Texto por Renan Guerra
M.I.A. é uma estrela pop que sempre vê seu nome atrelado aos epítetos “polêmica”, “incontrolável” ou “exagerada” e é sobre esse universo que o documentário “Matangi / Maya / M.I.A.”, de Steve Loveridge, se debruça. Lançado em festivais ao redor do mundo em 2018, o filme estreou no Brasil em uma única e concorrida sessão no Music Video Festival – mvf 2018, em São Paulo. Disponível no país pelo iTunes, o filme também foi visto pela própria cantora em sites de downloads ilegais, o que gerou tweets dela falando que não se importava de o filme estar em cópias ilegais (“Desde que fosse em qualidade 1080p”), pois, segundo ela, “uma revolução não virá através do establishment”.
Essa perspectiva da artista perante a obra é um bom ponto de partida para todo o universo que o diretor Loveridge tenta englobar nesse documentário: compreender as pequenas revoluções que a artista M.I.A. busca construir e assim expandir discussões importantes sobre imigração, xenofobia, indústria cultural e jornalismo. A artista de origem tâmil nasceu no Sri Lanka, onde passou a infância, até que sua família se mudou refugiada para a Inglaterra, onde Maya – batizada Mathangi Maya Arulpragasam – passou parte da adolescência. Já na faculdade, a garota decidiu que queria ser documentarista, começando a registrar diferentes momentos de sua vida, o que renderam quase 500 horas de material bruto.
Amigo pessoal de M.I.A., Steve Loveridge teve acesso livre a todo esse material que acompanha desde a infância da artista até a produção do clipe de “Borders”, em 2016, num recorte complexo, que dá um panorama amplo sobre a evolução e o desenvolvimento da obra e da intimidade de Maya. O longa passa por delicados fatos, como o distanciamento de sua família com o pai, que era um revolucionário tâmil na guerra civil do Sri Lanka, e toda a complexidade de ser uma refugiada na Inglaterra. Aliás, um ponto fundamental na história da artista e na construção do filme se dá quando, aos 21 anos, ela decide fazer uma espécie de viagem investigativa ao seu país de origem e reencontra familiares, a sua antiga casa e passa a se comunicar de forma mais sólida com a cultura local.
Em outro prisma, o filme também acompanha a amizade próxima da protagonista com Justine Frischmann, vocalista do Elastica e incentivadora inicial da carreira de M.I.A. – a cantora inclusive revela que muitas de suas composições iniciais eram pensadas para Justine cantar. O filme, aliás, não deixa muito claro o momento decisivo em que a artista decide deixar os sonhos de documentarista e investir de verdade na música, tanto que o roteiro promove um salto e logo chega ao debute “Arular” (2005), deixando de lado “Piracy Funds Terrorism” (2004), mixtape realizada ao lado de Diplo e que traz algumas das canções primordiais que formariam o disco de estreia de M.I.A.
Toda a relação com Diplo, aliás, é vista muito ‘en passant’ no longa, apenas apresentando-o como um namorado fortuito da artista, com o qual ela trabalhou em seu disco de estreia. Diplo, porém, é fundamental para a relação dela com o funk carioca (ela mesma conta isso em entrevista publicada no Scream & Yell em 2005) e ambos passaram pelo Brasil em 2005, no finado Tim Festival, quando ela inclusive cantou ao lado de Deize Tigrona. Relatos da própria M.I.A. falam que sua relação com o produtor teria sido conturbada, beirando o abusivo, tanto que ela registra que após assinar seu contrato com a gravadora Interscope, Diplo teria quebrado todo o quarto de hotel em que eles estavam por raiva. Enfim, o filme tenta fugir dessa linha “relacionamento de casais” e deixa a relação dos dois como secundária.
Por outro lado, “Matangi / Maya / M.I.A.” se aprofunda de forma bastante forte num momento conturbado da carreira de M.I.A.: ela foi indicada ao Oscar de Melhor Canção por “O… Saya”, da trilha de “Quem Quer Ser um Milionário?” (Danny Boyle, 2008) e ao Grammy por sua faixa “Paper Planes”, que também estava na trilha do mesmo filme. Nesse momento que sua carreira crescia, seu país Sri Lanka entrava numa das fases mais tensas de sua guerra civil e M.I.A. decidiu usar esse espaço na mídia para falar sobre o tema mundialmente, em principal na TV norte-americana. É nesse ponto do filme que as questões mais complexas aparecem: M.I.A. é acusada de ser terrorista, passa por entrevistas em que é tratada com deboche e tentam repetidamente diminuir a importância de suas discussões pelo fato de ela ter dinheiro – um discurso que geralmente atinge pessoas não-brancas em ascensão. Esse cenário complexo é superimportante para que se compreenda, em retrocesso, todas as tensões que surgem no disco “Maya” (2010), seu trabalho mais violento e pesado.
Além disso, o diretor ainda dedica um bom tempo à exagerada polêmica do dedo do meio que M.I.A. exibe em sua apresentação no Superbowl de 2012, em show ao lado de Madonna e Nicki Minaj. Essa passagem serve para mostrar um bocado da caretice do público norte-americano (lembrando bastante a anterior polêmica com o mamilo de Janet Jackson em um dos antigos Superbowl), mas mais que isso, expõe a virulência das respostas que M.I.A. recebeu, expondo um público essencialmente racista, xenofóbico e misógino.
No todo, “Matangi / Maya / M.I.A.” debruça-se sobre o esforço que M.I.A. faz para ser uma artista pop de grande alcance e ainda assim ser congruente com sua história e seu passado. Ser uma refugiada não-branca no Ocidente é um fato que perpassa grande parte das atitudes da artista e vê-la em movimento é ver também todos os rechaços que ela sofre de um universo que ainda tem a xenofobia e a misoginia como norma. O filme, mesmo que deixando de lado fatos que também poderiam ser relevantes, consegue criar um panorama interessantíssimo sobre a relação entre arte e política, sobre como utilizar o universo pop para questionar pode ser um terreno espinhoso e o quanto M.I.A. luta constantemente contra um sistema que vira e mexe tenta diminuí-la ao papel de louca em busca de polêmica.
No final das contas, esse documentário é necessário para muito além dos fãs de M.I.A., ele é fundamental para qualquer pessoa que pense as relações entre arte e política; que busque entender a relação que há entre cultura pop ocidental e preconceitos de origem e gênero; que busque entender os meandros do jornalismo de cultura para além das colunas de fofoca e, acima de tudo, para quem busca entender a complexidade de ser uma artista mulher não-branca que busca ser dona de si. “Matangi / Maya / M.I.A.” é um filmão que merece ser visto e debatido.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o site A Escotilha.