – Volumes 1/3” merece atenção, dedicação e respeito. Mas, como descobriríamos futuramente, ainda é só a ponta do iceberg – só para se ter uma ideia, a versão pirata “The Genuine Bootleg Series” (dividida em quatro volumes de fácil acesso no Youtube – ou aqui: 1, 2, 3, 4) soma quase 10 horas de raridades. Mergulhe!

Especial Bob Dylan com Café

março 30, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 33: Red Sky

Bob Dylan com café, dia 33: Lançado em setembro de 1989, “Oh Mercy” ainda estava colhendo críticas positivas e aparecendo em listas de melhores do ano quando, em janeiro de 1990, Bob já estava gravando as canções do álbum que o sucederia. Daniel Lanois havia colocado Dylan nos eixos, mas Bob ainda estava inseguro, deglutindo o processo, e decidiu chamar os irmãos David e Don Was para produzir o novo disco, que traria uma constelação de convidados especiais (Lanois e Dylan voltariam a se encontrar ainda nos anos 90 para parirem, juntos, outra obra prima, mas isso só aconteceria em 1997). Lançado em setembro de 1990, “Under The Red Sky” é muito mais cru e menos polido que “Oh Mercy” além de ter um viés infantil, inspirado em canções de ninar endiabradas e repletas de mistério (o álbum é dedicado a então filha mais nova de Bob, que tinha quatro anos na época), algo que a crítica não entendeu / recebeu tão bem. Recém-convertido a rock star, o guitarrista Slash (que havia gravado com Iggy Pop no grande disco “Brick By Brick”, também produzido por Don Was) marca presença colocando peso em “Wiggle Wiggle”, dois minutinhos de sacanagens sexuais.

George Harrison sola uma slide guitar lentamente e belamente na faixa título. Al Kooper toca teclado no rockabilly sério (e longo demais) “Unbelievable” enquanto Bruce Hornsby (pós “The Way It Is” e Grateful Dead e pré carreira solo) participa da balada “Born In Time”, que flagra um pai conversando com a filha, e da assustadora “TV Talkin’ Song”, que retrata um homem enforcado em pleno Hyde Park, em Londres, devido a abuso infantil (“The man was saying something ’bout children when they’re young being sacrificed to it while lullabies are being sung”) e como a mídia lida e populariza o caso. O lado B do vinil traz os irmãos Jimmy e Stevie Ray Vaughan nas misteriosas “10,000 Men”, em “Cat’s in the Well”, que acaba soterrada pelo excesso de instrumentos, e em “God Knows”, uma sobra de “Oh Mercy” que Daniel Lanois tentou fazer acelerada, mas Don Was acertou em diminuir o andamento (procure algum bootleg com as sessões de “Oh Mercy” para sacar a diferença). Simpática, “2×2” traz Elton John solando o piano elétrico, David Crosby nos backings, David Lindley encantando no bouzoki e Paulinho da Costa na percussão. Ainda hoje, “Under The Red Sky” soa misterioso, estranho, inacabado e menor que “Oh Mercy”, mas ainda assim interessante.

Especial Bob Dylan com Café

março 29, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 32: Oh Mercy

Bob Dylan com café, dia 32: Os anos 80 foram cruéis com muita gente, e Dylan deve estar numa posição de destaque na fila de desastres. A década estava enfim acabando, era 1989, e seu último disco digno havia saído seis anos antes, em 1983 (“Infidels”). Sua carreira tinha seguido até então no piloto automático, sem grandes novidades, mas muitos senões. “Eu estivera numa turnê de 18 meses com Tom Petty e os Heartbreakers. Tom estava no auge do lance dele, e eu no fundo do meu”, escreveu Bob no livro “Crônicas” sobre a virada de 1986 para 1987. Ele sabia que algo estava errado. Seu resumo do período é crítico: “Sempre prolifica, mas nunca exata, minha trilha musical se transformara numa selva de trepadeiras por causa do excesso de distrações. (…) Eu me sentia acabado, um traste vazio completamente consumido. Onde quer que eu vá, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk rock, um artesão da palavra de tempos passados, um chefe de Estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estou no inferno do esquecimento cultural”. Era isso e algo precisava ser feito. Mas o que?

Bem, a inspiração. A narrativa de como “Oh Mercy”, o grande disco que Bob lançaria em setembro de 1989, surgiu é extremamente lírica, e merece a leitura completa do capítulo 4 do livro “Crônicas”. Resumindo, Bob rasgou a mão até os ossos num acidente, e precisou ficar de molho. Seu plano inicial era… aposentadoria, mas os anjos malditos da inspiração começaram a fazer brotar canções, que ele escrevia e jogava numa gaveta. Certo dia, Bono (U2) apareceu para jantar com uma caixa de Guinness. O papo se estendeu madrugada adentro e Bono perguntou a Bob se ele não tinha nada novo, inédito, alguma canção que estivesse trabalhando. Bob mostrou o material que estava na gaveta e Bono ligou para Daniel Lanois dali mesmo, e colocou os dois em contato. “Ele falou que discos de sucesso não lhe interessavam”, lembra Bob. “Miles Davis nunca fez nenhum”, justificou Lanois. “Para mim estava ótimo”, concordou Dylan.

A gravação posterior em New Orleans (“Existem muitos lugares de que gosto, mas New Orleans é o que mais gosto. É uma cidade que mantém a magia”, descreveria Bob) passou por momentos tensos até Lanois e Dylan se conectarem, mas o resultado foi grandioso: a distópica “Political World” (“um rockabilly do inferno”, descreve Brian Hinton), “Everything Is Broken” (que ganhou clipe dirigido por Jesse Dylan), “Most of the Time” (que Lanois definiu como “o som dos pântanos da Louisiana”), a transcendental “Shooting Star” e o relato da tentação em “Man In The Long Black Coat” estão, facilmente, entre as melhores coisas que ele gravou nesta década. E as outras não ficam atrás (Deus, até as canções dispensadas – que apareceriam em The Bootleg Series Vol. 8 – são de alto nível, como é o caso de “Dignity” – piratas variados como “Mercy on Us“, “Oh, Merci, I’m Lucky” e “Ring Them Bells” trazem as sessões completas de New Orleans) .

Apesar de Dylan dizer que o disco recebeu boas críticas, mas “críticas não vendem discos”, “Oh Mercy” (cuja arte da capa é uma foto de um grafite localizado na 53rd com a  9ª avenida, em Hell’s Kitchen, Nova York) bateu no número 30 da Billboard ficando atrás apenas de “Infidels” (que alcançou a 20ª posição) e “Saved” (que chegou ao número 24). Ainda assim, a importância maior de “Oh Mercy” é reconectar Dylan com sua arte no momento em que ele duvidava do futuro. Foi um passo decisivo para coloca-lo no mapa novamente, e permiti-lo seguir em frente para encontrar o sucesso nos anos 2000 (futuramente, dois discos de Dylan irão chegar ao topo das paradas, outro baterá na 3ª posição, um quarto álbum chegará ao 5º lugar e outro alcançara o Top 10. Mas tudo isso é assunto para outros cafés)…

Especial Bob Dylan com Café

março 27, 2018   No Comments