entrevista por Bruno Lisboa
Segredo muito bem guardado da cena alternativa mineira, a banda Pelos chegou ao seu quarto – e melhor – álbum de estúdio com o recente lançamento de “Atlântico Corpo”, um álbum intenso de rock recheado de canções fortes e versáteis que versam sobre o caos contemporâneo numa combinação mágica de lirismo político / social nas letras, guitarras altas no som, belos arranjos e acenos a outras sonoridades como o afrobeat e o funk soul.
Formada em 1999 no Aglomerado da Serra, periferia de Belo Horizonte, a Pelos hoje tem em sua formação Robert Frank (voz, guitarra e piano), Kim Gomes (guitarra), Heberte Almeida (guitarra, violão, piano e voz), Thiago Pereira (baixo) e Pablo Campos (bateria). O álbum “Atlântico Corpo” foi produzido na Ilha do Corvo, estúdio de Leonardo Marques, espaço que tem sido celeiro de parte considerável da boa música produzida nas Geraes.
Na conversa abaixo, Robert Frank, Kim Gomes e Thiago Pereira falam sobre “uma banda brasileira, independente, preta e periférica”, as intenções alimentadas com “Atlântico Corpo”, o processo de composição e gravação do álbum, influências artísticas, como é ter a cidade de Belo Horizonte como fonte de inspiração, participações especiais, planos futuros e mais. Confira!
Se a arte é especular ao tempo, “Atlântico Corpo” é um disco que soa, na mesma medida, belo e caótico, um fruto natural dos tempos tempestuosos em que estamos. Quais foram as intenções que vocês alimentaram para com o público a partir desse novo trabalho?
Thiago: Existe, de fato, a tentativa de espelhar um tempo nesse “Atlântico Corpo”; na verdade, tempos. Um primeiro, que entendo ser a trajetória de mais de duas décadas de atividades de uma banda brasileira, independente, preta e periférica e o lastro histórico e criativo contido nesse período. Muito antes de entrar na banda, de um ponto de vista pessoal e profissional, via a Pelos como um caso raro, uma das poucas bandas que permaneceram de um período que acho bastante interessante e diria, por que não, seminal, dessa ideia de ‘cena independente em BH’, algo que localizo com muita força a partir de 2005, 2006. Para além, do meu referencial de observação, falo de um trabalho que nunca foi visibilizado de uma maneira que considero ‘justa’ ou ‘coerente’. Sempre li a Pelos como um projeto bem particular na música daqui, e do Brasil, e algumas medidas, muito pouco incensado. Ao mesmo tempo, sempre me inspirou esse material de que eles são feitos: resistência, resiliência, amor à causa – sendo esta causa, fundamentalmente, a arte que eles criam. Nesse sentido, estar na Pelos é até meio chocante pra mim; ainda rola uma ‘síndrome do impostor’ pesada (risos). Mas, abusado que sou, estou topando tudo, e me lembro que, já em nossos primeiros encontros pra discutir a possibilidade de um novo disco, a ideia de retratar um tempo, um agora, e fazer disso um discurso sônico e lírico foi uma baliza fundamental. “Atlântico Corpo” é a realização disso, certamente. E, honestamente, a questão do ‘público’ foi amplamente debatida também desde o início do processo, e ainda não sei se chegamos a uma conclusão final. Acho que existe uma espécie de endereçamento mesmo no trabalho, mesmo na amplitude que acredito que ele tem: até onde sei, a audiência da banda é qualitativamente grande, no sentido que fãs de diferentes gêneros musicais gostam da Pelos, desde sempre, em todas as ‘fases’. Mas este é um trabalho mais firmado na tônica da negritude, em todos os sentidos: em música e discurso, pautado por um tempo de urgência em relação à estas questões. Assim, acredito (e desejo bastante) que as pessoas que se veem envolvidas nessa questão – e gostaria que fossem todas as pessoas, por motivos óbvios – podem se interessar pelo disco. É certo que ele possuí ‘statements’, declarações por vezes belas e caóticas, como você se referiu, sobre e desse tempo. É sim fruto de tudo isso.
Musicalmente esse é o trabalho mais abrangente / diversificado do grupo. Tal fato é perceptível nas diversas camadas sonoras que cada faixa tem. A inserção dos metais e elementos percussivos são bons exemplos para entender essa relação. Nesse sentido, como se deu o processo de composição de “Atlântico Corpo” e em que momento vocês perceberam que seria de grande valia pensar nos arranjos dessa forma?
Kim Gomes: Na minha opinião, “Atlântico Corpo” é o disco mais maduro que a banda já produziu até hoje, fruto de um aprimoramento musical e pessoal de cada um de nós. Acho que o primeiro passo para esta evolução sonora da banda começa no EP “Olho do Mundo” de 2012, onde gravamos com um trio de metais e usamos elementos percussivos eletrônicos. Desde então, além do tradicional (baixo, guitarra, batera e piano), algumas composições são pensadas e concebidas a partir de outros timbres ou instrumentos, seja num solfejo ou algo do tipo, ou são inseridos depois na gravação. É natural da nossa parceria e afinidades de décadas.
Thiago: O processo de composição do disco, na minha visão, foi o momento mais marcante. “Atlântico Corpo” é fruto da pandemia, em diversas de suas etapas, e isso seguramente contaminou o disco nesse processo inicial. De certa maneira, é um trabalho que nasceu de conversas, cervejas, concordâncias, cervejas, discordâncias, revelações, cervejas, intimidades, mais cervejas… Tudo com uma intensidade meio febril, justificada pelo isolamento, pelo medo, etc. Foi um processo de fuga meio terapêutico também. Aí entra o processo de imersão que fizemos em Casa Branca, próximo de Belo Horizonte. Banda reunida em uma casa, por conta de compor, mostrar ideias, tocar, arranjar. Diria que uma parte substancial do que é o disco veio dali. Acho que todos vamos nos lembrar, por exemplo, de “Festa do Corpo Banto”, que nasceu de um tema meio radioheadiano no teclado e virou uma espécie de afrobeat. A letra de “Sentimento Oceânico” veio de uma conversa minha com Robert, que depois amarrei com leituras minhas de Paul Giroy e Freud… e por aí vai. Em relação ao ‘resultado final’, tudo foi bastante orgânico, natural, no sentindo de intuir que determinadas canções – e este é um disco de canções – ‘pediam’ outras camadas de sentido. Algumas coisas foram pensadas em estúdio, na Ilha do Corvo, com o Leonardo Marques, e tanto ele como o próprio estúdio foram fundamentais nesse processo de dimensões sônicas – gravar com ele também significou buscar a linda assinatura que ele possuí. Mas se bem me lembro, entramos pra gravar (e gravamos boa parte do material ao vivo, tocando juntos, o que também ajudou na construção dessas paisagens, ambiências e climas) já bastante ‘arranjados’, sabendo o que queríamos e como queríamos. “Festa do Corpo Banto”, por exemplo, já foi pensada em sua composição com os metais e a percussão; já o mellotron em “Dela em Mim” foi algo posterior, já na Ilha e suas imensas possibilidades…
Liricamente as composições possuem um caráter poético agridoce ao retratar com destreza a dor e a beleza vividas nos dias atuais. Esse exercício, aliás, é uma marca contumaz do grupo. Procurando mapear em como se dá essa construção, quais referências serviram de inspiração para que vocês construíssem essa identidade própria?
Robert: Penso que com o decorrer dos anos passamos a ficar muito mais abertos quanto as influências diversas que carregamos desde a infância e reconhecer que isso também faz parte de nós enquanto artistas. É fazer uma canção mirando numa aura nick caveana e acertar num Roberto Carlos setentista e estar tudo bem. Entender que essas belezas de encontros e desencontros criativos é que constroem nossa identidade musical e uma experiência coletiva ímpar que nos faz estar juntos tanto tempo. E claro, isso só funciona porque somos uma banda onde integrantes se respeitam e sobretudo admiram o trabalho artístico uns dos outros.
Thiago: Da minha percepção, a Pelos sempre foi uma banda preocupada com o texto, com as letras. Sempre curti as letras da banda. O que propus, em mim e para os outros, neste este trabalho foi o fato de trabalharmos apenas com o português e afiar ainda mais um discurso, no sentido de ‘botar pra fora’, sem hermetismos ou grandes camadas ocultas de sentido, o que queríamos dizer agora. Pessoalmente, as que assino apenas letra, é fruto de um exercício muito instigante de ‘letrar melodias’, coisa que não tinha hábito de fazer. Obviamente acredito que são linhas vocais muito inspiradoras, e, importante, tudo se conectava dentro do contexto da criação: não entendi o texto como divorciado de um riff, de um clima, de uma ambiência criada por toda a banda. De alguma maneira, foi esse conjunto que guiou as letras, no final. Sobre inspirações, são muitas… O Brasil é um país rico demais em letristas, poetas, bons textos, fora e dentro do contexto musical. De Cartola à Mano Brown; de Aldir Blanc à Renato Russo, passando por diversas outras referências. O grande exercício, creio, foi mapear nossas vivências, percepções, desejos, em um discurso lírico coerente com o restante da obra. Gosto muito das letras do Robert e do Heberte no disco!
A faixa “Da Serra ao Bonfim” é um passeio geográfico / cultural / social sobre Belo Horizonte. Qual a importância de evidenciar essas características / referências locais? E ainda: qual a papel a cidade exerce no fazer artístico da banda?
Kim Gomes: “Da Serra ao Bonfim” surge de um riff mais metal e antigo que eu fiz na época em que tocava na banda Cadelas Magnéticas (banda que mistura pós-punk, pontos de terreiro e noise com a poesia marginal de Cesar Gilcevi) e que se encaixou perfeitamente com a letra do Thiago e elementos mais swingados, como congas, cowbell e a guitarra à la Nile Rodgers do Heberte. Thiago nos presenteou com esta epopeia, homenageando a trajetória da banda, referenciando nossos habitats naturais, lugares e pessoas muito importantes de BH e que devem ser celebradas todos os dias, como o Edmundo e Andrea da Casa Matriz (pai e mãe de todas as bandas independentes da cidade) e a travesti Cintura Fina, personagem da antiga boemia belo-horizontina, esquecida e apagada da história como muitas outras, mas que segue “abençoando nossos rolês”.
Thiago: Como você mesmo aponta na primeira pergunta, esse é um trabalho que tem sim um marcador temporal; assim como também possuí por vezes um espaço de certa forma definido, mesmo que antes apenas imaginado. Para mim, por exemplo, “Ao Sul de Zona Alguma”, que já estava pronta, gravada, se materializou na minha cabeça quando fomos fazer as fotos de divulgação do disco, no alto do Aglomerado da Serra, talvez o ponto mais meridional de Belo Horizonte. Era naquele cenário que o texto na minha cabeça foi encenado, mesmo sem conhecê-lo. Já “Da Serra ao Bonfim” é o contrário, a intenção de localizar chegou antes mesmo de escrever a letra. Queria fazer uma homenagem à própria Pelos, à história da banda, daí localizar “Da Serra” (lar de Robert e Heberte) “ao Bonfim” (onde o Kim mora), os três como os integrantes mais duradouros do grupo. Fiz numa ressaca fudida mas feliz, logo depois de chegar em casa da nossa primeira imersão, escutando a base que fizemos lá. E de cara já existia o propósito dessa ser uma música festeira, celebratória, um lado que queríamos afirmar pra caralho também. Então ficou isso, um passeio, um panorama meio cinematográfico da BH que mais me interessa: boemia, noturna, acolhedora de vivências múltiplas por vezes tidas como ‘marginais’. O texto cita então referências à própria banda (‘estragos não sutis’), locais sagrados para a música na cidade (o Matriz, de Edmundo e Andreia) e sugere canonizar a lendária travesti Cintura Fina como protetora de todos nós. Nesse sentido, BH foi uma musa presente na criação do disco também, nossas quebradas e muitos mundos constritos aqui.
Outra que se destaca é “Lágrimas Brancas”, canção pungente que aborda o racismo. Como se deu o processo de criação dessa faixa e a ideia de estabelecer o diálogo / resposta a “Lágrimas Negras” (Nelson Jacobina / Jorge Mautner)?
Robert: “Lágrimas Brancas” me veio como um presente, aqueles famosos sopros de inspiração que chegam “do nada”. Antes mesmo de pensar a letra eu já sabia do que queria falar nela e mandei uma mensagem aos caras falando que estava fazendo uma música com esse título e temática. Levei um tempo pra traduzir em letra a névoa criativa na minha cabeça e penso que o resultado é exatamente o da ideia inicial, trazer um diálogo-contraponto-quase homenagem à obra prima de Mautner/Jacobina. Foi unanimidade escolhê-la como primeiro single. Creio que o videoclipe para essa música, dirigido pelo Gabriel Martins (diretor de “Marte Um”, filme escolhido para representar o Brasil no Oscar 2023) trouxe ainda mais força para o discurso da música. Uma bela tradução visual e uma ampliação do sentimento que essa música nos traz.
Musicalmente “Atlântico corpo” é um disco de rock, mas que estabelece diálogo com outros ritmos como o afrobeat e soul. Acredito que essa miscelânea seja fruto das diversas identidades que cada integrante traz. Recentemente, inclusive, vocês fizeram um show no qual evidenciaram suas bases musicais. Então como seu deu a construção desse show e como é, nos bastidores, o processo da parte instrumental das composições?
Kim Gomes: Fizemos em julho o show “Referências”, que faz parte de um projeto comemorativo em relação às décadas de atividade da Pelos, que inclusive segue em 2023, com shows e uma mostra-exposição audiovisual dos nossos arquivos. A construção desse show foi baseada em, democraticamente, montar um show em que expuséssemos parte de nossos afetos musicais como músicos e como parte da Pelos. Isso significou fazer versões de Bauhaus, Milton Nascimento, TV On The Radio, Simon and Garfunkel, Meta Metá, Radiohead, David Bowie, Stevie Wonder, Smashing Pumpkins e grande elenco… Em relação à parte prática, os preparativos para os primeiros shows do “Atlântico Corpo”, em que temos 6 ou 7 músicos de apoio, são sempre mais trabalhosos no sentido de organizar agendas e ensaios. Mas sempre contamos com excelentes profissionais da música ao nosso lado e temos um maestro na banda, que cuida das partituras e regência, que é nosso benemérito Heberte Almeida, aí a parte instrumental flui muito bem. Mas fizemos recentemente um show com formato ‘mínimo’, ou seja, apenas os cinco, e funcionou bem também, o que é importante por questões de logística, etc.
Thiago: Vi essas identidades musicais de cada um de certo modo ‘filtradas’ e ‘fragmentadas’ em um processo coletivo. Fizemos inclusive playlists pessoais de referências possíveis para o “Atlântico Corpo”, como um método, de maneira a entender o ‘clima’ que cada um tinha em mente para esse novo trabalho. Curiosamente, me pareceu um exercício bastante produtivo: volta e meia encontro as ambiências que escutei nas listas de cada um vazadas no disco. Sobre a questão do rock: discutimos bastante internamente esse assunto, do fazer rock, do se identificar como alguém do rock. Acho que de alguma maneira “Atlântico Corpo” também alcança essas crises de representações. Acredito que é comum entre nós um desprezo absoluto por essa ideia de rock, capturada artística e historicamente, em uma performance masculinizada, branca, primeiro mundista, rica, tosca, formuláica. Algo que, na prática, deu numa merda muito grande: o louvor ignorante e limitado pelo chamado ‘classic rock’ e a estética cafonérrima que o circunscreve, etc; e, em última e agonizante instância, a simpatia e o apoio à figuras como Bolsonaro e lixos parecidos que representam os valores mais conservadores, racistas, homofóbicos, elitistas e escrotos possíveis. Somado a isso, uma falta de interesse ou de diálogo latente pelo lado mais hipster da chamada ‘esquerda festiva’ ou algo do tipo, que no mais produziu pouquíssimos discursos musicais que tematizassem a desgraça em que nos enfiamos nos últimos anos; salvo raras e louváveis exceções, no meu ponto de vista.
Na ala das participações, Michelle Oliveira (cantora de bandas como Cromossomo Africano) faz um exímio trabalho em três faixas (“Lágrimas Brancas”, “Ao Sul de Zona Alguma” e “Festa do Corpo Banto”). Como se deu a aproximação de vocês e quais as contribuições que ela trouxe para o resultado final do disco?
Kim Gomes: Eu pessoalmente conheço a Michelle há anos. Temos vários amigos em comum do conjunto habitacional IAPI localizado na Lagoinha, região de BH em que nasci e resido até hoje. Já tínhamos trabalhado com a Michelle no disco anterior, “Paraíso Perdido nos Bolsos” (2016). Na ocasião ela gravou o coro e o solo na faixa “Fausto de Gueto”. Ela também faz diversas participações na nossa outra banda irmã, a Diplomattas. Mas no disco “Atlântico Corpo” a participação dela foi bem mais presente e importante para alcançarmos o resultado final que almejamos desde as nossas primeiras conversas regadas a muita cerveja, como disse o Thiago anteriormente. A Michelle é incrivelmente talentosa e dona de uma voz belíssima e muito potente. No processo de gravação tínhamos uma ideia geral das partes onde entrariam as vozes e coros mas demos total liberdade para Michelle criar e interpretar as melodias do jeito dela, que acrescentou muito nas músicas.
Por fim quais são os planos futuros? Pretendem seguir na estrada?
Thiago: Soltar esse “Atlântico Corpo” no mundo, programar shows, mostrar o trabalho para o maior número pessoas possíveis. O retorno até agora, tanto sobre o disco, quanto sobre os primeiros shows tem sido incríveis, emocionantes. Algo que inspira a tentar ampliar ao máximo o alcance de possíveis ouvintes ao trabalho. Esse é um disco que traduziu parte de coisas importantes em nossas vidas que talvez vocalize as vidas de outras pessoas também. Chegar aí, através de audições, shows, parcerias, é um objetivo legal.
Kim Gomes: Certamente seguiremos mostrando nosso trabalho pra geral e sempre em busca de parcerias e oportunidades que é o que nos move espiritualmente e financeiramente enquanto banda.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Rafael Freire