Faixa
a Faixa
"Yankee Hotel Foxtrot" - Wilco
por
Marcelo Costa
17/02/2002
Uma
história dos tempos modernos
ou
Música, internet e autonomia artistica
ou
"Você precisa aprender a morrer se quiser continuar
vivo"
A
maioria já leu aqui,
antes, mas custa nada rememorar. O Wilco, uma das melhores bandas
dos últimos anos, gravou Yankee Hotel Foxtrot no primeiro
semestre de 2001, sob encomenda da gravadora Reprise, subsidiária
da poderosa AOL Time Warner. Álbum entregue, álbum
recusado, contrato quebrado.
O
bafafá correu tablóides, revistas especializadas
chegando até a e-zines e discussões de mesa de
bar. Defendendo sua cria, a banda abriu mão do apadrinhamento
AOL Time Warner, pegou as gravações, liberou-as
na web e a história se fez. Três milhões
e meio de hits e 200 mil visitantes acessaram a www.wilcoweb.com
em setembro de 2001 para ouvir o álbum e, sabe-se lá
como, ele foi parar no Audiogalaxy, para festa geral dos fãs
e queda de cabelos da Reprise.
O
resultado? Mesmo sem ter sido lançado em 2001, Yankee
Hotel Foxtrot apareceu em várias listas de melhores
do ano. Jeff Tweedy e banda saíram em tour logo em seguida
e não demorou muito para que a gravadora que meses antes
havia recusado Yankee fizesse uma contraproposta que,
claro, foi recusada pelo Wilco. Isso se chama autonomia artística.
Quem ri por último sempre irá rir melhor.
Com
o álbum debaixo dos braços, o Wilco chegou até
a Nonesuch, um pequeno selo nova-iorquino cuja fama é
proporcionalmente inversa ao seu tamanho, visto que é
lar de gente como Emmylou Harris, Magnetic Fields, João
Gilberto e Buena Vista Social Club. A fama do selo diz que seu
presidente, Robert Hurwitz, só lança aquilo que
gosta, ou seja, boa música. Vá lá entender,
a Nonesuch é subsidiada pela AOL Time Warner.
Todo
o caminho tortuoso enfrentado pelo Wilco valeu a pena. Yankee
chega às prateleiras mundiais (no Brasil, ainda sem
previsão de lançamento) do jeito que foi apresentado
para os chefões da Reprise, em julho de 2001. E, por
mais que todo mundo já tenha falado, inclusive nós
mesmos, muita gente ainda quer saber: Yankee é
tudo isso que comentam? Sim, caro leitor. É tudo isso
e mais um pouco. Tem um sabor pop, mas não é popularesco.
É exótico, mas não é extravagante.
É poético, mas não é piegas. É
dolorido, mas não é suicida. É sentimento
e não mercadoria. E é amor e não paixão.
E
é conceitual até o último segundo.
Yankee
Hotel Foxtrot, ou simplesmente "YHF", são denominadas
as estações de rádio da agência de
inteligência de Israel. Através de ondas acima
do tráfego das estações de rádio
comuns, Israel divulga os seus interesses aos seus agentes.
A voz, sempre feminina, discursa em códigos, o que resulta
em distorções de quem recebe as mensagens desconhecendo
a combinação. Tweedy ampara-se nesta metáfora
para dissertar todas as suas dúvidas acerca do tema central
do álbum: a comunicação nos relacionamentos.
Viver sempre falando em códigos com as pessoas que nos
cercam é a acusação. Alguém discorda?
Quase todas as canções carregam barulhos de rádios
não sintonizadas. O álbum funciona como uma suíte
dividida em 11 canções. Pela rádio YHF,
Tweedy passa a sua visão dos códigos do amor,
enquanto o zumbido de microfonia de rádio marca presença.
Estática como uma tv fora do ar. Como um relacionamento
terminado. Alguém consegue adivinhar o que o próximo
está pensando? Não. Então por que tentamos?
Ruídos.
Nos
tempos modernos, em que o direcionamento de um trabalho artístico
passa pela sala do marketing antes mesmo de ser composto, não
deixa de ser tocante que uma banda defenda sua música
com todas as armas que tem, no caso, com a pompa e a liberdade
que a Internet possue. Sem dúvida, vivemos uma nova era.
O mundo com nós o conhecíamos, acabou. Artigos
antes impreteríveis como honestidade e esperança
agora são raros. No mundo capitalista, o que manda é
o que vende. Bem vindo ao novo mundo.
Mas,
desculpe desapontar os felizes com a nova ordem, aqui e ali,
vozes se erguem contra tudo isso. Vozes como a de Jeff Tweedy
e seu Wilco. "I've got reservations / 'Bout so many things but
not about you" canta Tweedy na faixa que encerra um dos melhores
álbuns desde sempre. Basta saber quem é você
e de que lado você está.
I
am trying to break your heart
Psicodelia
pura. Efeitos e mais efeitos - guitarra e teclados - revezam-se
com pratos de bateria na abertura da canção. O som
vai morrendo quando uma batida de violão escudada pelo som
de uma guitarra zumbindo toma à frente. A bateria entra,
faz umas viradas e desaparece. O piano surge. A voz de Tweedy é
melancólica e cansada. Ele assume ser um assassino na parte
baixa da avenida, aceita quando ela o chama de bêbado e conclui
no refrão: "I am trying to break your heart". A
abertura não poderia ser tão perfeita e tão
anti-pop. E termina cheia de microfonias, como uma rádio
não sintonizada (uma YHF?). Um épico de pouco mais
de sete minutos.
Kamera
Batida
leve a lá Big Star de Third/Sisters
Lovers e o R.E.M. de Out Of Time em clima que também
remete a SummerTeeth, o álbum
anterior. No meio da canção, um tecladinho começa
a rodear a melodia. A voz de Tweedy continua impregnada de melancolia,
apesar da batida 'happy' do violão. A letra escancara. "For
my family, tell I'm lost on the sidewalk". No fim, o piano acompanha
a melodia e Kamera serviria muito bem como primeiro single.
"I’ve driven in the dark / With echoes in my heart / For my family,
tell em I’m lost, yeah, I’m lost / You know it’s not okay".
Radio
Cure
Lenta,
arrastada e cheia de efeitos, aqui e ali. Um piano tenta chamar
a atenção no refrão. Jeff Tweedy canta como
se o ar lhe incomodasse nos pulmões. A voz sai arrastada
com cheiro de uísque. "Cheer up / honey I hope you can /
there is something wrong with me / my mind is filled with silvery
stars.
War
on War
As
guitarras acústicas voltam a acelerar a melodia, mas a voz
de Tweedy continua escorrendo tristeza. Um riff perturbado de guitarra
passeia pela canção, saturado, cheio de efeitos. O
piano retorna doce, e o contraste ilumina esta guerra. O recado:
"You have to learn how to die / If you wanna wanna be alive". Acaba
com alguém puxando o fio da aparelhagem e desligando tudo.
Também lembra REM.
Jesus,
Etc.
Remete,
de início, a How To Fight Loneliness, canção
do álbum anterior. Violino e cravo embelezam o sublime arranjo
que também remete aos galeses do Gorkys Zigotic Mynci. Também
tem potencial de single, bem... "Jesus don't cry / you can rely
on me honey / you can combine / anything you want"...
Ashes
of American Flags
Outra
canção que se arrasta em um arranjo pouco convencional.
A bateria é lenta e pesada. A guitarra cheia de efeitos é
distante. E a letra é simples e bela. Soa como um desabafo
(cínico, claro) de quem caminha muito, mas sabe que "I can
spend 3 dollars and 63 cents / On diet Coca Cola and unlit cigarettes"
porque "All my lies are only wishes / I know I would die if I could
come back new". Final à la Pink Floyd Wish You Were Here.
Heavy
Metal Drummer
Clima
de boteco, com a bateria à frente (claro), afinal, "She fell
in love with the drummer". A letra é cínica e deliciosa.
"I miss the innocence I've known / Playing Kiss covers beautiful
and stoned / She lifted up her shirt at the battle of the bands
/ He twirled his sticks, she helped him to his van / She fell in
love with the drummer". É toda cadenciada com o violão
conduzindo e um teclado que remete à Crystal Lake
do Grandaddy encaminha
a canção para o final.
I'm
The Man Who Loves You
Clima
à la Neil Young safra 72, com algo de I Can't Stand It,
do álbum anterior. A guitarra começa à frente,
saturada em um riff nervoso. O violão vem por trás
das microfonias e Jeff Tweedy tenta convencer a garota de que o
amor que ele sente é tão simples que só de
segurar a mão dela, seria compreendido. "I wanted when I
started writing this letter to you / If I could you know I would
just hold your hand and you'd understand / I'm the man that loves
you".
Pot
Kettle Black
Mais
microfonia na abertura, contrastando com a levada limpa da guitarra
acústica (sim, os Stones de Exile on Main Street).
Tweedy canta baixo e bem. Os efeitos só surgem no meio da
música, assim como uma guitarra solo distante na mixagem.
Um quase break morrendo em efeitos no meio da canção
é o perfeito resumo do álbum. "Every songs is
a comeback / every moments a litle bit later".
Poor
Places
Longa
introdução com vocal e efeitos nos leva ao passado.
É ali, remexendo seu baú de memórias, que o
vocalista busca inspiração. "There's bourbon on the
breath of the singer you love so much / He takes all his words from
the books you don't read anyway". Remete à Sargeant Peppers
dos Beatles. Uma voz feminina ao fundo, perdida em meio ao barulho,
sussura "Yankee Hotel Foxtrot" como código ao infinito, ou
até onde as microfonias conseguirem chegar (Será que
alguém distinguiu a codificação?).
Reservations
Yankee
Hotel Foxtrot termina do mesmo jeito que começa.
Uma faixa longa (outro épico de sete minutos), desconstruída,
climática, melancólica, cheia de efeitos e de
colagens, mas, também, arrebatadora e sublime. Piano
a frente, e a voz de Jeff Tweedy escorrendo melancolia nas duas
primeiras estrofes, para, com o voz em dobro, gritar o refrão
desesperado:
How
can I convince you it's me I don't like?
And not be so indifferent to the look in your eyes.
When I've always been distant, and I've always told lies for
love
I'm
bound by the choices so hard to make
Bound by these feelings so easy to fake
But none of this is real enough to take me from you
I've
got reservations
'Bout so many things but not about you
I
know this wasn't what you were wantin' me to say
How can I get closer and be further away?
And the truth? It proves it's beautiful to lie
I've
got reservations
'Bout so many things but not about you
Após
três minutos e meio de melodia de deixar aqueles que amam
com o coração em pedaços, a canção
quase acaba, e uma coda surge e segue mais três minutos
até morrer e encerrar o melhor álbum de 2001,
2002 e desde sempre. Se Jeff Tweedy estava tentando partir corações
com suas dúvidas sobre as relações humanas,
conseguiu.
Site
Oficial do Wilco
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