Música Barroca e Comida Chinesa 
de Flavia Ballve Boudou 

Música barroca e comida chinesa. Pensando bem, até que combina. Não sei porque naquele dia, naquela igreja, eu achei isso tão esquisito. Também não sei porque estou pensando nisso agora, já são 7 horas e eu tenho que tomar banho. Tô cansado. Não devia ter comido tanto na hora do almoço, tô entupido e hoje eu tinha que estar em forma pra sair com ela. Ela deve ligar. 

Agora que eu pensei na igreja, lembrei daquele concerto. Foi muito boa aquela viagem, embora não tenha sido a viagem que eu imaginei. Um dia ainda vou ter grana pra ir, um dia vou ter a coragem de bater a porta e deixar um bilhete debaixo da mantegueira dizendo “fui ali na Europa e já volto”. Engraçado, aqueles idiotas da faculdade acham que eu sou malucão. Só porque eu penso. De vez em quando eu tenho umas idéias mesmo, mas nunca machuquei ninguém, eu sou o típico filho, aquele que nunca nem viu uma puta de perto. 

Esperar o telefone tocar é um saco. Mas eu não vou ligar pra ela não. Fui eu que liguei da última vez e se a mulher tá interessada vai demonstrar. Já foi a época de homem ficar correndo atrás e elas só em casa, lindinhas, esperando o telefone tocar. Pelo menos elas é que sentiam essa ansiedade chata. Talvez se eu assistisse um pouco de TV pra esperar passar o tempo. Eu devia era ir tomar banho. Tenho que fazer essa barba logo, já estou ficando com cara de marginal. Se bem que eu pareço mais velho, não pareço ter só 20. Teve aquela menina aquela vez, aquela mais velha, que achou que eu tinha 24. Ela era até legal, apesar de não saber as idades das pessoas. Vai ver ela queria muito acreditar nisso, sei lá, também não sou psicólogo pra saber. Ela não merecia o fora que eu dei, no fundo acho que eu tive vergonha e também vontade de ficar muito caído por ela e por isso que eu dei o fora. Mas ela não merecia. Aliás, geralmente as pessoas não merecem as coisas ruins que fazemos com elas. As pessoas são boas, não são? Não deveriam ser? 

Que porra é essa na TV? Detesto esse tipo de comercial. Nada mais piegas que um casal correndo pra se encontrar na beira do mar. Ainda mais pra anúncio de desodorante. Até parece que os dois não iriam estar fedidaços quando se encontrassem, depois dessa correria toda. Eu queria ver um anúncio desses onde os dois quando chegassem perto começassem a voar pra cima do outro, um kung-fu barato. Não sei porque tudo tão igual na TV, tanta mediocridade. Olha aí, outro casal, dessa vez o anúncio é de carro. Desodorante. Carro. Queria entender a diferença. Ambos aprisionando, ambos imagens mal-formadas pra gente inconsciente. 

Desligo a TV. Acendo um cigarro, aproveitando que minha mãe não está em casa. Ela não gosta que eu fume, claro. Eu fumo, claro. Ela também não gosta de um monte de outras coisas, não gosta que eu saia sem avisar, não gosta que eu me divirta mais que ela. Tosse. Eu devia parar de fumar. Já nem tenho mais fôlego pro futebol. Acho que vou partir pra outro vício, quem sabe tricô. Ha. Meu pai pelo menos não se mete, a não ser quando é pra chegar com aquela cara soturna e dizer pra eu não perturbar minha mãe. Outro ha. Logo eu, que só quero que me deixem em paz. Nunca fiz uma merda muito grande, quer dizer, já bati com o carro, já cheguei em casa de manhã algumas vezes, mas nunca fui parado por drogas, fotografado nú em praça pública e nem dilacerei pensamentos. As pessoas quando pensam em coisas ruins pros filhos pensam só nas óbvias, ir preso, ser viado, sei lá. Mas eu se tivesse filhos iria ensinar pra eles a nunca deixarem de rir simpaticamente quando você sente pena de uma piada contada por alguém fraco. Ou que eles nunca se apaixonassem por pessoas que não sabem bem se querem algo da vida ou não. Isso sim é grave. Imagine casar com alguém que goste de programas de auditório no domingo ou cujo grande sonho seja uma semana de férias na Disney. Prefiro que eles bebam um pouquinho aqui ou ali, ou que repitam de ano, pelo menos estariam vivendo, é bem melhor do que não ter escolhas, ou ter e jogá-las fora. 

Nunca tinha visto aquela janela ali aberta. Aquela ali em cima, do casal de velhos. Qual a esperança que eles têm? Esperar por que? Deve ser horrível quando a sua maior angústia é não saber qual o próximo capítulo da novela. Ou esperar a morte. Tenho pena deles e não gosto de ter pena. Dói engraçado, é como se eu fosse de alguma forma culpado por isso.

Eu devo estar cansado, é. E essa angústia e essa cabeça amarga, eu dormi muito tarde ontem, e além disso ela demora a ligar. Acho que eu estou gostando mesmo dela. Nunca ia imaginar. A gente se viu tão de relance, naquele sinal, quem diria que ela iria bater no meu carro logo depois. Destino. Nunca acreditei nessas palhaçadas, mas ela é a mulher da minha vida, ah é. Adoro o riso dela e o olhar dela de líder estudantil dos anos 60. Não sei explicar bem, mas é aquele olhar forte, de bicho forte, confiante e ameaçador. Anos 60, ô época estranha. Prefiro hoje, com menos maconha e mais ácido, pelo menos ninguém é porco como aqueles hippies eram. Não aguento esses novos hippinhos, aquela mulherada toda de suvaco cabeludo, indo pra faculdade com o carrinho do pai. Acho que foi isso que eu gostei nela. Ela é decidida, o carro dela foi ela quem pagou. Foi um empréstimo com o pai mas ela vai pagar, pô. E eu adoro aquele jeito que ela franze o nariz quando está nervosa. 

Às vezes você gosta de uma pessoa e nem sabe bem o motivo. Eu já me apaixonei uma vez por uma palavra dita numa hora certa. Foi assim, a gente estava no colégio numa aula toda chata, acho que era Física ou algo assim. Física até é interessante, o problema é a babaquice que reina na cabeça dos alunos todos, que ficam eternamente com aquela gracinha do porco. Sabe, aquela quando tem um exercício falando “um corpo em movimento” e o palhaço da vez manda aquela “um porco em movimento?” e todos riem felizes, é quase uma conjunção espiritual. O problema dos imbecis é que eles riem eternamente das mesmas estupidezes. E estávamos lá quase dormindo, só esperando sem esperanças o próximo porco, quando de repente ouvimos um barulhão vindo lá de fora, uma professora que tinha saído chorando da sala porque alguém tinha se matado ou sei lá na família dela e tinham avisado no meio da aula, como se isso fosse humano. E aí na minha sala, no silêncio, a gente ouviu aquele “puta merda” vindo lá do meio da sala, aquele puta merda sentido, profundo, que expressava tudo o que a gente estava pensando na hora. Me apaixonei por um puta merda. 

Mas dela não foi só o nariz. O nariz é legal, quando ela ficou nervosa quando bateu no meu carro. Se bem que na hora ela pensou mais na grana que ia ter que pagar, com certeza. Mas quando eu saí do carro e vi aquele nariz franzindo pra mim, ou por mim, eu pensei na hora, “quero que esse nariz só franza pra mim, pra sempre”. Não sei, às vezes eu me pego nesses detalhes. Mas é que eu acho que você só conhece realmente alguém num detalhe. Pra conhecer bem alguém, experimenta acordá-la. Não que eu já tenha podido fazer isso com muita gente, porque pra dormir aqui em casa só se minha mãe viajar, e eu não posso dormir fora com facilidade assim. Mas experimenta acordar alguém. Eu acho que a felicidade seria isso, você ter alguém que você possa acordar todos os dias. A mesma pessoa. Porque aí você pode fazer várias experiências. Por exemplo, se está frio e a pessoa comeu muito na noite anterior, e você acorda ela de mansinho, como ela reage? Ou se dormiram depois de uma briga e o lençol já está usado há muito tempo, e você acorda ela com uma sacudida, e aí? O problema da vida é que a gente tem muitas variáveis pra tudo. Eu queria que as coisas só variassem de uma forma específica. Mas um dia ainda vou ter alguém pra acordar todo dia, e de preferência ela vai acordar inquieta e franzir sempre o nariz pra mim, ou contra mim, não importa como eu a tenha acordado. 

Eu devia era ir tomar banho. Ela pode ligar daqui a pouco querendo sair, a gente vai jantar alguma coisa hoje juntos. Acho que vou levá-la num restaurante japonês e pedi-la em casamento. Fugir hoje mesmo. Eu estou bem no clima. A gente tem que fazer as coisas assim, na hora que tem vontade. Senão fica aquela coisa meio falsa, meio “tenho que fazer isso mas não está sendo natural”. E é tão difícil você ser natural com algumas pessoas. Tudo é uma grande farsa mesmo. Ganhar presentes idiotas e agradecer. Ter que pedir por favor pra um babaca qualquer que está guardando seu carro na rua. E eu adoro, além do nariz dela, o gosto dela pra comida. Acho que foi isso que eu gostei nela também, ela é uma pessoa que nunca comeria a salada misturada com o feijão. Sei lá, pra mim isso é importante. Eu gosto de detalhes. Tem gente que valoriza coisas bobas como a cara que a pessoa tem ou o que ela estuda ou quanta grana ela faz. Eu acho que gostar ou não de salada com feijão faz toda a diferença. 

Não, não vou pedi-la em casamento não. Lembrei agora que ela não está sendo legal, me fazendo esperar pelo telefonema dela. Imagino o dia em que for pedir realmente pra alguém casar comigo. Engraçado, não? Por que que não pode uma mulher pedir pra eu casar com ela? E por que pedir pra casar? Nenhum dos dois teria que pedir nada, e sim simplesmente um dia não sair mais de perto, pronto, casou. Se é pra casar, é pro resto da vida. Tem muita gente que se casa e não deveria ter casado, devia continuar namorando. Só os muito felizardos, que realmente encontraram seu par, deviam se pedir em casamento. Romeu e Julieta, Mickey e Mallory daquele filme do casal assassino, a baleia Willy e aquele moleque chato. 

Eu pediria assim: oi, vamos ficar juntos até morrermos. A idéia da morte não deixa de ser bonita, nós dois juntos até o fim. Não teria aquelas coisas que todo mundo espera, de anel e flores e lágrima antecipada. Não. Eu seria eu mesmo. Uma vez ouvi um choro de uma namorada reclamando que eu não era romântico. Que não ficava repetindo ad eternum eu te amo, eu te amo, eu te amo. Que eu não era romântico. Como ela era banal, como era comum, ela não conseguia ver que eu amava ela mais que tudo, mas ela não sabia me ler. 

E aliás, ser romântico pra que? Romantismo é a arma dos feios. Se o cara é um monstro vai tentar conquistar a menina – geralmente outro monstro – com flores e aquela besteirada toda. Pra que? Pô, ninguém consegue pensar além dos clichês, parece que dói. Em vez de dar flores todo mês de namoro – e ainda tem aqueles unânimes que dâo quantas rosas forem os meses, que pé no saco – eu acho muito mais bonito e significativo levar uma flor num dia comum. Primeiro dia de férias, uma flor e um convite pro zoológico. Pra comer um sanduíche por lá mesmo, vendo uma excursão de pré-escola passar. Não tem nada mais legal que criança nessa idade, elas sabem de tudo, pena que depois se convencem que os adultos é que sabem das coisas. 

Tem outras coisas que eu acho românticas. Ligar de orelhão, por exemplo. Hoje em dia todo mundo tem celular e email e essas coisas, mas nada se compara ao chiado que um orelhão faz. Melhor ainda quando era com ficha ao invés de cartão telefônico. Pô, eu vou poder contar pros meus filhos que eu sou do tempo de orelhão com fichas. Isso se ainda existir orelhão. Ou filhos. Ou tempo. Escrever um bilhete com um lápis velho também é romântico pra caramba. Ou usar um chinelo velho enquanto anda sozinho numa praia sem onda mas com muito vento. 

E aquele concerto que eu assisti. Numa igreja super velha, só com velas. Nem era igreja, era mais uma capela. Lá na frente, no altar, dois caras com instrumentos medievais, nem sei o nome, tocando música barroca. Você sentia no ar o peso daquela idade e mesmo acordado via os olhos da época suspirando com aquelas notas. Chorei muito, chorei pela mediocridade de hoje, quando todo mundo luta para ser o mais artificial possível. Saindo de lá, me convidaram pra comer comida chinesa. Fiquei muito puto, só a proposta estragou toda a minha felicidade com aquela música. Porra, o que tem a ver música barroca com comida chinesa? Hoje vejo o quanto estava limitado. Tinha tudo a ver, tudo. E eu nem sei explicar o porquê. Mas comida chinesa, ali, naquela igreja, era tudo o que eu poderia comer. Se eu comesse algo sofisticado, a experiência da igreja começaria a se tornar falsa, porque tudo estaria se encaixando bem demais e o mundo está longe de ser assim. Se eu não comesse nada, ou comesse qualquer coisa sem pensar, não estaria dando a devida importância à beleza do concerto. Comida chinesa é o máximo do despojamento pensado. Aquela coisa de “oh, não quero nada, pede uma comida chinesa” e você acaba a noite com um ar blasé totalmente natural comendo wanton ou yakisoba. Nada poderia combinar mais. E eu não soube disso. 


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