Entrevista: “Não somos grandes atores das redes sociais, somos uma banda pra quem gosta de música”, diz Felipe Kautz, da Dingo

entrevista por Bruno Capelas

Em 2015, vieram as maravilhas. Quatro anos depois, a possibilidade de uma transformação. E após um período tumultuado, essas mudanças se apresentaram em uma explosão tão significativa que até um novo batismo se tornou necessário. Talvez essa seja uma boa forma de apresentar a trajetória até aqui da Dingo, que muita gente conheceu há algumas temporadas como Dingo Bells. “É um nome que tem uma coisa caricata, associação com natal, com jingle. Foi nosso nome até aqui, mas é também uma série de outras coisas. Passamos por uma série de mudanças de vida e no grupo, e achamos mais massa mudar. Dingo é nóis”, explica o baixista Felipe Kautz, um dos responsáveis por um dos grandes discos de 2022, “A Vida É Uma Granada”.

Lançado no começo de novembro do ano passado, pouco após as eleições, o trabalho é um retrato da vida de Felipe e seus companheiros Rodrigo Fischmann (bateria e voz), Diogo Brochmann (guitarra e voz) e Fabrício Gambogi (guitarra, voz e arranjos) de 2018 para cá. Uma época conturbada, que teve mudanças de cidade (Kautz e Fabrício saíram de Porto Alegre para São Paulo), paternidade (Rodrigo e Diogo se tornaram pais), uma pandemia e o governo Bolsonaro. Ah, e a banda também quase chegou ao fim: “O disco é aquela cena clássica de filme, em que estoura uma granada do lado do soldado e ele fica um tempo desorientado. Estivemos a um fio de encerrar o projeto. Teve muito quebra-pau, lavação de roupa suja e readequação de rotas”, lembra Kautz, que vivia só de música até a pandemia e hoje divide seu tempo entre a Dingo e projetos no mercado audiovisual. “Gravar o disco, em meio a isso tudo, foi um respiro, que nos lembrou o que nos unia enquanto banda.”

Gravado no final de 2020, mas só lançado quase dois anos depois, “A Vida é Uma Granada” é também um disco mais aberto e expansivo que o trabalho anterior da banda, “Todo Mundo Vai Mudar”, mas não menos reflexivo. “É mais fácil, de certa forma, fazer um terceiro disco do que fazer um segundo disco, quando a banda estava muito tensa”, diz Kautz. “O novo disco diz bastante respeito à nossa fase da vida, já deu tempo de construir coisas, de destruir coisas, de ver impérios surgirem e se desmancharem, de recomeçar coisas, tentar novos caminhos. É um disco de quem já tomou a primeira escaldada da vida”, afirma o baixista, nessa entrevista realizada em janeiro de 2023, mas que só agora vê a luz do dia.

Concedida na casa do jornalista, o papo foi movido a café, cigarro e água gelada, em meio a um dia quente de verão – clima propício para que Felipe abrisse o coração e falasse não só dos bastidores do disco, mas também fizesse críticas fortes ao momento do mercado da música, um setor que ainda não possui um sistema de trabalho coordenado. “Não existe uma cadeia de produção organizada, no qual a galera tenha condições mínimas de trabalho e pagamento. Bem ou mal, tem sempre alguém na cadeia fazendo alguma coisa só no amor. Há uns anos, não me sentiria à vontade para falar disso, mas ficando mais velho, acho que tem determinadas coisas que precisam ser ditas”, afirma.

Na conversa, Kautz também conta histórias da vida adulta e de juventude – como a de que ele, Fabrício e Diogo estudaram música com o graforréico Carlo Pianta, responsável por introduzir bandas como King Crimson, Chic, Steely Dan e Talking Heads na cabeça dos jovens gaúchos. Além disso, ele também faz um balanço da cena nas duas cidades em que morou nos últimos anos. “Em Porto Alegre, fizemos uma parte de uma cena que não sei muito para onde foi. Hoje, a cidade está num momento de carnaval de rua, samba, maracatu, que é bonito de ver”, diz. “Já em São Paulo, sinto que a Dingo é uma banda de fidelização de público. Demoramos para chegar para as pessoas, mas depois que abrimos a porta, a gente senta e toma um café.”

Pois aproveite o clima, caro leitor, e também fique à vontade por aí: esta é uma entrevista longa, íntima, cheia de detalhes sobre a história de uma banda que se arrisca a fazer canções pop e discos “para ficar” em um tempo de consumo veloz de informações. “Não somos grandes atores das redes sociais, somos uma banda pra quem gosta de música, que ouve disco. É nerd, a gente é nerd”, brinca o baixista, que tem certa ojeriza à dinâmica acelerada de criação de conteúdo nas redes sociais. “Eu não quero ver a panqueca de aveia do Thom Yorke. Prefiro que ele fique na casa dele fazendo as músicas e lançando discos a cada tantos anos.” Pegue seu café, sinta-se em casa e venha passear nessa conversa.

Felipe, vamos começar do começo. “A Vida é Uma Granada” é o primeiro disco da Dingo em quatro anos. O que é esse disco? Como foi o caminho entre o lançamento do “Todo Mundo Vai Mudar” e esse novo trabalho, considerando que tem uma pandemia e um governo Bolsonaro no meio?
“A Vida é Uma Granada” é um disco cuja simbologia foi mudando muito ao longo do tempo. Embora eu ache que é um disco com começo, meio e fim, ele era uma coisa antes de ser feito, outra durante o processo e uma terceira depois que estava pronto, mas ainda não tinha sido lançado. Nós gravamos o disco no final de 2020, mas esperando voltar a ter shows, em função da pandemia. É sempre bom lembrar: a pandemia foi agravada pelo governo Bolsonaro. A gente não só viveu o governo Bolsonaro e a pandemia ao mesmo tempo. Nós vivemos coisas que, infelizmente, se somaram para o lado negativo. Então, “A Vida é uma Granada” era um disco que a gente precisava fazer. Acho que a banda ainda tem lenha para queimar e passamos por muita transformação desde o “Todo Mundo Vai Mudar”.

Todo mundo… mudou?
Todo mundo mudou. Foi algo meio premonitório. Espero que o “A Vida é Uma Granada” não seja tão literal. (risos). Mas, enfim: de 2018 para cá, eu e o Fabrício mudamos para São Paulo, enquanto os meninos [Rodrigo e Diogo] começaram a constituir família, os dois viraram pais no meio do caminho. A banda precisou virar outra coisa porque o mercado do nosso nicho no Brasil virou outra coisa. O disco simboliza o que aconteceu com a gente. Aquela cena clássica de filme que estoura uma granada do lado do soldado e ele fica um tempo desorientado, com uma sirene tocando na cabeça, enquanto tenta correr para algum lugar que acha mais seguro, e daí você começa a ouvir um “piiii”. Sinto que o que a gente viveu foi um pouco isso também. Foi muito forte o que aconteceu com a banda nos últimos quatro anos. Estivemos a um fio de encerrar o projeto e ver o que ia acontecer, para talvez retomar um dia. Os discos já estavam aí, nós fizemos discos que são para durar no tempo. É algo que a gente pensa para caralho na hora de fazer: os discos tem que durar para além da gente. Nesse meio tempo, teve muito quebra-pau, muita lavação de roupa suja, readequação de rota e de expectativas, amadurecimentos diversos. Tivemos fases difíceis para todos em diferentes momentos. Aos poucos, as coisas começaram a voltar. E o disco foi uma ilha de produtividade, foi um respiro, algo que nos lembrou o que nos unia enquanto banda. As coisas foram voltando, conseguimos ajeitar a máquina, organizamos com o selo e estamos seguindo. Mas está bem diferente do que já foi.

Engraçado isso que você falou da banda quase acabar. Há alguns meses, eu ouvi algo parecido do Teago Oliveira, da Maglore, numa entrevista que eu fiz com a banda para o Programa de Indie, na Rádio Eldorado . O que teria feito a Dingo acabar? É briga? Caminhos diferentes de vida? Falta de grana, porque a gente está falando que a banda está num nicho? O que estava pegando?
Ah, Bruno… você já deve ter falado com muitos artistas sobre isso. É tudo isso que você falou. É treta, são caminhos diferentes, é muito tempo junto… não dá para esquecer que a gente toca junto desde os 14 anos – e hoje a gente tem 34. Tivemos mais tempo na vida com a banda do que sem a banda, bem mais. São caminhos diferentes, é a pandemia, é a falta de grana no mercado, as diferentes possibilidades de vida e os riscos que cada um pode assumir, porque é isso. Tem um lado em banda que é muito incrível, sensacional, que é o que a galera chama de glamour: fazer shows lotados, com a galera cantando as suas músicas e tudo mais, hotel, dar entrevistas. Essa é a parte maravilhosa. Mas tem um lado do nosso nicho que é muito perrengue e isso nunca é abordado frontalmente, porque é visto como derrotismo, é visto como inveja… Não sei, talvez tenha que vir alguém com mais bala na agulha ou “a grande união dos Power Rangers da música” para dizer que é uma questão grave, que muitos projetos e artistas ficam no caminho por causa do perrengue. São várias questões: as plataformas de streaming metem uma faca na galera e pagam muito mal. Não existe uma cadeia de produção organizada, como acontece no audiovisual, na qual a galera tenha condições mínimas de trabalho e pagamento. A música tem muito caminho pela frente. Sempre tive medo de abordar essas questões, mas a gente passou por tanta coisa no mundo e no Brasil que eu acho que tem determinadas coisas que tem que ser ditas. Pô, a gente está retomando o Ministério da Cultura agora. Há uns anos, eu não me sentiria à vontade para falar sobre isso, mas a gente já tem um tempo rodando nesse meio, vai ficando mais velho e vai vendo os absurdos que a gente vê. Agora que o governo mudou, as coisas em relação à cultura estão sendo bem esperançosas, a coisa tende a ficar mais interessante. Mas isso ainda é muito longe de sustentar o rolê como ele deveria ser feito, da maneira profissional que deveria ser feito. Bem ou mal, sempre tem alguém na cadeia que está fazendo alguma coisa por amor. Na real, está todo mundo trabalhando com amor também.

Essa discussão é boa e a gente vai retomá-la ao longo da entrevista, mas vamos voltar a falar da banda. No lançamento do último disco, a banda ainda morava toda em Porto Alegre. Quando é que você e o Fabrício vêm para São Paulo?
A gente vem para São Paulo… eu vim em setembro de 2018, o Fabrício veio ali por julho, dois ou três meses antes. Isso foi logo depois da gente lançar o “Todo Mundo Vai Mudar”, que é de abril.

Por que vocês vêm para São Paulo? Não sei se você pode falar pelo Fabrício, mas por você acho que dá…
Vou falar por mim. Eu já tinha vivido coisas suficientes em São Paulo e em Porto Alegre para não me sentir impelido a fazer esse movimento. A vida me mostrou coisas que estavam me interessando e me deixando mais curioso em São Paulo de uma forma ambiciosa – e sem carga negativa, porque ambição é um negócio importante. Em 2018, já fazia uns dois anos que a Dingo estava tocando mais aqui e em lugares mais perto de São Paulo do que no Sul. Porto Alegre é uma cidade que a gente sempre fez pouco show.

Vocês tinham até uma estratégia de tocar pouco em Porto Alegre para “gerar demanda”, pelo que eu me lembro…
Isso acontece até hoje, na verdade. Acho que a gente acaba não tocando tanto em São Paulo por um novo momento da banda e da cena, porque não estão os quatro aqui, mas em São Paulo existe uma possibilidade muito maior de fazer shows em diferentes regiões, para diferentes públicos. É uma cidade grande, as coisas são tão segmentadas, que dá para ter essa circulação mais territorializada. Em Porto Alegre tem que chegar lá, chamar todo mundo que tem e “vambora”: são duas, três, estourando quatro datas na cidade por ano. É outro rolê, é muito diferente. A cena rola toda aqui, estou dando essa entrevista [sozinho] para você porque estou aqui. É mais barato sair daqui do que para qualquer outro lugar, então foi um caminho meio óbvio. E tem a parte pessoal: eu estava de saco cheio de Porto Alegre, meio confortável e meio desconfortável ao mesmo tempo, que é uma situação clássica de mudança. Você vê que está tudo certo, mas o que está tudo certo começa a incomodar de um jeito que não tem mais como reverter o processo. Foi massa pra caramba, foi difícil e é difícil, mas eu gosto de São Paulo pra caralho.

Antigamente, quando as bandas vinham para São Paulo, vinha a banda inteira. Nesse caso, vocês vieram pela metade. Por que o resto da banda ficou?
O Diogo e o Rodrigo ficaram. Eles podem falar muito melhor sobre esses detalhes e o que definiu isso, mas eles começaram estruturas muito grandes, começaram famílias. Envolve gravidez, bebês, envolve ter rede de apoio, família por perto. E as coisas que me desagradavam ou que estavam me incomodando em Porto Alegre não enchiam o saco deles. Então, acho que eles estavam num momento mais tranquilo com relação ao seu lugar na cidade.

Como a banda funciona hoje? Por conta da divisão, vocês nunca têm um show “barato”, no mínimo sempre precisa de duas passagens de avião…
É por isso que a gente se esforça nos shows! (risos) No momento, sim: se for em Curitiba, de repente vai todo mundo de ônibus… mas besteiras à parte, é assim que funciona. Eu sou o cara que fica mais em contato com o selo, com a Rockambole, mais na parte de produção e estratégia de algumas coisas, temos vários parceiros lá dentro. Os guris estão voltando a pegar junto algumas coisas do lado financeiro e das redes sociais, mas temos essa divisão interna. Quando a gente grava, preparamos bastante o repertório antes de gravar. Gravamos muita coisa ao vivo, tentamos aglutinar o máximo de coisas ao mesmo tempo. E como a gente sempre sabe dessa realidade de cidades diferentes, a gente sempre ensaia loucamente antes de gravar e antes de sair em turnê. Preparamos o show e ele está pronto. E antes de todo show, a gente chega um dia antes na cidade para ensaiar. Sempre ensaiamos onde a gente vai tocar para tirar a poeira, passar o repertório e é isso. Se tem outros músicos, naipe de sopros ou algum convidado, a gente ensaia junto também. E tem sido bom, meu. Se tem show todo final de semana, a gente emenda, mas pelo que eu tenho observado de agendas, da galera do nosso cenário, de um círculo parecido, eu vejo que mudou bastante a capacidade e a maneira de circular das bandas, a galera está circulando muito menos, mas melhor.

O primeiro disco da Dingo foi financiado por crowdfunding e o segundo saiu com edital da Natura Musical. O terceiro saiu pela Rockambole. Como a Rockambole aparece para vocês?
Começamos a trabalhar com a Rockambole em 2021, depois de gravar o disco. Então o disco foi uma iniciativa nossa, foi gravado de maneira independente. Lançamos através da Rockambole, eles nos ajudaram em toda a questão de lançamento, planejamento.

Vocês podiam ter lançado o disco sozinhos, então. Por que estar num selo é legal?
Estar num selo é legal porque… porque o selo tem uma estrutura que é difícil uma banda ter sozinha. Isso envolve financeiro, merchandising, planejamento de carreira, booking, produção, parte técnica, todo aquele rolê de edição das músicas, lançamentos, subir nas plataformas, redes sociais. Cada banda tem seu acerto com o selo, as formas são bem variadas. Além disso, como o selo reúne mais bandas, é um convite à efervescência de cena – tem noites do selo, dá para conectar bandas do selo com bandas de outras cidades, outros lugares, rola um intercâmbio que é sempre interessante pro fomento da cena.

É uma coisa que estava um pouco adormecida quando vocês começaram? Ou pelo menos que não estava tão bem configurada, do ponto de vista mais profissional?
Cara, em São Paulo a gente trabalhou com a Pamela, da Alavanca, no primeiro disco. E aí no segundo disco trabalhamos com a Erva Doce e agora estamos com a Rockambole. Sempre foi bom conhecer muitos tipos de gente e de trabalho aqui em São Paulo, mas a gente sempre sentiu dificuldade em nos sentir parte da cena daqui, porque a gente é de fora. Em Porto Alegre, sim, fizemos parte de uma cena que não sei muito para onde foi. Hoje, Porto Alegre está num momento super de carnaval de rua, de samba, maracatu, que está dando um frescor para a cidade que é bonito de ver. Mas o lance de shows e de cena deu muito uma esfriada depois de toda a treta da Apanhador Só. Acho que Porto Alegre vinha numa ascensão de artistas que era a Apanhador, a Dingo Bells e o Ian Ramil, que tinha ganhado Grammy, os Ramil todos, a galera tá lá, tá todo mundo na ativa, o Ian está lançando disco daqui a pouco… [o recém-lançado “Tetein”] . Mas Porto Alegre, enquanto cena de shows, de fato sentiu esse baque. E eu e o Fabrício nos mudamos um pouco depois. Estando aqui em São Paulo, sinto que a Dingo é uma banda de fidelização de público, sabe? Demoramos para chegar para as pessoas, mas depois que abrimos a porta, a gente senta e toma um café, já ficamos à vontade, tem muita gente que fica com a banda. Tem muito ouvinte mensal, sempre tem textão direto na página agradecendo, na pandemia teve mensagem pra caralho, o que foi massa. Às vezes chegavam umas mensagens lindas, enquanto você tava em casa todo fodido. Era um baita consolo, “pelo menos tem alguém um pouco menos fodido por algo que a gente fez”. Acho que a Dingo é uma banda de público fiel, mas a expansão dela é lenta, é uma banda de jornada longa. Tendemos a crescer com o passar dos anos, eu boto fé nisso.

Legal. Vamos falar do “A Vida é Uma Granada” enquanto disco. Li recentemente que esse era o primeiro disco em que a banda chegou com composições mais prontas. Não foi um disco coletivo, que todo mundo fez junto no estúdio, como foi o caso do “Maravilhas” e do “Todo Mundo”. Isso é reflexo da banda não estar toda na mesma cidade ou são coisas separadas?
Cara… (pensa um pouco)… boa pergunta. Acho que as duas coisas, mas uma meio que retroalimenta a outra. É o terceiro disco, meu. Tem coisas que se tornam mais fáceis. É mais fácil, de certa forma, fazer um terceiro disco do que fazer um segundo disco. Achei muito difícil fazer o segundo disco, acho que a banda tava muita tensa…

Pelo clássico teste do segundo disco?
Exato, tá ligado?! “Nós fizemos o primeiro, foi massa pra caralho, e agora, sabe?”.

E o primeiro disco são as músicas que você fez durante sua vida inteira, agora o segundo…
Exato, exato. Depois, quando você vai fazer o terceiro, tu vê que tem que mandar um “foda-se” para isso. Do tipo, “para onde estou indo?” Cara, escolhe as músicas e está tudo certo. Teve um pouco o lance da liberdade do terceiro disco e teve o lance da gente estar longe, também, trancafiado. Por exemplo, “Eu Cheguei de Longe” é uma música minha, que eu fiz logo que eu cheguei em São Paulo, cuspi ela quase inteira. Mas não sabia direito o que fazer com ela, até que um dia o Thiago Ramil foi para São Paulo, a gente foi num boteco e depois do boteco acabamos terminando a música. E é uma música… que deve ter um intervalo de mais de um ano entre esse embrião e ela ser finalizada totalmente. Os guris também escreveram sobre coisas que eles estavam vivendo, acho que é um disco mais pessoal. Ele é mais íntimo, e acho que através da intimidade nós chegamos em algo mais universal, que é um pouco o que a gente gosta de tentar atingir nas nossas letras. Dito isso tudo, chegamos no estúdio com coisas que já estavam meio prontas e já tinham essa cara Dingo – a cara que a gente aprendeu a escrever música juntos. Daí foi escolher o repertório e gravar.

São músicas feitas entre 2018 e 2020, então?
É.

Quais são as tuas músicas?
“Eu Cheguei de Longe” e “Lindo Não”. Eu também tenho algumas contribuições de letras em algumas do Rodrigo. Do Fabrício, tem “Pra Aliviar o Peito”, “Tropeço” e as outras todas são do Rodrigo. Diogo tem algumas contribuições, mas nesse disco o Diogo não escreveu nenhuma. Mas ele gravou um milhão de instrumentos!

Teoria das compensações. Engraçado: dá para perceber um pouco a mão sabendo as histórias de cada um. Músicas que falam mais de “vida de solteiro” são tuas ou do Fabrício…
Cara, tu sabe que “vida de solteiro” é tenso, né?

Calma, calma: “vida de solteiro” em oposição a “vida de casado, com família e filhos…”
É, é, porque nesses últimos quatro anos eu tive um relacionamento, que foi muito massa e profundo, e acho que foi a coisa mais punk que eu já vivi. Mas foi um relacionamento que teve muitas idas e vindas. Quando a gente foi gravar o disco, estava num desses momentos, é uma história que se arrastou até agora pouco, bastante pessoal. Mas a quais que você se refere?

“Tropeço” é muito uma música de “vida de solteiro”. É ficar com alguém, não rolou, mas não é que a gente se odeia… Ou sei lá, “Lindo Não” é muito uma música “mudei de cidade, mudei de vida”. Tem esse feeling, mas posso estar exagerando…
Não sei se eu colocaria como música de solteiro. Acho que “Lindo Não” é uma afirmação do não, é uma exaltação do não, né? É uma música que eu fiz quase como uma fincada de bandeira no território. Não, daqui isso não passa, deixei claro que é o meu limite e que daqui eu não vou seguir. “Tropeço”, que é uma música do Fabrício, fala sobre uma história muito foda e que a vida acabou desmantelando um pouco. “Faz parte, tem um recomeço pela frente”. Acho que o “A Vida é uma Granada” diz bastante respeito à nossa fase da vida, já deu tempo de construir coisas, de destruir coisas, de ver impérios surgirem e se desmancharem, de recomeçar coisas, tentar novos caminhos. É um disco de quem já tomou a primeira escaldada da vida. E talvez o lance da solteirice diga mais respeito à individualização e individuação de cada um.

Agora você deitou no divã.
É um disco que fala muito sobre isso, sobre cada um de nós, sobre cada um de nós estar vivendo coisas diferentes.

Eu brinquei com terapia, mas é também um tema que está no disco. “Desconstrução do Ser” é uma música que fala disso, mas essa busca, essa coisa que muita gente busca na terapia, na psicologia, isso aparece bastante no disco – que é uma coisa bem comum para quem tá nos 30, 35 anos…
Acho que sim. A gente estava há pelo menos meio ano trancafiado, fizemos o disco quando ainda não tinha nem vacina na época. Acho que tinha uma desilusão da música, de pensar “o que eu fiz dos meus últimos 18, 20 anos, onde isso vai dar agora”, sabe? Quando a gente foi gravar o disco, a gente foi só abraçado pelo som. “Tá, gurizada, era para isso? Lembra como era legal gravar umas música nova, com umas letra massa, fazer sons que não existiam, sons que vão ficar?”.

Vocês gravaram quando?
A gente gravou entre outubro e novembro de 2020, se não me engano. Foram 34 dias…

Entre sentar, colar as músicas, gravar e fazer tudo?
Nós chegamos em Porto Alegre, pegamos as demos, colocamos todas as músicas na mesa, ouvimos as demos toscas de celular. Daí escolhemos 15 músicas para trabalhar, montamos o estúdio e começamos a ver a primeira. Passamos as 15 músicas, cortamos duas ou três, e aí fizemos pré-gravação valendo das 12 que ficaram. Aí gravação…

Isso tudo foi isolado, foi num sítio…?
Foi no estúdio da Pedra Redonda, que é um estúdio que está começando a marcar uma época bem massa em Porto Alegre, muita gente passou por lá. É um estúdio que fica na zona sul da cidade, perto do Rio, uma parte mais relax, ali perto do [Museu] Iberê Camargo. É a galera da zona sul, uma galera que parece que nasceu em Santa Catarina, tem uma vibe mais praia, mais relax, maconheira, é massa pra caralho. E a gente ficou lá, isolados. O Diogo e o Rodrigo moravam em Porto Alegre, o Diogo tinha filho recém-nascido, então eles iam e voltavam para casa. De resto, toda a equipe ficava no estúdio.

Eram vocês quatro e…?
Nós quatro. Aí tinha o Wagner, que era o dono do estúdio e engenheiro de som. O Zelito Ramos, que é um puta compositor: o Tó Brandileone, o Rubel, todo mundo baba um ovo do Zelito, ele é um gênio. O Zelito estava na gravação como administrador de vibes: ele fazia os rangos da galera, cafezinho, baseadinho, era um curador de climas. Foi maravilhoso. Daí estava o Helinho [Hélio Flanders], que não ficou o tempo inteiro, só uma semana, dez dias, mais na parte da concepção. Tinha o Gilberto Ribeiro Júnior, o Juninho, que é o outro produtor do disco, junto com o Hélio. E estava também o Vini Angeli, é fotógrafo e videomaker, que registra a gente há anos – inclusive tem um documentário para sair sobre esse processo, ele ficou lá todo o período. Mas era isso, foi essa a turma

Nem imagino quantos HDs vão ter de material. Mas é isso: 34 dias dos primeiros rascunhos até a gravação final?
Só faltou gravar naipe de sopros e naipe de cordas, que a gente gravou aqui em São Paulo, com o Diogo Duarte no trompete, o Douglas Antunes no trombone e o Bira no sax, é uma galera muito da pesada que é o nosso naipe oficial. Eles tocam com uma galera, eles tocam com O Terno, o Jão, o Alexandre Pires, é uma galera gigante mesmo. E a galera das cordas é uma galera que o Hélio conhece, um quarteto que é o Deni Feijó, o Aramis Rocha, o Robson Rocha e o Daniel Pires.

Já falamos de letras, do lado mais “intelectual” do disco. Musicalmente, qual era o norte do “A Vida é Uma Granada”? O que vocês queriam alcançar?
Cara, isso é uma viagem. A gente não pensa numa sonoridade de disco a priori. A gente é muito escravo da canção, meu, pegamos o que a concepção do som pede. Às vezes, tu pega o violão e já tem uma levada xis, que somada à letra e à melodia, já dá alguma sugestão de arranjo, já começa a borbulhar ideia na cabeça de todo mundo. Concebemos arranjo e sonoridade das músicas individualmente. Eu não sei, isso acaba criando uma cara do disco depois, mas a gente não pensa num bloco. A sonoridade do disco tem a ver com o que todo mundo tava ouvindo no momento e os instrumentos que cada um tem à sua disposição ali, dando ideias diferentes. Se usar uma guitarra semiacústica vai dar um resultado diferente do que se usar uma Jackson de metaleiro, sabe? Tem esse aspecto do material disponível, que pode ser um material unificador, mas a gente constrói o arranjo e sonoridade de cada música. Por isso que eu acho que a gente é uma banda poliestilística, por isso que sempre foi uma merda responder “ah, que som que vocês fazem?”. A gente faz as nossas músicas! (risos). Pensa em “A Vida é Uma Granada”, por exemplo: quando a gente começou a discutir arranjo, eu olhei pro Rodrigo e falei: “mano, eu imagino uma vibe meio ‘Bennie and the Jets’ pra esse som”. Aquele clima de pianão, tudo com ambiência, o “ao vivo” fake, uma cadência que vai te conduzindo pra frente. Mas vai dizer que Elton John é influência do disco? Ah, é uma influência da vida…

Pô, se você escreve canção pop com piano você vai acabar passando pelo Elton John!
É, sabe? Mas você entende o que eu quero dizer. Quando é uma banda que está surgindo, se faz insistentemente essa pergunta do “de onde é que veio?”. Hoje em dia, é uma mistura de tudo que a gente ouviu, mano, não tem uma pré-concepção, até porque são quatro anos entre um disco e outro.

É engraçado você dizer isso: eu tenho a impressão que o “Granada” parece mais com o “Maravilhas” do que com o “Todo Mundo Vai Mudar”. O segundo disco parece meio “fora”, em termos de estilo… tem uns polirritmos nele que não tem nos outros discos. O primeiro e o terceiro são mais orgânicos, parece serem discos mais ao vivo.
Acho que sim. “Todo Mundo Vai Mudar”, até como consequência inconsciente do primeiro disco, nos fez entrar muito numa vibe de quebra-cabeça, de camadas de som. Isso se reflete na capa, que é uma colagem. É um disco que os arranjos têm esses encaixes malucos. É o nosso disco mais complexo de ser executado ao vivo, porque tem essas coisas. Todo mundo gastou os dedos ali. De certa forma, ele é um pouco o primeiro disco anabolizado, a gente se aprofundou nos mandrakes do primeiro disco. Já no “Granada”, a gente se libertou mais. Tanto é que os meus baixos tem uma concepção diferente nesse disco. Varia muito de música para música, mas basicamente o baixo varia entre dois cenários. Um cenário acontece quando o baixo é uma figura mais condutora, mais protagonista, como é o caso de “Doce Delírio”, que tem um riff que vai conduzindo. O outro é eu ficar ali atrás da cortina fazendo uma cama com o baixo, que é até melhor se ninguém ver. O baixo tem que estar ali, tem que sentir, mas não é uma questão o som do baixo ou a melodia do baixo: é cama, é harmonia, é ambiência. Eu alternei muito entre esses dois papéis. Acho que as canções deram uma respirada maior, é o disco que eu mais gosto de ouvir em termos de sonoridade, é o que a gente atingiu o que eu mais tenho interesse de ouvir – e isso é bom, porque atualmente é o nosso último disco, né?

Vocês gravaram o disco no final de 2020, e ele estaria pronto para sair no começo de 2021. Por que ele demora um ano e meio para sair? Eu até sei a resposta: é culpa do Bolsonaro…
Sim! Mas passando esse pressuposto, porque isso tem que ser um grande pressuposto…

Não valia a pena lançar um disco com tudo fechado.
Com tudo fechado, sem ter shows, com muita gente morrendo ainda, em 2021 a galera estava começando a ser vacinada e começando a ter algum suspiro de alguma coisa. O que aconteceu? A gente estava reestruturando o nosso trabalho de organização interna. A gente estava trabalhando com a Carol Zito, que tá com o Tagua Tagua, tá no Cineclube Cortina, enfim… e a gente mudou para a Rockambole. Teve a indefinição dos shows, teve nascimento dos filhos. O Rodrigo teve a Nina, que é maravilhosa, nasceu em maio, se não me engano, e teve muita treta também. Teve muita treta porque foi a retomada de fato, foi quando já fazia dois anos que a gente tinha gravado o disco, e foi quando estava todo mundo com a corda esticada ao máximo, tendo que se virar, pagando contas e tentando ver o que ia ser da vida, sabe? Então teve muito esse lance de realinhar os rumos e expectativas, sabe? E daí foi isso, aí fizemos o planejamento e… pronto.

Por que “Doce Delírio” e “Desconstrução do Ser” foram os primeiros singles? Tinha algum motivo?
São duas músicas bem diferentes, né? Esse foi um dos critérios. Acho que como a gente estava vindo de muito tempo parado e de um momento em que a gente já estava mais tranquilo com relação à pandemia, já estava quente, e coisa e tal, acho que “Doce Delírio” é uma música que a gente sempre achou forte – e é um conceito subjetivo e que varia para caramba.

Não sendo tão subjetivo, fato é que “Doce Delírio” é uma canção pop, pra frente.
Sim, ela tem um beat acelerado, ela é para cima, tem uma letra com imagens legais e que te tiram um pouco de uma realidade nua e crua. Por outro lado, “Desconstrução do Ser” baixa totalmente a bola, começa com uma harmonia de vozes em inglês, que a gente nunca tinha feito antes, e daí começa uma coisa meio folk, meio soul, sabe? Com uma letra que eu acho super bonita, feita pelo Rodrigo, e que também traz os bastidores do disco, de certa forma. Acho que todo mundo teve que mergulhar um pouco nesses processos internos nesse período todo, entre o segundo e o terceiro disco.

Vamos voltar para a parte de pagar contas. Já está mais que claro que são poucas as bandas hoje, no Brasil, que vivem só da música. Como é que vocês vivem, o que é que cada um faz? (E o que cada um fez durante a pandemia?)
Cara, é muito louco tu ver, da noite para o dia, um decreto dizendo que tua profissão acabou… bem, não é que acabou, mas é como se o pescador não pudesse mais ir para a água [durante a pandemia]. Bem, vamos lá, vou falar de novo por mim: quando eu mudei para São Paulo, eu ganhei uma câmera analógica do Rodrigo Marrone, que fez as capas do “Maravilhas” e do “Todo Mundo”. Desde o “Maravilhas”, eu comecei a mergulhar em fotografia com ele, o “Maravilhas” tem um projeto fotográfico lindo. Ali naquela época, eu investiguei o acervo do Rodrigo, ele começou a me mostrar coisas, ensinar as primeiras coisas de fotografia, vasculhei bem a biblioteca dele. E daí eu comecei a mergulhar nisso, e antes de vir para São Paulo, na minha última visita ao Marrone, ele me deu uma câmera analógica. Eu comecei a fotografar umas coisas, consegui uma câmera emprestada de uma amigona, que é fotógrafa, e daí comecei a fazer as turnês levando a câmera, então 2018 e 2019 são anos que a gente circulou bastante, em diversos lugares do Brasil, e eu tava lá fotografando. Quando começou a pandemia, comecei a mexer nessas fotos, editar essas fotos, a galera começou a gostar, comecei a vender essas fotos e aí segurei a onda com isso, além de um ou outro edital, com gravação de lives, festivais, casas de shows, que teve no primeiro ano de pandemia. Disso, fui estudar fotografia. No segundo ano da pandemia eu fiz um curso de um ano de fotografia no Senac, todos os dias, a manhã toda, então eu mergulhei bastante no lance da fotografia. E no ano passado comecei a trabalhar com audiovisual.

Mas antes da pandemia, era só show?
Era só show.

E dava pra pagar as contas?
Dava, mas muito no limite de uma tensão desgraçada de que num mês tinha vários shows e no outro mês não tinha nada. Aquele esquema que tu não consegue se planejar e está quebrando porquinho sempre. Quando você fica mais velho e a vida fica mais cara, são coisas que vão te deixando maluco. Mas até a pandemia, deu. E hoje em dia, ando diversificado pra caramba nas minhas atividades. Sigo fazendo o planejamento das coisas da banda e do selo, e tal, mas confesso que estou num lugar mais saudável para mim. Antes, tudo dependia da banda. E quando todas as tuas coisas dependem de uma coisa só, você se dá conta, como a pandemia mostrou, de que não se pode fazer isso. Agora, hoje em dia, eu sinto que eu coloco menos pressão na banda, menos expectativa, e consigo levar meu envolvimento com a banda para um lugar muito mais massa. É um lugar de diversão, de curtição do momento, de ver que é um projeto autoral meu, que eu posso meter a mão onde eu posso me expressar, consigo ter mais carinho com o troço. Antes a cabeça tava muito poluída por tensão de pagamentos de contas.

Os outros caras da banda também viviam nesse esquema? Ou eles tinham outras atividades?
Antes da pandemia, tava todo mundo só com show. Acho. Hoje em dia, o Rodrigo dá aulas de canto, o Fabrício também dá muita aula e toca com uma galera, faz grupos de estudos de música, e o Diogo tem um estúdio em Porto Alegre, grava a galera lá.

E o próximo disco, grava no estúdio do Diogo?
Baaaah! Pô, tem que pensar logo no próximo disco. A gente é uma banda que demora para lançar, mas a gente não gosta de perder viagem. Não temos nada nos planos, nem conversamos sobre ter músicas novas, não sei se alguém tem…

Você tem?
Eu tenho uns quatro “biru-biru”, sabe? Gravado no celular, uns blocos de argila que um dia vão ganhando alguma forma. Mas não, não tem nada concreto não.

Vamos voltar pro “Granada”, então. Na hora de lançar, havia medo do disco não fazer sentido? De parecer datado demais para o contexto, dado que era um disco feito dois anos antes?
Cara… (respira). Eu acho que esse risco sempre existe, independentemente de quando o disco for gravado e lançado. Eu entendo essa pergunta porque não é comum tu gravar um disco e lançar dois anos depois.

Só se você é o Neil Young.
Mas não é comum, então a pergunta vem a calhar. Volta para um ponto, que pode soar superpretensioso, mas não é: faz parte um pouco de como a gente pensa e onde a gente mira. Se isso vai se comprovar ou não, não é minha responsabilidade. Mas a Dingo se pretende a fazer discos que perdurem. É claro que tem alguns aspectos que não dá para fugir: um disco gravado nos anos 1950 vai ter sempre aquele som de gravação de época, não dá para ser descolado do tempo. Mas pensamos as nossas composições como canções que possam realmente atravessar um pouco o tempo, para além de quando foram concebidas. Como se faz isso? Um jeito é não falando coisas muito específicas de uma época, de algum hábito, objeto ou instituição, marca, que tenha essa identificação mundana e temporal. Acho que se consegue isso falando de maneira mais existencial, de maneira extremamente abrangente ou específica, então acho que a gente tem esse tipo de pensamento na hora de fazer os sons, que apontam nesse caminho. Se os discos vão perdurar, eu não sei, tem que esperar o tempo passar, ficar velho, morrer… tudo.

Qual é a resposta que vocês têm sentido da galera com esse disco?
A resposta da galera está sendo bem massa. Mas é outro momento. O primeiro disco, se for comparar, foi crescendo muito rápido: teve muito festival, muita região nova do Brasil, e dentro de todas as proporções devidas, ele deu uma hypadinha.

O “Maravilhas” é um disco que pega o final de uma época em que ainda havia uma estrutura de festivais pelo País, um movimento mais organizado.
É. Sinto que hoje em dia o terceiro disco está chegando nas pessoas que já conhecem a gente. É um disco que está batendo muito forte na fanbase, a gente recebe muita mensagem, muito textão, depois dos shows a galera tem pirado, cantado demais. Cara, todas as músicas novas a galera canta. Em quem o disco chega, ele está chegando muito bem. Mas está difícil de ampliar o leque, de abrir a bolha. Acho que a gente não é uma banda do hype, não temos grandes símbolos sexuais ou ícones fashion ou figuras cult na banda. Não somos grandes atores das redes sociais, somos uma banda pra quem gosta de música, que ouve disco. É nerd, a gente é nerd, tá ligado?

É engraçada essa fase ao tirar de contexto: “é uma banda pra quem gosta de música”. Ué? (risos)
É, né? “It’s not about the music”, a gente sabe disso. Não sei se a gente põe as fichas demais nisso [na música], ou esquece de colocar nas outras. Mas poderia se ter uma análise sociológica e psicanalítica sobre como essas coisas operam. Tu entende, a gente não é uma banda de hype. A gente tem um público maravilhoso e muito fiel, tem um público que tem tatuagem inspirada na banda, é louco isso. Tem público que começa a ter filho e os filhos vão no show. Ou filhos que levam os pais no show e o pai virar mais fã ainda. Sabe umas coisas assim? No Rio Grande do Sul, tem uma gíria: acho que nós somos “uns guri bom”. Sabe uns caras que não fazem mal a ninguém, tranquilo ali, fazendo as músicas deles. Focamos muito nas músicas. O que a gente tem pra oferecer de menos interessante somos nós enquanto pessoas. Sabe? O que se tem de relação de rede social, ou mesmo no show, é pouco, são personas que se criam nos ambientes. Isso nunca vai ser, na minha opinião, mais interessante, inteligente, profundo ou rico do que as músicas que nós quatro fazemos. Foda-se meu café da manhã ou se descolori meu cabelo. Como eu não tenho esse interesse de consumo, fica mais difícil de produzir algo. Eu não quero ver a panqueca de aveia do Thom Yorke, cara. Prefiro que ele fique na casa dele fazendo as músicas e lançando discos a cada tantos anos.

Que é um pouco a lógica que a gente tem hoje, é a lógica de produzir conteúdo e estar sempre presente.
Taí, sabe? Pode ser algo só da minha geração, ok, pode ter que mudar, de vez em quando ir lá e fazer um TikTok, mas para mim não é natural, nem nunca foi.

É muito bom você falar disso, porque eu tenho prestado atenção nas redes sociais da banda. E o que vocês fazem? Ensinam a tocar as músicas de vocês. É incrível, mas não é algo que dá pra replicar todo o tempo. Então tem que fazer mais música para ensinar mais música, é uma estratégia de “conteúdo” que não vira.
Exato, exato. Esses tempos eu vi um tuíte que viralizou, algo do tipo “pare de transformar os artistas em produtores de conteúdo”. Alguma coisa assim, sabe? Quanta energia se gasta nisso. Ao mesmo tempo, como se luta contra isso? É que nem os Minutemen, que faziam música de um minuto, para ter 40 músicas num disco e poder tocar várias vezes na rádio? Não sei, sei lá, mas será que agora a gente vai ter que fazer músicas de 15 segundos, 30 segundos, músicas a cada oito dias? Eu não sei, meu, e não vou decidir nem pensar nisso agora.

Pô, vocês deixaram três músicas na pré-produção, cadê essas músicas agora para lançar como single?
É, exato.

É um pensamento óbvio, né?
“Cadê teu conteúdo?”. Mas acho que é isso: nós quatro temos essa coisa nerd, de consumir disco – e nós consumimos disco pra caramba. Falamos sobre disco, disco sempre foi algo presente nos nossos diálogos. Não é a música, é o disco! É mais raro mostrar uma música solta, tu até mostra, mas é sempre uma música muito foda de um tal disco foda. A gente teve isso desde muito cedo, tem a ver com a escola de música e os professores em comum que a gente teve. Sempre piramos muito nisso.

Vocês se conheceram na escola de música?
Cara, sim e não. O Rodrigo é meu primo. Conheço ele desde que eu nasci, nascemos no mesmo ano. O Diogo foi nosso colega na primeira série e o Fabrício a gente encontrou na escola de música em que os três estudavam. A gente devia ter uns 12 anos e ele devia ter uns 16 – e ele já era um guitarrista super herói nerd da escola, que sabia tocar tudo e estava virando professor. E todos nós, tirando o Rodrigo, que fez aula de bateria, tivemos aula com o Carlo Pianta, da Graforreia Xilarmônica. E o Carlo sempre foi o animal dos discos. “Ó, pega aqui, ouve isso que fizeram do início ao fim num recorte de tempo xis”, e todos aqueles papos de disco que a gente está cansado de ouvir, que são muito massa. O disco não é um formato gratuito. [Ignorar o disco] é como, de certa forma, querer excluir o romance da literatura. Não vai rolar. Pode ser que fique mais nichado, pode ser que a galera consuma outros tipos de coisa, mas sempre vai ter disco e sempre o disco vai ter seu valor, sua narrativa de começo, meio e fim. E nós sempre fomos uma banda que pirou nisso.

Eu não lembrava disso do Pianta!
É. Inclusive, cara, foi o Carlo que nos mostrou bandas que mudaram a vida de todos nós muito cedo. São bandas mais improváveis – pelo menos no contexto de Porto Alegre, entre os lugares que eu vivia e a galera que eu trocava ideia, ou das camisetas de banda que eu via na rua. Bandas como King Crimson, Chic, Talking Heads, Steely Dan. O que mais? Cara, essas quatro assim, eu diria que são bandas fundamentais pra Dingo, algumas das que a gente tem mais em comum.

As três últimas eu entendo fácil, mas o King Crimson eu acho mais difícil de enxergar.
Quer ver onde tem King Crimson? “Fugiu do Dia”, do primeiro disco. (faz o som da bateria, da introdução). Aquilo ali é o nosso King Crimson de Porto Alegre, dentro do formato de canção pop, que o King Crimson tem pra caralho, eles são uma banda que tem muita canção. Beach Boys coloca aí também, que o Carlo nos botou goela abaixo, fora Beatles, claro. E aí coisas mais comuns: Hendrix, Led Zeppelin, tudo certo. Mas essas quatro, eu diria, são as mais improváveis que ele botou na cabeça da gente e que nós quatro pegamos pra caralho, ouvimos até gastar. Se for pensar nos nossos três discos, tem essas quatro bandas, daí tem umas coisas de folk, de soul music, e não vai tão pra longe disso assim.

Aproveitando que a gente voltou pra Porto Alegre, queria entender uma coisa. Você saiu de Porto Alegre logo depois, então talvez você não tenha tanto a dizer. Mas você falou que a cena deu uma morrida depois da história da Apanhador Só. O que havia de cena em Porto Alegre naquela época? E como as coisas estão agora?
Cara, tinha a Apanhador Só, que era com certeza o projeto que mais se destacava na época. Eles tinham um show acústico-sucateiro, na sala de estar, que era algo diferente. Eles usavam percussões inusitadas, e faziam vários rolês no parque, na Redenção, o Parque Farroupilha, que é o Ibirapuera de lá. Juntava uma galera nesses rolês, eles faziam várias datas nos lugares, e acho que os shows deles ajudaram a puxar a cena. A gente colava junto – em termos de público, acho que a gente estava logo atrás deles. Havia a [agência] Alavanca em comum, tínhamos lançado nosso disco em 2015 e começou a rolar um movimento massa pra gente. O Ian Ramil veio logo na sequência com o “Derivacivilização”, que é um puta disco, que ganhou o Grammy Latino. Ele fazia um puta show também, né? Ele teve várias formações, mas ele tocava com o Martin Estevez na bateria, o Guilherme Ceron no baixo, e o guitarrista variava entre o [Felipe] Zancanaro [, da Apanhador Só] e o Lorenzo Flach, que é um demônio que toca com todo mundo lá no Sul. Era uma galera massa, em um momento de efervescência. Estávamos organizando um festival, porque identificamos um momento bacana, tanto artístico quanto de público para todos nós. O festival estava sendo organizado e no meio disso teve o episódio da Apanhador. No fim das contas, o festival nunca aconteceu e deu uma arrefecida na cena. Os projetos seguem ativos, tem muita gente massa, a própria Pedra Redonda é um estúdio que grava muito artista, lança muita coisa legal, mas eu sinto que o lance de movimento de público e cultura de ir a shows me parece estar um pouco mais fraco agora. Acho que Porto Alegre está vivendo um momento mais de rua: tem muito bar abrindo, a galera está indo beber na rua, beber na calçada. É um momento de samba, de maracatu, de tambor, ritmos brasileiros, e está rolando uma certa descaretização, o que é bem legal. Sendo na casa de shows ou na rua, o importante no fim é ter show. Porto Alegre era carente disso e tudo se transforma, mas daqui a pouco eu posso estar falando besteira porque tem uma cena de shows que eu não estou ligado. Provavelmente está rolando, diferentes recortes são possíveis. Mas da cena alternativa, que a gente sempre acabou fazendo parte, a gente já não está mais tão alternativo em Porto Alegre.

E aqui em São Paulo? Você falou no começo da entrevista de “nosso nicho”. Quem é que tá dentro do nicho Dingo?
Cara, essa é uma pergunta que eu gostaria de fazer para ti, mas não é assim que funciona uma entrevista. Mas não sei, cara. Acho que tem bandas parceiras nossas, são inclusive amigos nossos, por já termos compartilhado estrada juntos. Maglore e Vanguart, por exemplo, são bandas que focam bastante em canção, a gente tem isso também. Acho que tem algumas bandas que podem ter caras e estéticas improváveis, mas que eu também coloco junto. A Tuyo é uma banda que também escreve canção e tem coisas existenciais, vai para alguns lugares de letra e de estruturas que conversam em comum com a gente. Acho que o Boogarins, também, em alguns momentos. O Rubel também tem alguns momentos assim, essa coisa mais folk, mais trovador em alguns momentos. Mas não sei, é a pergunta que eu gostaria de te fazer porque eu sempre achei muito difícil entender quem são nossos pares assim.

É engraçado isso, porque os nomes que você falou tem bastante a ver, óbvio. Acho que o Pluma tem bastante a ver, tem uma sonoridade próxima.
Sim, eu gosto muito de Pluma.

Mas eu faço essa pergunta porque acho que tem uma coisa de comunidade de bandas, que se frequentam, que se ajudam, que tocam juntas em festivais, de trocar instrumento, de viabilizar logística. Acho que não só por conta da pandemia, mas por fatores anteriores, é um grupo pequeno de bandas. Pelo menos de quem vem dessa “escola” do rock. Lembrei que quando a Dingo foi tocar lá na Eldorado, você disse que as músicas menos roqueiras do disco são as que a galera curte mais. Tem essa pilha? O mundo está menos roqueiro, mesmo para uma banda que parte do formato clássico do rock?
Acho que sim. Acho que a gente parte dessa formação, duas guitarras, baixo e bateria, né? É Beatles, né. E quando não tinha o Fabrício, era um power trio. E depois evolui, coloca teclas, que os Beatles também fizeram, o Led Zeppelin também fez. Acho que esse DNA está aí. Mas acho que resta muito pouca coisa de rock na nossa linguagem. Enxerga-se de onde vem, mas principalmente nesse último disco, o rock aparece pouco. O que aparece de rock já é mais umas misturas brasileiras, talvez uma Rita Lee anos 1980.

“Doce Delírio” para mim é uma música bem Rita Lee.
Sabe, sim! A base também é de rock, mas ao mesmo tempo, meu Deus do céu, a Rita Lee é tropicalista, não se esqueça disso: em tudo que ela faz, ela põe a assinatura dela. A gente está aqui falando de uma música dela que serviu de referência, pô, valeu Rita. Resta pouca coisa desse rock mais bruto.

É que o conceito de rock pra muita gente é algo mais fechado.
O conceito de rock se tornou tão abrangente que você tem que ser específico demais para saber do que se está falando.

Mas volta lá naquelas bandas que o Pianta colocou na mão de vocês. King Crimson é rock, Talking Heads é rock. Ok, o Chic não e o Steely Dan é mais pop, mas é o tal do adult oriented rock, não deixa de ser rock. Pô, Beach Boys é rock. Para quem é roqueiro, talvez Beatles não seja rock hoje…
Pô, a gente é uma banda de rock nesse aspecto que tu trouxe, mas a gente está completamente a anos-luz de distância, sei lá, do metal, ou de motocicletas e coletes e sabe? Eu não sei, as coisas de rock que ainda ressoam para nós, e que a gente acaba ouvindo, são essas coisas que já são muito misturadas. Tá, o Talking Heads… como caracteriza? É uma banda de pós-punk? Pô, o primeiro disco é, mas depois é uma banda de rock-disco, de música global… começa a misturar demais, sabe? É isso, a nossa música é um pouco nesse sentido: somos ancestrais do rock, mas já está misturado com tanta coisa, que rock é o que menos interessa. Será que a gente não é uma banda de pop rock?

Antigamente tinha isso, né? Lembro do VMB, que tinha a categoria Pop, onde entravam Skank e Pato Fu, e a categoria Rock, onde entravam as bandas mais guitarreiras.
Sim, sim. A gente volta para aquela dificuldade de responder à pergunta de “tá, qual é o som de vocês?”. Ah, é uma mistura de…

(interrompe) Se você fala que é uma mistura, já virou uma frase grande – e numa entrevista de TV, essa frase nem vai pro ar, o cara vai cortar na edição.
É louco isso. A gente faz as nossas músicas.

No começo da entrevista, você falou que as bandas estão circulando melhor, mas circulando menos. A situação não está fácil: passagens estão mais caras, hotéis estão mais caros, comida… tudo está muito caro. Como é que está essa vida para vocês, ainda mais pelo fato de que a banda nunca está inteira na mesma cidade?
Acho que cada artista vai encontrar a sua melhor forma de fazer por estar em diferentes momentos, diferentes estruturas e possibilidades. A gente está achando mais interessante e mais viável circular menos e melhor. Vejo que, no geral, as bandas estão circulando menos.

O que é circular melhor pra você?
Circular melhor é ter datas planejadas com mais antecedência, em lugares e datas estratégicas que façam sentido, para casar logísticas, baratear tudo. É tocar em lugares com estrutura boa de som e de luz, para entregar um show mais massa, porque da mesma maneira que está caro circular para fazer show, está caro para fazer qualquer rolê. Está difícil de ganhar dinheiro no Brasil. Está fácil de gastar e difícil de ganhar. Se é para tirar as pessoas de casa, fazerem elas comprarem ingresso e pegarem o carro para te ver, tenta entregar o teu melhor. É melhor e mais saudável para todo mundo.

Até porque, esteticamente, a Dingo não é uma banda de garagem. Não dá para tocar em qualquer boteco fuleiro, em qualquer inferninho.
Sim. Nas nossas formações, estamos tocando entre quatro e oito pessoas. Em Porto Alegre a gente chegou a fazer show com uma orquestra de 34 pessoas, foi animal. Estamos tendo esses formatos com mais gente, tem o lance de harmonia de voz, que tem que saber microfonar direito. Por isso, a ideia é circular menos e melhor, em lugares que a gente consiga proporcionar uma experiência mais massa para quem vai nos ver.

O lado ruim é que tem lugares no Brasil que vocês não vão chegar.
É, mas o ponto é que a gente não chegaria. No momento atual, a gente não conseguiria chegar mesmo tocando nos lugares com pouca estrutura. Eles só se tornam um agravante. A partir do momento em que uma passagem de Porto Alegre pra São Paulo não custa menos de R$ 1 mil, R$ 1,3 mil, é muito difícil. Pensar na lógica do Brasil é muito foda. Talvez editais de circulação possam ser algo bem interessante, de tentar fazer vingar, agora com o Ministério da Cultura. Está difícil circular, mas é aquilo: o artista tem que estar onde o povo está. Poderia ser uma boa [edital], até porque disco está todo mundo fazendo. A Billie Eilish encheu a prateleira de Grammy gravando dentro do quarto – com muita grana em equipamento dentro daquele quarto, é verdade, mas é acessível.

Dada a estrutura, a banda hoje tem um estúdio. Gravação se viabiliza.
E tem o próprio estúdio da Rockambole… Mas a verdade é que tem que pensar em estratégias. O que sei é que circulação está sendo um grande desafio para os artistas atualmente. Por outro lado, é muito louco: o artista tem essa coisa da pompa e do desejo, as pessoas tem que desejar ser o artista ou ter a vida dele. E quando você aponta essa dificuldade de circulação como uma dificuldade meio básica, você abre uma ferida na vida do artista que é difícil de lidar, porque parece que quebra um pouco essa magia. Mas olha só, adivinhe: os artistas são pessoas normais! Se a classe se unisse para dizer que isso é um problema, seria mais fácil de viabilizar as coisas do que todo mundo ficar sempre acobertando ou dizendo isso, para não manchar. Baixar o cachê não pode ser praxe, não dá para trabalhar sempre abaixo do limite. Ser artista é uma profissão, e é uma profissão de um monte de gente, não são só aqueles quatro malucos em cima do palco. Pra começar que nunca são só quatro pessoas em cima do palco, esse número pelo menos dobra da coxia para trás. É louco que isso nunca seja abordado.

Faz uns 10 anos que eu converso com bandas, artistas, e lembro que quando eu comecei, havia sempre a pergunta clássica: “e aí, você já consegue viver de música?”. De alguns anos para cá, o paradigma era outro: o artista que decidia não viver de música, preferia ter uma profissão e fazer música em paralelo – e só pensava em largar a profissão se a música começasse a estourar. É legal você falar isso, como se fosse uma resistência à ideia de que viver só de música é impossível. Ao mesmo tempo, é foda, porque não é algo confortável ter que ter “duas” profissões ou porque parece que a música só pode sobreviver nesse lugar menor, de hobby.
Exato. É outra pilha, né? Só que… meu, não sei como mudar isso. É difícil, não tem como viver esperando uma estruturação. Mais do que nunca, tem que pensar em como fazer a circulação e saber o que tu vai proporcionar. É a única forma de ter algum controle sobre o que vamos conseguir oferecer para as pessoas.

De um lado, eu acho admirável a ideia de entregar um show de boa qualidade, com som bom, luz boa e pagando técnicos direito. Isso é foda. Por outro lado, tem aquela pergunta: quantos shows se consegue fazer nessas condições? Como se constrói público, se você pode fazer shows em boas condições, sei lá, apenas quatro vezes por ano em São Paulo? Como se constrói uma cena? Porque no começo dos anos 2000, os artistas independentes tocavam muito mais em São Paulo, nem sempre em condições boas, mas tocavam, circulavam… É ovo e galinha?
É. Na verdade, estamos falando sobre um bloco de concreto na sociedade brasileira. Cara, nós voltamos a ter um Ministério da Cultura agora. Essa frase, por si só é surreal, visto que essa entrevista está sendo feita no ano de 2023. Mas ainda bem que temos um Ministério da Cultura de volta. Tem poucos meses de Ministério, a gente não sabe ainda o que vai fazer. Mas isso passa por outras coisas: passa pelo ensino de música nas escolas, passa pelo Ministério da Cultura e o investimento em cultura, passa pelo quanto a música e outras artes estão disponíveis para o povo, na praça, nas ruas…

E estar disponível não é só estar lá no YouTube…
Não é YouTube, puta que te pariu o metaverso! O som tem que bater no teu peito. É muito diferente ouvir uma gravação de 30 tambores ou estar na frente de trinta tambores, o bagulho te leva para outro lugar. É físico. As pessoas precisam experienciar cultura – e aí vai ter mais gente trabalhando. E quando se ver que existe cultura e que tem gente que vive disso, a cultura passa a ser considerada uma possibilidade profissional. Tipo assim: você não vê fotógrafo de lambe lambe em toda esquina, porque não dá para viver disso. As pessoas fazem menos o que não vai sustentá-las. É ovo e galinha: se o artista ver que vai ter que ter outra profissão… não acho que é nenhuma tragédia, existe uma cultura antiga dessa coisa monolítica de você só ser uma coisa. Tudo bem ser músico e enfermeiro, pode ser fotógrafo e pintor, é mais tranquilo. As pessoas são diversas. Mas, com certeza, você acaba diluindo energias e isso traz outros resultados. Se são melhores ou piores eu não sei dizer, mas é outra coisa. Vivemos um momento em que os artistas estão tendo que viver para seguir fazendo arte em alguma janela da vida. Fiquei pensando sobre essas coisas, em fazer um levantamento de quantas bandas ou projetos deixaram de existir durante a pandemia, deve ser um número brutal. Chegaram a fazer um levantamento sobre casas de show, foi um troço meio impressionante, mas de bandas eu não sei. Volta e meia se via um comunicado oficial, você via as baixas de guerras, foi pesado. Foi paulada.

E agora, qual é o plano da Dingo? É show, é documentário, é cuidar de bebês?
Cuidar de bebês, ainda que o Tom [filho do Diogo] já não seja mais um bebê, está quase um piá, ele está batendo os três anos. Coisa mais querida. A Nina é pequena ainda, está fazendo um ano. É cuidar dessas crianças, fazer shows, descobrir um pouco como vai ser a circulação. Temos algumas ideias que dependem de parceiros, estamos esperando, mas é conseguir viabilizar essa circulação. Acabamos de lançar o vinil do “A Vida é Uma Granada” e estamos preparando o documentário, feito pelo Vini Angeli, que estava lá durante todo o processo de gravação e produção do disco – inclusive eu e ele dividimos quarto. Ele registrou tudo, fez uma montagem do documentário, que está bem bonita. Sendo um cara da banda, é um documentário difícil. Tu nunca consegue exatamente saber o quanto interessante ou massa ou curioso pode ser aquilo, sabe? Mas foi legal, acho que tem algumas imagens, aquela linguagem foi uma das primeiras vezes que eu pude nos observar. Musicalmente, é um material rico porque tem muitos registros das sessões. Agora que as sessões tão prontas e a galera ouviu muito o disco, é legal voltar aos blocos de argila mais brutos. Espero que a gente lance logo.

Vou repetir uma pergunta que eu fiz para vocês na rádio Eldorado. Vocês lançaram um disco chamado “A Vida é uma Granada”, que é uma grande aventura. E a Maglore fez a música “A Vida é uma Aventura”, mas o disco deles [“V”, também lançado em 2022] é uma granada para todo lado. Não foi de propósito, né?
Não é, não é. A gente adora a Maglore, por sinal esse último disco deles tá muito bom, tem uma música que chama “Talvez”… essa música é muito massa, ouvi ela muitas vezes. Eles são uma grande banda, que fazem shows muito legais, o Teago é um puta compositor e o Luquinhas chegou somando muito bem, também é um puta compositor. Já fomos em muito show uns dos outros, já fizemos muito show junto. E fazer show junto com uma galera que bate a vibe, bate público, bate som, é massa. São nossos amigos, a gente tem idades parecidas, ambos são projetos que vem de fora de São Paulo, de extremos diferentes, e são projetos longos já. Ambos tiveram mudança de formação, acho que a gente tem bastante coisa em comum, mas acho que foi uma coincidência mesmo. Não foi um movimento coordenado. O nosso disco ia chamar “Dingo”, na verdade, porque a gente estava nesse lance de mudar o nome da banda. Então a gente ia martelar com “Dingo”. Só que a gente começou a ver a força de “A Vida é Uma Granada”. Além disso, tinha o fato de que, embora faça totalmente sentido que essa música esteja no disco, ela é um corpo estranho. Eu sinto a música, e não à toa que ela é uma música de abertura: ela não faz sentido em outro lugar do disco. Ela é um pacote.

Ela é o coro do teatro grego, ela antecipa as questões do disco.
É um pouco essa onda, sinto ela assim. Esse conceito foi crescendo na nossa cabeça: “A Vida é uma Granada” é o nome da música que aborda essa temática, mas o resto dos sons, de certa forma, eles são desdobramentos dessa explosão. Tá, explodiu, aconteceu tal coisa com aquele relacionamento, tu ficou bem, tu ficou mal, viu que tinha que mudar de cidade, mudar dentro de você mesmo. O disco é uma resposta a essa explosão da faixa de abertura. E daí a gente começou a pensar que… Cara, o primeiro disco é o “Maravilhas da Vida Moderna”, o segundo é “Todo Mundo Vai Mudar”, e aí o terceiro ia chamar… “Dingo”? Pô, é uma possibilidade, claro, mas também foi muito sedutora a ideia de dar um zoom out na carreira e perceber que existem três discos, e que os três fazem sentido, construídos com todo mundo. Embora o Bri não assine músicas no primeiro disco, ele gravou algumas faixas, fez todos os shows com a gente, desde antes do lançamento, esses três discos foram por essas quatro pessoas…

Por que é que o Bri não tá na banda desde sempre?
Cara, porque…

Ele era o cara mais velho, meio geninho, e vocês eram os três moleques?
Isso é uma das coisas, mas a gente já tinha banda desde 2003, no colégio. Nós éramos um quarteto originalmente, mas o quarto integrante saiu ali na época do terceiro colegial. Aí ficamos nós três de 2005 até 2013, talvez. E em 2013, quando a gente começou a se mexer para lançar o primeiro disco, é que o Bri começou a tocar com a gente. Bem ou mal, a gente já tinha dez anos de banda só nós três, enquanto o Bri tocava com uma galera em Porto Alegre. Ele tocava com a Giselle de Santi, uma cantora foda, com muita coisa boa, um monte de hit de rádio. O Bri tinha todo um rolê dele, enquanto nós três estávamos mergulhados na Dingo, isso era nossa vida e quem a gente era. E para o Bri, a Dingo era uma esfera menor na vida dele, era mais um dos trampos que ele tinha. Só que aí, óbvio, ele começou a ser fagocitado num movimento mútuo. Mas bem ou mal, o Bri já tá com a gente há uns nove anos. Oficialmente, ele entra depois do “Todo Mundo Vai Mudar”?

Sei que a entrevista está acabando, mas não dá para não falar da mudança do nome. Por que mudar agora? Dingo Bells já tá aí há um tempão, marca construída, SEO feitinho no Google, algoritmos ajustados. Por que mudar?
Como é que eu posso te dizer? Essa tem sido a primeira pergunta de todas as entrevistas, né? A gente se fudeu. Antes a pergunta sempre era “por que Dingo Bells?” e agora a pergunta vai ser sempre “por que só Dingo?”. A gente não se livrou de falar desse tema, né? Brincadeiras à parte, a gente tem uma base de fãs que é sólida, que está espalhada em diferentes lugares do Brasil e que é fiel, que quando a gente vai eles colam no show e é muito massa. E já é, na sua grande maioria, uma galera que nos acompanha desde o primeiro ou segundo disco, o segundo disco já tem quase cinco anos. É muita coisa, e não foram anos leves. Nosso segundo disco já tem um monte de coisa existencial. Nosso disco fala de pandemia, fala dessas coisas. Então, acho que nosso público entende nosso movimento e parte dele já se referia à banda como Dingo. A maior parte dos seres humanos no planeta Terra não nos conhece, e quando você começa a colocar essas coisas em perspectiva… eu, pelo menos, já não estava mais muito conforme aquele nome para esse projeto, que tenha esses sons. Dingo Bells tem uma coisa que é um pouco caricata, é um pouco bem-humorada, tem associação com natal, com jingle, com sinos, sabe, é uma coisa que quando tu lê, a grafia gera uma certa polêmica. E daí a gente começou a pensar, de ter passado por uma grande mudança de vida, de mudanças no grupo, um milhão de coisas, e achamos mais massa fazer esse movimento só como Dingo, ponto. Dingo é nóis. Dingo Bells… é uma série de outras coisas, embora tenha sido a gente até aqui. A gente não mudou para qualquer outra palavra, Banda Lâmpada. A gente é a Dingo: são as mesmas músicas e as mesmas pessoas, num outro momento.

Vocês chegaram a cogitar outro nome?
Não.

Era só se livrar do Bells, então?
Acho que era se livrar do Dingo Bells, do trocadilho. Para mim, era uma coisa que se tornava mais pauta do que a música em si, sabe? Qual é o ponto, sabe? É um nome que podia se tornar um obstáculo, porque pode parecer mais infantil ou de uma pilha, até religiosa, que não é o que a gente faz.

E ainda mais por ser uma banda gaúcha com todo o histórico de trocadilhos do rock gaúcho.
Exato. São os alunos do Carlo, né, meu? Mas é um pouco isso, foi uma coisa… ninguém fincou o pé. Nós tivemos várias discussões, tentando ser advogado do diabo da nossa própria vontade, mas chega uma hora que tu fala tá, ok, está tudo certo. A mudança não é radical, a gente já vinha de um momento que a banda ia ter que se colocar e se comunicar mais. Fazer isso antes de um disco é a melhor coisa que se pode fazer. Foi o que a gente fez.

Para acabar. No “Provocações”, o Antonio Abujamra sempre acabava os programas dele com uma pergunta. “O que é a vida”, Felipe Kautz?
Tu tá falando sério que essa é a pergunta para acabar?

Sim. E não pode responder que a vida é uma granada.
Bah, cara. A vida é um absurdo, cara, a vida é um absurdo do início ao fim. E o absurdo pode ser a pior das tragédias e a maior das glórias. É uma palavra que serve para isso. A gente não decide a maioria das coisas, mas a gente tem que tentar puxar a corda para algum lado, do jeito que der. E… é isso.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

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