introdução por Nelson Oliveira
faixa a faixa por Leandro Pessoa
Quanto tempo é preciso para traçar um bom panorama sobre a sociedade, sem necessariamente entrar em discussões acadêmicas? No caso de “Surreal”, EP do baiano Pessoa, cerca de 10 minutos são suficientes para dissertar sobre os labirínticos tempos que vivemos em 2020.
Feito para ouvir rapidinho, de uma só vez, “Surreal” traz uma coleção de pensatas e provocações tão irônicas quanto diretas e imagéticas. Como pede o bom rock and roll, esse conjunto é embalado por riffs dançantes e refrões cantaroláveis, fáceis de serem decorados. Hoje em carreira solo, Pessoa dá continuidade ao que fez por quase uma década como frontman da banda soteropolitana Callangazoo, antes de o grupo entrar em um hiato.
Gravado em isolamento, respeitando o distanciamento social imposto pela pandemia de covid-19, “Surreal” foi tendo seus pedaços colados pouco a pouco, de modo remoto. Às cinco composições de Leandro Pessoa, se juntaram a colaboração do letrista Ronaldo Nobre, as guitarras do bluesman Eric Assmar e, por fim, a produção, a mixagem e a masterização de Iago Guimarães.
A própria situação sanitária provocada pelo coronavírus foi um dos temas tratados no EP do cantor, guitarrista e compositor soteropolitano. Por conta de todo o peso psicológico decorrente da necessidade de ficar em quarentena e dos desdobramentos da doença, surgiu a balada “A Lei”, primeiro single do trabalho. “Ela vem exatamente da urgência de cantar sobre o que estamos vivendo”, de acordo com o artista.
Outra faixa em explícita sinergia com o agora é “Big Data”. Nela, Pessoa reflete sobre os algoritmos utilizados em ambientes digitais e cria uma persona controladora da informação, semelhante à presente em “O Cabeção” – faixa que encerra o aclamado “UHUUU!”, da Cidadão Instigado.
Apesar de a atualidade ser mais clara nas músicas citadas anteriormente, temas absolutamente contemporâneos estão presentes em todas as canções de “Surreal”. Em “O Bom Filho à Casa Torna”, temos a xenofobia; em “Bufo Alvarius”, o uso indevido do conhecimento; na faixa-título do EP, o narcisismo incentivado pelas redes sociais.
O Scream & Yell convidou Pessoa para bater um papo sobre o que ele estava refletindo ao trazer tantos assuntos quentes para a concepção de “Surreal” e ele topou. Confira, a seguir, os comentários do artista, faixa a faixa.
01) Surreal – É uma canção convite. Ela batiza o álbum ao mesmo tempo que avisa o ouvinte de que, nos próximos minutos, não teremos promessas fáceis. Foi escrita quando eu já tinha as outras faixas, então de alguma maneira ela condensa em aspectos mais gerais as provocações que estão presentes no álbum. É mesmo um mundo muito Surreal que estamos vivendo. Na gravação, contamos com as guitarras do bluesman Eric Assmar.
02) Big Data – Uma parceria com Ronaldo Nobre em que refletimos sobre o uso dos algoritmos na influência do comportamento humano – essa corrida louca de views e likes que vivemos. Imaginamos uma voz para o “Big Data”, uma espécie de “Grande Irmão” que anuncia o seu poder de monitorar preferências e controlar acessos no mundo virtual. Na gravação, para transportar o ouvinte a essa atmosfera, Iago Guimarães trouxe synths com texturas de ficção científica.
03) O Bom Filho à Casa Torna – Uma canção sobre xenofobia, que narra a saga de um migrante imaginário que é vítima de intolerância em diferentes culturas. No final, o personagem vive uma espécie de revelação, que seria a superação do sentimento de vingança. Ela foi escrita como um folk – inspirado no Bob Dylan, o nosso trovador que atravessou para o século XXI –, mas, quando trazida para o universo Surreal, teve como ponto de partida uma linha de baixo dançante.
04) A Lei – Canção escrita durante a quarentena, em um dia que o meu notebook tinha pifado. Fui para a companhia do violão e colhi a melodia. Na hora de colocar a letra, recorri a uns escritos que tinha no diário, que refletiam sobre os primeiros dias de pandemia. Ela nasceu com essa urgência de cantar sobre o que estamos vivendo (ainda não temos vacina) e acabou sendo o primeiro single do álbum. Depois de lançada, a faixa ganhou um clipe colaborativo dirigido por Weslei, reunindo cenas da rotina de distanciamento social de alguns amigos – aproveito o espaço para agradecê-los mais uma vez.
05) Bufo Alvarius – É um rock haicai que integrava o repertório do Muito Barulho Por Nada – um coletivo de artistas [do qual Pessoa participava] que, nos primeiros anos da década passada, promoveu um encontro de linguagens para apresentações em bibliotecas e cinemas. O estalo de como essa música abriria o leque das temáticas do EP Surreal me veio depois da leitura de “Como Mudar a Sua Mente” do Michael Pollan. Para a gravação, eu e Iago buscamos um arranjo dançante, destacando os aspectos hipnóticos de um riff de guitarra.
– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE. A foto que abre o texto é de David Lingerfelt.