entrevista por Renan Guerra
O compositor, cantor e pianista pernambucano Zé Manoel é um daqueles nomes que se deve acompanhar sempre com atenção: sua poesia, seu canto e seu olhar sobre o mundo funcionam como um respiro de beleza em meio ao caos. Zé possui dois discos autorais – “Zé Manoel”, de 2012, e “Canção e Silêncio”, de 2015 – e um songbook chamado “Delírio de um Romance a Céu Aberto”, que reúne vozes como Ná Ozzetti, Fafá de Belém e Juçara Marçal em belas reinterpretações.
Nesse ano, Zé Manoel retorna com seu terceiro disco de inéditas, a ser lançado nos próximos meses pela gravadora Joia Moderna, em um trabalho que contará com a participação de nomes como Luedji Luna e Bell Puã. O primeiro lançamento dessa nova fase é a canção “História Antiga”, uma espécie de crônica sobre a violência policial contra a população negra. De olhar delicado, a faixa apresenta um personagem que canta de um futuro utópico, numa fagulha de esperança. É canção que deve ser ouvida.
De fala mansa e tímida, Zé também está presente nos créditos de discos importantes dos últimos anos, como o recente “Só”, de Adriana Calcanhotto, e em “Humana”, de Fafá de Belém – Zé Manoel também participa do tributo ao Skank lançado pelo Selo Scream & Yell. Sua qualidade de transitar entre inúmeras cenas e de conversar com artistas de diferentes gerações só reforça a sua importância e a sua força enquanto um artista de nosso tempo. Para entender o que move Zé Manoel e para saber mais sobre a construção do novo disco, conversamos com o artista de forma virtual. Confira a entrevista na íntegra:
Pra começar, eu pergunto como você está nesse tempo de quarentena, em meio a tantas questões que estão florescendo nesse momento?
Tem sido difícil a princípio para todo mundo, mais para umas pessoas do que para outras. Comecei a quarentena em São Paulo, passei um mês, e vim pra Recife até ter uma noção melhor do que irá acontecer, pra poder voltar pra São Paulo. Estou há dois meses aqui em Recife, mais próximo de minha família, e também está difícil, assim como São Paulo. Tenho acompanhado através de conversas com amigos que, principalmente dentro da comunidade preta, indígena e periférica, além da preocupação com a pandemia em si, há a preocupação com a manutenção da vida, da nossa saúde mental inclusive, porque são ataques diários de todos os lados e tem sido difícil lidar com essa chuva de acontecimentos, de violência contra o povo preto e indígena. E olha que a gente está discutindo a violência contra o povo preto, se você pegar a população indígena, é sub discutido, são pessoas que estão bem por elas mesmas, sem nenhum tipo de apoio dentro do sistema político que governa o Brasil hoje em dia, que politicamente nunca foi muito bom para as comunidades indígenas, num cenário de não existirem políticas voltadas para eles, mas sim políticas voltadas para a matança deles. É até engraçado assim isso de falar “eles”, se referir aos índios como “eles”, nós também somos, né? Tem uma fala que ouvi de uma amiga que diz que todo mundo no Brasil é indígena, a não ser quem tem acho que duas gerações vindas da Europa ou de outro país, mas fora isso todo mundo tem sangue indígena e essa ideia nossa de que enxergar a pessoa indígena como os outros é um grande equívoco. Mas enfim, é isso, tem sido difícil mesmo e as pessoas e os amigos com quem converso estão todos nessa de cuidar da própria saúde mental, porque é uma outra forma de adoecer e tem muita gente adoecendo.
Esse primeiro single que você está lançando fala sobre essa violência do Estado contra as populações negras. Eu queria que você me contasse um pouco sobre a composição, porque quando eu ouvi, apesar de muito triste, eu achei muito bela, pois ela se constrói de uma perspectiva de futuro, de um novo futuro.
Sim. Fiz essa música no ano passado (2019). Ela é uma crônica exatamente desse ano, mas que também pode ser de qualquer ano: 2019, 2020, 1800 e tanto, é assim, é uma história que há muitos anos é a mesma. Por isso o nome da música é “História Antiga”, pois é uma história muito antiga que se repete. Na verdade, ela não tinha essa segunda parte, em que falo que estou contando essa história do futuro, isto é, que estou no futuro contando uma história do passado, e esse passado é exatamente o que a gente está vivendo agora. Essa ideia de que a gente vive num mundo moderno é uma grande invenção, uma grande mentira, porque não tem nada de moderno, a forma como a sociedade é construída é muito antiga, muito inadequada para a nossa realidade. Então estou contando essa história lá do futuro dizendo o quanto isso é inadmissível, como tudo isso é uma coisa muito inadequada. Na parte final falo exatamente desse lugar que é a utopia, um lugar regido por Xangô onde não há esse tipo de injustiça, esse tipo de violência contra a população preta. Eu não queria que essa música fosse uma mensagem de desesperança. Pensei: “eu preciso finalizar de outro jeito, pois não quero ser portador da desesperança”, afinal de contas, se a gente perde a esperança de que isso possa mudar, tudo deixa de fazer sentido. E é engraçado falar, por exemplo, que tem tudo a ver lançar ela agora, só que tem tudo a ver lançar ela em qualquer momento, porque a todo o momento essas violências estão acontecendo. Então, no momento que eu lançar eu vou estar falando do momento atual.
Para você que veio do Nordeste para São Paulo, que já está trabalhando aqui há alguns anos, qual é a sua experiência de mudar de uma outra realidade para uma cidade que a gente sabe que ainda é muito inóspita e agressiva; muitas vezes a Luedji Luna, por exemplo, fala da vivência dela de chegar em São Paulo e se sentir numa cidade que tenta apagar as populações pretas de diferentes formas.
Exatamente. Eu tive essa experiência duas vezes. A primeira foi quando eu saí de Petrolina – que é a minha cidade no interior de Pernambuco – e fui pra Recife. E foi a primeira vez que eu entendi uma sociedade… não que Petrolina seja uma paraíso, muito pelo contrário, Petrolina reproduz a sociedade como qualquer cidade do interior, mas talvez como são cidades muito mestiças por causa das migrações – no caso de Pernambuco e de Petrolina, a migração dos fugitivos holandeses que foram pessoas brancas, aí temos as pessoas negras que fugiram dos sistemas de escravização, bem como os indígenas, que já estavam lá, então virou aquela miscelânea pra dentro do Brasil, que é de onde eu venho. Em Petrolina essas coisas não eram tão evidentes. Quando eu vim pra Recife comecei a perceber um pouco mais essa estrutura da sociedade racista, ficou um pouco mais evidente pra mim, essas divisões, aqui tem as famílias holandeses, as famílias portuguesas, as periferias pretas, indígenas, comecei a entender melhor. Quando fui a São Paulo, já entendi outra estrutura, só que eu já vinha dessa experiência de Recife, então eu estava muito mais dentro de uma comunidade onde eu me sentia acolhido, uma comunidade preta de artistas e tal. No geral, São Paulo me acolheu muito bem. Eu já cheguei a São Paulo morando na casa de Xênia França – morei quatro meses lá –, então, talvez eu não tenha sentido esse desamparo. Por exemplo, hoje moro do lado do Aparelha Luzia [centro cultural e quilombo urbano de São Paulo], e quando estou mais ou menos, vou lá e encontro um monte de amigos, então tenho esses refúgios em São Paulo e isso me ajuda muito a não me sentir sozinho, a entender que tem muita gente no mesmo rolê e muita gente que está fazendo muitas coisas importantes. Tem tanta gente incrível fazendo coisa incrível nesse momento que isso serve como um alento, saber que esse mundo existe apesar dele não ser retratado em lugar algum praticamente. Esse mundo existe e existe muito forte; como existe em Salvador já há muito tempo essas organizações do Ilê Aiyê, essas organizações das pessoas entenderem muito mais sobre a sua realidade. Isso sempre existiu, só que não foi retratado, então ocupar esse lugar de certa forma me fortalece. Mas de fato, isso não tira esse sentimento de não-pertencimento que muitas vezes a gente em São Paulo sente na cidade. E em São Paulo, o racismo e os preconceitos são muito mais claros, é a diferença que achei para Recife, então lidar com isso de forma mais clara também me ajudou a lidar melhor, pois quando a coisa é mais explícita e você consegue perceber, é até mais fácil de você se defender.
Você falou dessa rede de amigos e isso é uma questão forte também no seu trabalho: você trabalha muito ao lado de amigos, de colegas da sua geração, você tem muita troca. Qual é a importância para você de estar no entorno dos seus pares e de produzir e criar junto com eles?
Pois é, sempre foi assim na minha carreira. Acho que isso dá muito sentido ao que eu faço, é um dos motivos que me alegra em âmbitos diferentes. Agora, em São Paulo, por exemplo, tem Luedji [Luna] no meu disco; tem Bell Puã que é uma poetisa maravilhosa aqui de Recife, que venceu o Slam BR [Campeonato Brasileiro de Poesia Falada] uns três anos atrás; tem Stephane San Juan, que é meu amigo músico e tocou comigo durante muito tempo; tem Luisão Pereira que está produzindo e é de Salvador. Então, estar produzindo e estar ao lado de amigos e de profissionais incríveis, que admiro, me dá respaldo a criar e otimizar o que estou fazendo, é uma forma de trabalhar que nunca quero deixar de lado. Acredito que isso dá mais sentido ao que estou fazendo e deixa tudo mais poderoso.
Entre o seu último disco e o próximo lançamento tem um intervalo de cinco anos de trabalhos de inéditas. Nesse meio tempo teve o “Delírio de um Romance a Céu Aberto”, mas não teve um disco inteiro de inéditas, então esse é um trabalho que você está produzindo há bastante tempo?
Exatamente, e estou muito ansioso para lançar esse disco. Comecei a gravar já tem um tempo, era para eu ter lançado ano passado, a gente teve vários contratempos. Esse é um disco que estou fazendo por conta própria, eu tinha escrito em editais por dois anos seguidos, nunca fui aprovado; então decidi que ou eu fazia esse disco ou ficaria esperando por editais e ele nunca ia sair. Inclusive Zé Pedro, da [gravadora] Joia Moderna, me chamou ano passado para nos encontrarmos e disse “Zé, você precisa fazer esse disco”, e me deu uma força. A partir disso aquela ideia que já estava “preciso fazer, preciso fazer”, eu tirei do papel e comecei de fato a organizar tudo, foi muito importante esse empurrãozinho do Zé Pedro para eu começar a fazer. E agora estou muito ansioso de lançar, justamente porque faz tempo que quero lançar coisas novas. Isso tudo claro, considerando que foi uma alegria muito, muito grande o “Delírio de um Romance a Céu Aberto”, tanto o CD quanto o DVD. Esse trabalho foi a minha porta de entrada em São Paulo, foi a partir dali que eu abri uma nova rede de amigos e contatos na cidade, de pessoas que admiro muito. É um projeto extremamente importante para mim. Mas ao mesmo tempo eu vinha caminhando com essa ansiedade e vontade de lançar coisas novas.
E você acha que nesse caminho você já mudou muito esteticamente também? Pois são cinco anos sem lançar disco, você viveu muita coisa nesse meio tempo.
Muita coisa. Acho que mudou, por exemplo, se você pegar o primeiro disco, eu estou falando muito da natureza, do Rio São Francisco, era a minha vida lá, era o que eu estava com vontade de falar. Quando vim para o Recife eu já estou falando muito mais do mar, refletindo muito a minha vida em Recife no “Canção e Silêncio”. E esse novo reflete muito a minha vida em São Paulo e com o que lido diariamente. Não lido com natureza, tanto que nesse disco acho que não há nenhuma música com referência à natureza e nem nada; estou lidando com questões muito mais práticas da cidade em si, coisas que lido todos os dias. Então, uma música como “História Antiga”, estou falando sobre a violência contra o povo preto, em outra eu já estou falando sobre o amor preto, em outra sobre as desilusões. Não conseguiria fazer um disco agora falando sobre o amor e a flor, porque não faz sentido pra mim falar amenidades nesse momento em que a gente é atacado por todos os lados e a gente precisa sobreviver, e ao mesmo tempo ressignificar a nossa resistência. O meu jeito de fazer e a minha linguagem, isso não vai mudar tanto, mas os assuntos realmente mudaram, quero falar coisas atuais, não quero ficar divagando nesse momento sobre assuntos que posso falar em qualquer outro momento da minha carreira. Não quero perder esse momento atual de falar sobre o que estou sentindo e vivendo agora, do que eu estou vendo ao meu redor.
Você lançou também “Isso Não é um Poema”, single em parceria com a Dulce Quental, que fala sobre esse momento de quarentena e essa experiência pela qual estamos passando. Queria que você falasse um pouco sobre esse lançamento também.
Pois é, Dulce me mandou essa letra, eu achei lindíssima. Eu e Dulce sempre nos falamos e essa música surgiu de uma conversa. Ela vem me cobrando uma parceria há muito tempo, pois há tempos que eu não fazia nada com ela. Só que fiquei naquela dúvida se eu lançava essa música agora ou não, porque preciso lançar algo do meu disco novo e existe de certa forma essa expectativa pelo que vou lançar depois de tanto tempo, só que a música tinha de certa forma uma urgência. É uma música que fizemos muito para mandar uma mensagem do tipo “depois disso tudo vai vir algo muito legal, vamos tentar nos manter vivos, tentar nos manter saudáveis mentalmente para poder viver o que vai vir depois”. É uma mensagem bem otimista. De todo modo, eu fiquei um pouco numa crisezinha, porque por uma lado é uma mensagem que quero passar, mas não sei se é muito bem o que eu acredito, porque não sei se realmente vai ficar tudo melhor depois, mas acho que é uma mensagem importante para a gente ouvir agora, porque se a gente parar de acreditar que não vai ser melhor depois, vai ficar ainda mais difícil. Então foi ótimo, porque amo a amiga e a parceira Dulce, adoro as letras dela, então foi bem legal ter lançado isso agora e foi até uma espécie de esquenta para os novos lançamentos, porque, de certa forma, as duas novas faixas falam de assuntos próximos, só que de diferentes perspectivas.
E como tem sido a produção do novo disco? Você já estava produzindo antes desse momento de quarentena, então você já tinha várias coisas dele prontas?
O disco está praticamente pronto, a gente está fazendo os últimos ajustes. Aqui em Recife eu até regravei alguns pianos, algumas vozes. Tem um arranjo agora sendo gravado no Rio. E estou aguardando o arranjo do Letieres Leites que vai ser gravado na próxima semana. Então meio que últimos ajustes. A bateria já tinha sido gravada, foi a primeira coisa que a gente gravou em Nova York – o Sthepane gravou as baterias e o baixo lá e me mandou. Depois mandei pra Luizão, ele começou a gravar as guitarras e um monte de coisas em Salvador. E agora a gente está nessa parte final dos arranjos, já está bem próximo de terminar.
A gente falou muito do seu trabalho solo, mas você também trabalhou muito ao lado de outros artistas. Recentemente saiu o disco “Só”, de Adriana Calcanhotto, em que você toca piano; assim como você acompanhou muitos outros nomes, você não para de trabalhar.
Sim, e é até uma coisa muito boa, pois quando estourou a pandemia eu fiquei assim: “Meu deus, e agora o meu trabalho? Como é que eu vou me manter?” E então surgiu essa gravação para o disco de Adriana, que amo demais. Aliás, é um disco muito lindo produzido por ela com o Arthur [Nogueira] e os meninos de Belém e foi uma grande alegria participar. Ano passado circulei o ano inteiro com Fafá de Belém, no “Humana”, e foi inclusive algo que foi muito importante para mim circular – é um disco que amo também. Amei demais trabalhar com a Fafá e os meninos da banda, o João, o Richard e o Allen. E foi uma experiência maravilhosa, pois eu estava até com saudade disso, porque comecei a minha carreira como músico, eu acompanhei muitos artistas antes de decidir cantar e ter o meu trabalho. Tenho muito mais tempo de carreira, aliás, como músico, do que a pessoa que está ali na frente do palco, então me realizei muito com Fafá. Fafá é maravilhosa, um show lindo com direção de Paulo Borges. Foi uma alegria muito grande de fazer parte de dois discos e projetos importantes, espero que venham mais.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.
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