texto por Luciano Ferreira
O ciclo da vida: nascimento e morte. Envelhecer é acumular, inexoravelmente, alegria e dor. A expressão latina Memento Mori (algo como “lembre-se de que você é mortal”, “lembre-se de que você vai morrer” ou traduzido literalmente como “lembre-se da morte”) é pra nos lembrar da nossa finitude, de quanto estamos mais perto dela, ou ela de nós, do que imaginamos. A pandemia amplificou as ansiedades, colocou muitos na posição de Max Von Sydow em “O Sétimo Selo” (1957) – cuja cena do jogo de xadrez é reprisada no clipe do primeiro single do 15º álbum do Depeche Mode, “Memento Mori” (2023), que se por um lado soa sombrio, por outro é uma ode à vida. Se a certeza da finitude é a única que temos, o que estamos fazendo com nossas vidas? São esses os caminhos que gostaríamos de percorrer ou estamos apenas “jogando” nosso melhor com as peças que temos?
Tendo chegado aos 60 anos, Dave Gahan (nascido em 1962) e Martin Gore (de 1961), assim como qualquer humano e mortal, experimentaram o ciclo dos ganhos e também das perdas. A mais recente delas foi a partida de Andrew Fletcher (1961/2022), um dos membros fundadores do Depeche, mas o próprio Gahan esteve muito perto; e Gore passou pela perda do padrasto.
Tudo isso está refletido no novo disco do Depeche Mode, o primeiro sem Fletcher e, coincidência ou não, o primeiro em que Gore (principal responsável pelas composições da banda – e os maiores hits do Depeche – a partir do segundo álbum, “A Broken Frame”, de 1982) trabalha em parceria com Richard Butler, tecladista do Psychedelic Furs – eles assinam juntos quatro das dozes faixas do álbum, incluindo o single “Ghosts Again” (Gore escreveu sozinho cinco canções enquanto as três restantes são parcerias de Gahan ora com Gore – “Wagging Tongue”; ora com Peter Gordeno e Christian Eigner; e com Marta Salogni, Eigner e James Ford na faixa de encerramento, “Speak To Me”. Aliás, a adição de Salogni aos trabalhos de produção e programação em parceria com Ford (colaborador costumaz do Arctic Monkeys e Florence and The Machine que produziu o álbum anterior do Depeche, “Spírit”, de 2017), acrescenta novas camadas e possibilidades ao disco.
Não à toa, “Memento Mori” soa como uma continuação de “Spirit” na similaridade das estruturas dos arranjos, pois muitas das canções são construídas a partir das batidas secas e graves, enquanto os arranjos vão agregando uma série de sons através de melodias curtas e simples, riffs distorcidos, camadas de teclado, novas camadas percussivas sintetizadas, vozes e barulhos diversos que conectam a música do grupo com a sonoridade da música industrial, elemento presente na música do Depeche desde os anos 80. Há também momentos em que timbres e batidas remetem a “Violator”, de 1990 (especialmente “My Cosmos is Mine”) e “Songs of Faith and Devotion”, de 1993 (tanto “My Favourite Stranger” quanto “Always You”).
Se a sonoridade de “Memento Mori” remete a trabalhos anteriores, a temática mudou de foco. Enquanto o disco anterior trazia um discurso politizado, de letras que se debruçavam sobre os caminhos que a sociedade estava tomando e o que estávamos fazendo em relação a isso (“Onde está a Revolução?” perguntava Gahan em “Where’s Revolution”), aqui a pergunta é para o eu interior. E apesar de não ser somente sobre isso que as letras discorrem, vide a belíssima “Don’t Say You Love Me” e suas passagens orquestradas, muitos dos temas tratam sobre morte, dor, perdas e angústias.
Embora desde sempre o Kraftwerk seja uma referência na música do grupo, de quem são “descendentes” diretos, é somente aqui que a conexão do ingleses com os alemães soa totalmente evidente, seja no uso de timbres e efeitos de associação imediata (“Wagging Tongue”) ou chegando até a soar como uma homenagem aos pais da música eletrônica em “People are Good”, canção de versos marcados pela ambiguidade, não permitindo de imediato concluir se Gahan discorda de Nick Cave, que certa vez escreveu que “as pessoas não são boas”. Considerando a abertura da dupla para novas parcerias, não deixa de ser interessante pra um futuro próximo pensar uma colaboração com o ex-Kraftwerk Karl Bartos.
Da parceria com Butler surgem as canções mais inusitadas do disco: “My Favourite Stranger” (a que mais carrega em barulhos intermitentes) e na profusão de synths de “Caroline’s Monkey”. Mas o fruto mais saboroso dessa “união” é a ótima “Ghosts Again”, canção com força de hit instantâneo – que quase disfarça uma letra pesada –, algo que a banda não conseguia desde “Precious”, do álbum “Playing the Angel” (2005).
A conexão com “Violator” e com a fase oitentista do Depeche percorre quase todo o disco, mas não de forma direta e, provavelmente, não intencional – Gahan canta hoje de uma forma bem diferente daquela época e a forma de compor de Gore já não é mais a mesma, influenciado, inclusive, pelo uso da guitarra. Mas, ainda assim, faixas como “Always You” e “Never Let me Go” (a batida remete a “She’s Lost Control”, do Joy Division) carregam elementos que permitem algumas associações. E isso não é ruim, pelo contrário, é um dos elementos que permite que “Memento Mori” seja um álbum mais “solto” que seu antecessor, se não nos temas, ao menos na sonoridade.
“Speak to Me” fecha o álbum quase da mesma forma com que “My Cosmos is Mine” abre: a voz profunda de Gahan pairando quase etérea sobre um instrumental cheio de camadas sonoras atordoantes e envolventes. Ao mesmo tempo, a letra retoma o tema da busca do eu interior – se “My Cosmos is Mine” reivindica a manutenção da ordem do seu próprio mundo/cosmo, em “Speak to Me” há a vontade relutante de “estar” (com alguém ou algo) ainda que correndo o risco do desapontamento. É um fechamento que se conecta de forma perfeita encerrando a narrativa de um disco que assume um tom um tanto sombrio, tanto nas letras quanto na densidade quase sufocante do instrumental (inclusive na arte da capa), fala de muito mais coisas, e nos remete a outro termo latim que poderia ser tomado como um complemento: “Carpe Diem”.
– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.